Horas de Folga/A história do prior
– Bem digo eu que o nosso prior já não aparece hoje… São três horas!
– Pois eu digo que vem.
– Prouvera a Deus que te não enganasses… Um bocado de palestra faz falta: a alegria da mocidade faz bem á velhice.
– Olha que êle vai nos sessenta: para mocinho já está maduro.
– Não digo menos disso, mas tudo é relativo… Que idade temos nós?
– Eu te digo… tu fazes oitenta e cinco pelas castanhas, e eu tenho mais sete…
– ¿Já tens 92?
– Pois! Estou aqui, estou com um século.
– E’ por isso que o nosso prior gosta de te puxar pela língua… Tens visto tanto!
– Se tenho! Vi o imperador desembarcar no Mindelo, assisti ás lutas dos dois irmãos…
– Olha, olha, lá vem o nosso prior, exclamou a tia Vicência. O pobre velho levantou-se amparado ao seu cajado
e foi ao encontro do recem-vindo, arrastando dificilmente as pernas trôpegas. A velha tia Vicência imitou-o. Pouco depois vieram os três sentar-se de novo á porta da mísera habitação, no poial que se estendia sob a parreira verdejante.
– Nós já estávamos desconsolados, censurou a tia Vicência.
O marido lançou-lhe um olhar de reprovação.
– Não me foi possivel vir mais cêdo. Vou-lhes contar porquê.
E, passando o lenço pela testa alagada em suor, o bom prior começou assim:
– Eu saía para aqui depois do meu jantar, como de costume; mas, ao chegar ao muro que circunda a horta do Luís do Canto, vi no chão um estranho embrulho. Aproximei-me e fiquei surpreendido vendo uma linda criancinha, que tinha um papel pregado no pano que a envolvia, no qual se lia:
«Pede-se á primeira pessoa, que aqui passar, que tome conta dêste anjinho, por caridade».
– Puseram-lha no caminho de propósito, comentou a tia Vicência.
– Propósito ou acaso, eu não podia deixá-la ali, tão pequenina e só. Fui levá-la a minha irmã, que rabujou um pouco, mas lá se ficou agasalhando o anjinho.
– ¿E que faz agora dêle o senhor prior?
– Nem eu sei… Demais a mais é uma menina.
– ¿E que idade tem? – Apenas dias.
– Foi Deus que lha enviou, senhor prior. Será o amparo da sua velhice.
– Deus o oiça, tio Braz! E daí… quem sabe?
Há bons vinte anos foi bater á porta da Eira de Calvos um pequenito de três ou quatro anos que disse ter sido mandado para ali pelo pai. Procuraram êste, mas não o acharam e, tendo dó da criança, os de Calvos, que não tinham filhos, ficaram com ela. Mau pago lhes deu. Logo que se apanhou homem e instruido, partiu para o Brasil sem nem ao menos lhes dizer adeus. E por lá ficou. Foi um grande desgosto para aquela família que lhe queria do coração.
– Ingrato! exclamou a tia Vicência indignada.
– E’ do que o mundo está cheio, disse, decidido, o velho.
– Portanto, terminou o padre sorvendo uma pitada, ninguem espere gratidão ou recompensa do bem que faz. Não é pensando na utilidade, que se pode tirar das coisas, que as devemos fazer. A grande, a maior paga, é a satisfação moral da nossa consciência: essa não ha ingratidão que a possa impedir. Quem é digno aos próprios olhos nada tem a desejar: é eleito de Deus, do Deus de imensa piedade, que manda fazer o bem sem olhar a quem.
– E, procedendo assim, ninguem tem de que se arrepender, afirmou a tia Vicência.
– Tambem digo, apoiou o Braz.
Conversaram muito tempo àcerca do futuro da
– Deus o oiça, tio Braz!
– Se vem, não volto ámanhã.
E docil como uma criança a quem metem mêdo com a perda da sobremesa, o tio Braz ficava sentado a vêr desaparecer o padre ao longe, no fundo da estrada.