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Historias de Reis e Principes/X

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X

Um rei entre montanhezes


(Outubro de 1887)


A viagem de el-rei D. Luiz I á serra do Gerez foi durante esta semana objecto de uma copiosa reportage, que diluviosamente inundou todos os jornaes do paiz.

Para as pessoas que apenas teem feito á roda de Lisboa pequenas excursões de recreio, a viagem da familia real ao Alto Minho foi motivo de tamanha surpreza, que muitas d'essas pessoas inclinam-se a pensar que não passa tudo de uma historia fabulosa, similhante ás que Julio Verne conta nos livros interessantissimos, posto que phantasticos, das suas Viagens maravilhosas.

Mas a verdade é que o Alto Minho existe realmente com todos os seus segredos de ethnographia pittoresca, de uma simplicidade primitiva, quasi prehistorica, e que a familia real portugueza acaba de passar tres dias n'essa região ignorada, defendida da contacto das gentes pela altitude penhascosa das suas montanhas alpestres, pela torrente espumosa das suas rapidas cataractas, e pelo accesso difficil das suas quebradas profundas, dos seus picos ingentes, e dos seus barrocaes pavorosos.

O Gerez não é precisamente uma serra que os snrs. reporters tenham mais ou menos phantasiosamente recortado sobre os contornos das montanhas alcantiladas da Escocia ou da Suissa, eriçadas de sarçaes, esmaltadas de lagos argenteos e povoadas de raças autochtones, que se manteem na plenitude da sua originalidade rudimentar.

Os snrs. reporters podem ter, e teem decerto, prendas litterarias para isso e muito mais, mas ao menos d'esta vez teem sido de uma veracidade immaculada, de que podem dar testemunho as poucas pessoas que, em relação á população total do paiz, conhecem a provincia do Minho para além do rio Cavado e do seu irmão siamez o rio Homem.

O Gerez não é uma fabula, não senhores, é uma cordilheira que existe tão realmente como a podem vêr os povos confinantes do Minho e Traz-os-Montes, estendendo-se na direcção de nordéste para suduéste e na extensão de sete leguas, desde Pitões até Rio Caldo.

Esta serra notavel, cujo terreno é de uma formação geologica primitiva, conserva, em harmonia com o seu granito silicioso, uma bella mise-en-scène por igual primitiva, movimentada por actores montesinhos, que parecem representar alli o drama sacro de um genesis eterno.

Toda a fauna conserva um cunho de selvageria aborigene, porque os lobos, os javalis, os veados, as cabras montezas, os bufos, as aguias reaes são ainda hoje os dominadores incontestados das mattas cerradas e dos invios labyrinthos alpinos das florestas virgens do Gerez.

Houve tempo em que o urso completou o elenco da troupe animal do Gerez, mas desde que os pastores pensaram em afugental-o com o clarão sinistro das fogueiras para esse fim accesas durante a noite, o urso, a datar do seculo XVII, fugiu para não mais voltar.

Toda a serra está povoada de lendas supersticiosas guardadas, de seculo para seculo, pela inviolabilidade das suas proprias florestas, e pelo estranho caracter da sua flora e da sua fauna, ainda hoje defendidas pelos sete sêllos de um segredo por igual inviolavel.

Está por acaso estudada a flora do Gerez em todos os arcanos da sua vegetação luxuriante? Não está decerto. Pois o mesmo acontece com relação a essa outra flora, deixem-me assim dizer, das tradições ou das lendas locaes, de que apenas se conhece vagamente um ou outro specimen.

Sobre o penedo da Santa raros olhos terão visto impressos na rocha os vestigios que os serranos contam ser os dos joelhos e pés de Santa Eufemia, que alli vivêra vida eremitica, quando andava fugida á perseguição de seu pai, governador romano da cidade de Braga.

N'um valle de Covide poucas pessoas terão examinado um eito de pedras lavradas, que lá denominam fileiras, e que, segundo a tradição local, foram alli collocadas de proposito para obstar a que os ursos atacassem as colmêas, porque os ursos usavam abraçar-se aos cortiços, rolal-os até encontrarem agua e ahi, afogando as abelhas, comer tranquillamente o mel dos favos.

Por onde se vê que é injusto chamar urso a um individuo pouco esperto.

Mas todas estas tradições, de que ha memoria escripta, são em tão pequeno numero, que bem se póde presumir que o Folk-lore da serra do Gerez está apenas prefaciado por dois ou tres dos nossos chorógraphos.

D'esta quasi absoluta ignorancia em que todos vivemos a respeito da ethnographia das nossas provincias mais sertanejas e remotas, resulta a surpreza com que o paiz está lendo as descripções da viagem da familia real através do Alto Minho, e da sua excursão venatoria na serra do Gerez.

Todo o bom lisboeta, mesmo aquelle que por engano costuma dar excellencia ao rei, ficou hilariantemente surprehendido de que um montanhez minhoto saudasse o snr. D. Luiz dando vivas ao reverendo snr. rei, que é um bom homem.

N'aquellas regiões alpestres, onde a pureza dos costumes é ante-diluviana, ainda o ser bom constitue o supremo elogio de quaesquer homens, incluindo os reis.

Em Lisboa, na baixa ou na alta, tanto monta ser bom como ser mau. Mas no Gerez a ignorancia de formalismos e pragmaticas é tão profunda como a ignorancia de tudo o mais.

Riram-se poetas alfacinhas de que as camponezas de Lago ensoassem em honra d'el-rei uma trova de toantes gallaicas, ao sabor dos primeiros monumentos da litteratura portugueza:

Vamos, vamos depressa,
Corramos p'r'a varanda,
Vêr o rei de Portugal,
Que vai para a caçada.

Mas é que os parnasianos de Lisboa esqueceram, para rir, as memorias historicas do passado e as condições autochtones d'essa especie de bascos da Lusitania, chamados minhotos.

Lembrassem-se elles do seu Frei Luiz de Souza e da pagina que rememora a visita de Frei Bartholomeu dos Martyres á serra de Barroso.

«Correu a voz, pela serra—diz o classico dominicano—da vinda do arcebispo. Abalou-se toda; foi o alvoroço e alegria sem medida. Juntavam-se a recebel-o pelos caminhos com suas danças e folias rudes, que era o extremo da festa que podiam fazer. E, porque não fossem julgados por menos agrestes que os seus mattos, nas cantigas, que entoavam entre as voltas e saltos dos bailes, publicaram logo a quanto chegava o que sabiam do ceu e da fé. Um dizia assim: Benta seja a santa Trindade, irmã de Nossa Senhora

Chamar á Santissima Trindade irmã de Nossa Senhora não é menor desacerto do que chamar reverendo ao rei.

Mas tudo isto denuncía que entre Frei Bartholomeu dos Martyres e o arcebispo D. Antonio Honorato o Alto Minho tem continuado a dormir, sobre as coisas da religião como sobre tudo o mais, e que, surprehendido pelos foguetes dos ultimos dias, accordou estrenoitado, confundindo a personificação do primeiro poder do estado com o maior poder que o serrano minhoto tem conhecido até hoje: o clero.

Porque a verdade é que justiças de el-rei não são conhecidas no Alto Minho, nem lá chega a irradiação constitucional do grande foco da administração publica chamado governo.

Não se lembram do livro de D. Antonio da Costa, intitulado No Minho? Pois elle lá descreve a communa de S. Miguel de Entre os Rios, que ao nascente prende com o Gerez e ao norte com o Suajo.

A freguezia está dividida em cantões, governados por um juiz que os habitantes elegem d'entre si. O povo entrega ao juiz a carrapita (o busio), e quando o juiz entende que é preciso reunir assembléa geral, para tomar qualquer deliberação, convoca o povo tocando o busio.

Então, de todas as casas principiam a sahir os homens vestidos de burel, com calções, polainas e barrete, as mulheres vestidas de lã, colletes curtos, cabello cortado, lenço de linho na cabeça, e, assim reunida a communa, resolve, como outr'ora faziam os lusitanos e como ainda hoje costumam fazer os bascos, representantes dos primitivos iberos.

Eu digo francamente que, se não existisse o Gerez, teria sido conveniente invental-o, a fim de que el-rei o podesse visitar; como Potemkin inventou, para illudir Catharina II, panoramas phantasticos ao longo das desoladas steppes da Russia.

Fizessem muito embora um Gerez de lona, comtanto que o povoassem com os bons serranos do Minho, que fallam ao rei com o coração nas mãos calosas, ao contrario dos cortezãos de Lisboa, que fallam ao rei com o coração nos giolhos postos em terra.

Os de lá curvam-se ao snr. D. Luiz como se curvavam ao arcebispo D. Frei Bartholomeu dos Martyres, cheios de sincera reverencia e de humildade respeitosa. Os de cá curvam-se para que as dadivas do rei lhes possam acertar mais facilmente nas mãos abertas. A distancia moral não é menor do que a que geographicamente existe entre o Gerez e Lisboa.

O rei tem agora visto o que talvez ignorava,—que ha homens bons no Alto Minho, de uma innocencia paradisiaca, que se governam sem incommodar o governo, e que cantam lôas á realeza sem rima, mas tambem sem interesse.

D'isto só no Gerez!