Horas de Folga/O tio Vicente
Á porta dum carvoeiro que havia na rua do Norte estava quasi sempre um grande e bonito côrvo com um vistoso laço de fita ao pescoço. Os rapazes da vizinhança chamavam-lhe O Tio Vicente e afirmavam que êle tinha mais razão para habitar no Limoeiro, por gatuno, do que muitos dos infelizes que lá estão.
O Tio Vicente entrava em todas as lojas, conhecia todos, a todos festejava e todos o estimavam; mas ninguem podia resistir a chamar-lhe ladrão!
Berta, a engraçada filha do tendeiro que defrontava a carvoaria, era muito amiga do Tio Vicente e não levava á paciência que dessem tão feio nome ao seu amiguinho.
Assim que abria a janela, pela manhã, êle saltava logo para o parapeito, afagava-a com o bico e festejava-a por mil modos, até que a pequerrucha ia buscar um bocadinho de carne, que guardava do seu jantar, e lho dava, dizendo:
— Aí tens o teu rebuçado. Comia-o á pressa e retirava-se.
Ela ficava de janela a vê-lo saltitar pela rua e, de repente, chamava:
— Tio Vicente!
O côrvo corria logo ao apêlo.
A amizade dos dois aumentava todos os dias.
O côrvo alimentava-se de tudo, mas nada chegava
para êle á carne, mesmo que estivesse pôdre. Sabendo isto, Berta comprava ratos a um garôto da vizinhança para lhos dar.
Mas uma idea começou a incomodar o espírito de Berta: era ser tão amiga dum animal conhecido por ladrão. Parecia-lhe isto um desdoiro para o nome duma menina tão bem comportada.
Contava ao côrvo quanto fazia: se dera bem as lições, se se divertira nos passeios, etc. Mas não recebia em troca confidência alguma. Festas, muitas festas e nada mais.
Um dia perguntou-lhe:
— ¿E a tua história? Não ma contas?
Ele deu grandes pulos, festejando-a, e saltou para a rua.
O carvoeiro, que estava sentado á porta, perguntou-lhe:
— ¿Tem muita vontade de saber a história do Vicente, Bertazinha?
— Se tenho! Sou tão amiga dêle!…
— Pois então eu lha conto: a gente da minha terra ganha a sua vida, principalmente, fabricando carvão de madeira, carvão de sôbro, como para aqui lhe chamam. De lá me vem todo aquele que aqui vendo. Um dia de março — faz neste dois anos, — andava eu lá tratando dum negócio de carvão, quando, aproximando-me da fenda dum rochedo, encontrei um ninho de corvos.
— ¿Eles fazem ninho nas fendas dos rochedos?
— Fazem. E nas árvores tambem. São muito engraçados os seus ninhos, todos forrados de pêlos, penas e musgos. Mas, como ia dizendo, encontrei o ninho com tres ovos dentro…
— ¿Eles põem só três ovos? perguntou Berta.
— Põem de três a seis, mas não são como os das galinhas: são esverdinhados e têem manchas irregulares. Vi que eram três porque o macho que os estava chocando emquanto a fémea tinha ido comer, levantou-se para lhe ceder o logar.
— Tem graça!
— Muita. Êles nascem nùs e comem pássaros, ovos, ratos, e tudo que os pais podem pilhar. Estes têem muito cuidado nos filhos e, quando se aproximam do ninho, é com a mesma prudência com que o avarento vai vêr o cofre do dinheiro que tem escondido. Chegam a aprender a voz de certos animais e até a pronunciar algumas palavras mais simples. Mas, como eu lhe ia contando, vi que o ninho não tardaria a ter habitantes pequenos. Afastei-me com cautela e dei-me a vigiá-lo com prudência igual á dos pais. Fiz projetos, e um dia, com o auxílio do meu irmão, consegui apanhar todos no ninho á excepção dos pais. Fiquei com um casal, que criei, e dei o terceiro a meu irmão. Esse pouco viveu. Ou por falta de cuidados ou porque tinha de ser, um mês depois morreu.
— ¿E como se chamava esse?
— Era o Danado. Chamaram-lhe assim porque dava conta de tudo com o bico. A fémea do Tio Vicente
era mais feia do que êle: não tinha, como nenhuma tem, o mesmo brilho na plumagem, mas era tambem muito mansa e inteligente. Roubaram-ma um dia aí na rua, não sei como, e nunca consegui saber quem ma levou. Chamava-se Engrácia, e dava cabo de tudo que, por fôrça ou por astúcia, lhe caía no bico. O Tio Vicente é sociavel. Não vôa porque lhe cortei as guias, mas defende-se contra gatos e cães e leva-os de vencida; mas, se a educação lhe fez perder der alguma coisa dos seus instintos crueis, tem um vício de que não há meio de o curar.
— ¿Qual é?
— A ladroíce.
— ¿E os pais dêles? Que fizeram quando deram pela falta dos seus filhinhos?
— Não sei. Naturalmente entretiveram-se a voar pelas alturas, a crocitar chamando pelos outros e fôram na sua companhia caçar alguma lebre, emquanto as aves de rapina os não caçavam a êles. Este é um dos corvos mais lindos e maiores que eu tenho visto. Tem quasi tres palmos de comprimento.
— Meu pai teve um que nem meio palmo tinha: de repente parecia um melro.
— Eu sou muito amigo do Tio Vicente, mas olhe que êle já me tem dado desgostos…
— ¿Desgostos?
— É verdade. Por causa dêle já tive de ir ao Govêrno Civil.
— ¿Como foi isso?
— Vinha um freguês aqui ao vinho e trazia o dinheiro numa taleiga…
— ¿O que é taleiga?
— E’ um saco pequeno. O homem entrava, sentava-se e pousava o saquito junto dêle. Um dia, em que entrou mais pela bebida, o Tio Vicente pegou no saco e escondeu-o. O freguês chamou-me ladrão, foi dar parte á polícia de que eu o tinha roubado e vieram prender-me. Mas o caixeiro, que é um bom rapaz,
O freguês chamou-me ladrão…
tanto procurou, que encontrou o saco e conseguiu provar, com o testemunho dos fregueses, que tinha sido o côrvo, e não eu, o ladrão. Estive para o dar, mas, como o criei de pequenino, não tive ánimo.
Nisto, uma mulher chamou o carvoeiro, que correu a aviá-la.
Berta ficou na janela a cismar e por fim, limpando uma lágrima que lhe corria pela face, chamou;
– Tio Vicente!
O côrvo, aos saltos, abeirou-se do peitoril.
– Ouve lá, disse-lhe Berta: eu dou-te tudo que quizeres, mas has de prometer-me que não roubas mais nada a ninguem.
A mãe de Berta, que entrava naquele momento no quarto, desatou a rir.
– ¿De que ri, mãezinha?
– O côrvo não promete nada; mas, quando o fizesse, não saberia cumprir. É ladrão por instinto.
– Nesse caso não posso continuar a ser amiga dêle, nem a dar-lhe nada. Não devo fazer festas a um ladrão.
A mãe de Berta tornou-se séria, e disse-lhe:
– O sentimento que acabas de exprimir, e que julgas ser recto, é odioso e feio: nasce do orgulho e da vaidade. Nós todos, minha filha, somos sujeitos a errar; e, se os bons se afastarem dos maus, ¿quem tornará bons os maus?
Berta abaixou os olhos, córando.
A mãe beijou-a e disse-lhe:
– Isto não é ralhar: é dizer-te que a nossa consciência é o único juiz das nossas acções, e nunca a opinião pública, quasi sempre inclinada ao mal, deve influir nela. Procura emendar o côrvo, faze-lhe o bem que puderes, sê sua amiga, mas não estimes o seu caracter. Se êle, em vez de ser um animal, fôsse uma pessoa, o teu bom exemplo talvez lhe desse o desejo de emenda.
– Tem razão, mãezinha. O côrvo não tem culpa de ser côrvo.
E, depois dum momento de silêncio, perguntou:
– Não está zangada comigo por eu ter pensado mal?
– Minha filha, se Deus perdôa a todos, Êle, que é a suprema perfeição, não podemos nós, sêres imperfeitos, ser mais severos. E o teu erro é muito pequeno. Paga-se – ¿sabes com quê? –
– ¿Com quê, mãezinha?
– Com um beijo.
– Então deixe-me dar-lhe mil.
E lançou-se ao pescoço da mãe, num movimento de irreprimivel ternura.