Ilíada (Odorico Mendes)/VII

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Assim, das portas rui Heitor mais Páris,
Ambos a respirar bélico incêndio:
Com tanto anelo festejados foram,
Como o vento que um deus bafeja amigo
Do afã do remo a nautas quebrantados.
Páris mata a Menéstio, que olhipulcra
Pariu Filomedusa em Arna ao régio
Areito porta-clava; o irmão, de um bote,
Sob o elmo o colo talha e estira Eione.
Ao Dexíada Ifino, que montava,
Glauco dos Lícios de azagaia a espádua
Fere, e do coche o atira agonizando.
Vendo a cerúlea déia o Graio estrago,
Lá do Olimpo frechou para Ílion santa;
Febo, o triunfo aos Troas desejando,
No enxergá-la de Pérgamo, apressou-se;
Topam-se ao pé da faia; o Délio enceta:
“Por que fúria e paixão voltaste, ó Palas?
A indecisa vitória aos Gregos trazes?
Não tens dos Frígios dó; mas, se me atendes,
Suste-se o morticínio; ao depois, guerra,
Té que Dardânia acabe; já que n’alma
Vos compraz sovertê-la, ó cruas deusas.”
“Para isso cá desci, Tritônia acode;
Porém como aplacá-los?” - Segundou-lhe
O Dial Febo: “O ânimo exaltemos
De Heitor doma-corcéis, que desafie
A duelo mortal qualquer dos Dânaos;
E os de fúlgida greva, de indignados,
Algum excitarão que a briga aceite.”
Ela consente. Ao genitor benquisto
Heleno, este aventando arbítrio e acordo,
Apresenta-se a Heitor: “Ó tu Priâmeo,
Como Jove sensato, o aviso queres
Seguir fraterno? Aquieta Aqueus e Troas:
A duelar provoca os mais famosos;
Inda não te é chegada a hora extrema;
Isto mesmo colhi da boca a numes.”
Regozijou-se Heitor com tal conselho:
A haste ao meio pegando, avança, e as hostes
Retém, sossega. O Atrida os seus refreia.
N’alta faia de Jove Apolo e Palas,
De abutres sob a forma, alegres pousam,
Vigiando os guerreiros que descansam,
De elmos, broquéis, de lanças eriçados.
Qual, de Zéfiro à súbita refega,
Negreja o ponto e freme, as densas turmas
Acaica e Frígia na campanha ondeiam.
Eis de permeio Heitor: “Aquivos, Teucros,
O que encerro no peito ouvi-me atentos.
Não manteve o Satúrnio os pactos nossos;
Mil desastres medita e nos reserva,
Té que ajoelhe a turrígera cidade,
Ou em destroço as naus vogando fujam.
Cavaleiros de prol na Grécia há tantos:
Um de mor brio, em singular certame,
Se atreva ao divo Heitor, medir-se venha.
Proponho, e o testemunhe o padre sumo:
Se do herói caio ao bronze, leve as armas,
Deixe porém que Ilíacas matronas
Em piedosa fogueira me consumam;
Se a cruenta vantagem dá-me Apolo,
O arnês lhe tirarei, que em Ílio sacra
Do Longe-vibrador pendure ao templo,
E rendido seu corpo à instruta armada
E exéquias feitas, os crinitos sócios
Do amplo Helesponto às abas o tumulem.
Em remeira galé do pego bradem:
- Um valente ali jaz de antigas eras,
Que arrostando-se a Heitor morreu com honra. -
E eterno passarei de boca em boca.”
Entre o pejo e o temor, tudo é silêncio.
Menelau mesto surge e exprobra e geme:
“Que! Jactantes Aqueus, antes Aquivas,
A Heitor nenhum se afouta? Oh negra infâmia!
Quedos, em água e pó sejais desfeitos,
Cobardes sem pudor. À liça eu parto;
Que afinal o vencer do Céu depende.”
Loução já se arreiava; e ao Teucro braço,
Que o seu muito mais forte, a luz perdera,
Se, em pé da Grécia os reis, o irmão potente
Não lhe aferrasse a destra: “Enlouqueceste?
Siso, aluno de Jove, a dor sopeia;
De afrontar ao Priâmeo não capriches
Terror dos campeões: o próprio Aquiles
Teme encontrá-lo e ter na glória quebra.
Entre os sócios te assenta: os Gregos outrem
Suscitarão. Pugnaz e insaciável
Seja Heitor, eu presumo que de veras,
A salvar-se do lance e ardente lide,
Os joelhos curve e refocile os membros.”
Da razão convencido e mitigado,
Os servos seus com júbilo o desarmam.
Então Nestor: “Que luto invade a Grécia!
Que ais soltará Peleu, facundo e sábio,
Équite aos Mirmidões antigo espelho,
Que alvoraçado em casa me inquiria
De Aqueus filhos e pais, se ora abatidos
O saiba todos e de Heitor medrosos!
Alçando as palmas, rogará que a Dite
A alma se vá dos órgãos desatada.
Fosse eu qual era, oh! Jove, Palas, Febo,
Quando os hastatos Árcades e os Pílios
Ante o rápido Céladon pugnavam,
De Feia aos muros, do Jardano às ribas!
Divo Ereutalion, na frente as armas,
Tinha de Areito. Areito rei, que as damas
E os varões Corinete apelidavam,
Pois, de arco e pique não, de férrea maça
Hostes batia. Num carreiro, estorvo
A manejá-la, por traição Licurgo
De hasta o salteia, ressupino o calca,
Despe-lhe o arnês, do brônzeo Marte prenda:
Sempre ao depois o trouxe nas batalhas,
Té que envelhece e o doa ao companheiro
Fido Ereutalion. Com tal socorro
Esse atrevido provocava a todos,
E todos de encará-lo estremeciam;
Mas eu, do exército o menor, seguro
Na força e ardência, me travei com ele:
De Minerva por graça, obtive os gabos
De conculcar o aspérrimo gigante,
Que na arena vastíssimo estendeu-se-me.
Tivesse o meu vigor e aquela idade,
Que não me aguardaria o herói Troiano;
Mas, da Grécia ó fortíssimos guerreiros,
Nenhum de vós se move a combatê-lo!”
A repreensão do velho incitou nove:
O mor cabo se ergueu, Diomedes logo;
Os robustos Ajax de ardor vestidos;
Idomeneu e Merion seu pajem,
Do homicida Eniálio êmulo digno;
Eurípilo Evemônides preclaro,
E Toas de Andremon e o grande Ulisses:
Cada qual ser primeiro ambicionava.
O Gerênio tornou: “Decida a sorte;
O que for designado a Grécia o aprove:
Ele na alma terá do esforço o prêmio,
A livrar-se da luta e afronta grave.”
Nisto, um por um, a cédula marcada
No capacete a lançam de Agamêmnon;
Mãos e olhos para os céus, a turba orava:
“Padre, caia em Ajax, caia em Tidides,
Caia a sorte no rei da áurea Micenas.”
O elmo agita Nestor: sai um que espalha
Geral contento: a cifra à destra e em roda
Ia o arauto mostrando, e a recusavam;
Té que Ajax, que a traçou, de um só relance
A reconhece, imerso em gozo a toma,
Larga-a no chão gritando: “É minha, ó sócios,
Oh! que prazer! de Heitor vitória espero.
Sus, enquanto me arneso, ao bom Satúrnio
Convosco deprecai, não o ouçam eles;
Ou seja em alta voz, ninguém tememos.
Na pátria Salamina exercitado,
Força ou perícia alheia não me abala.”
Fitando o azul convexo, entoam preces;
E um do povo: “Triunfe o Telamônio,
Do Ida augusto senhor, máximo e eterno!
Mas, se amas o Troiano e dele curas,
Equilibra o valor e a glória de ambos.”
Arma-se Ajax, de ponto em branco fulge.
Qual Marte Giganteu marcha entre humanos,
Por Jove expostos à roaz discórdia
E guerra atroz; com vulto assim medonho
Sorrindo o herói, muralha dos Aquivos,
Alarga os passos, a hasta ingente libra:
Do aspecto os seus com regozijo fremem;
Aos Troas frio susto os ossos corre;
Mesmo de Heitor o coração palpita:
Mas não pôde evadir-se e entrar na chusma,
Sendo quem promovera o desafio.
Vinha Ajax de pavês como érea torre,
Que em Hila o exímio correeiro Tíquio,
Seu apaniguado, lhe muniu de sete
Couros de nédios bois, e em cima de ênea
Lâmina oitavo o reforçou; com ele
Dos peitos resguardado, perto e firme
Troveja: “Agora provarás, Dardânio,
Quão lesto os Graios príncipes duelam.
Bem que o rompe-esquadrões Peleio Aquiles,
Animoso leão, curta a seu bordo
Ira e despeito contra o sumo Atrida,
Restam muitos e tais que barba a barba
Te resistamos. O combate enceta.”
E o magno Heitor: “Ó maioral divino,
Grã Telamônio, imbele não me julgues
Ou menino ou mulher: eu sei batalhas
E matanças dispor, zombar de ataques;
Mover sei na direita, sei na esquerda
O ardente escudo; em prélio sei pedestre
Do sevo Marte ao som medir meus passos,
Montar de salto, afoguear as éguas.
Mas homem tal ferir não quero a furto;
Aguarda o bote, que oxalá te alcance!”
E o longo arremessão da enorme adarga
Seis couros entra, ao sétimo se apega;
Da lança indômita o reparo extremo,
Que era oitavo e de bronze, intacto fica.
Veio o turno de Ajax, cuja hasta horrenda
Na hostil profunda lúcida rodela,
Finca-se entre a couraça artificiosa,
Junto ao vazio a túnica espedaça;
Heitor se torce e a feia morte ilude.
Seu pique um do outro saca, investem-se ambos,
Crus famintos leões ou renitentes,
Híspidos javalis. No escudo amolga,
Sem penetrá-lo, a cúspide Priâmea.
A rodela, num pulo, Ajax perfura,
Sangra o pescoço ao dono arremetente;
O cruor mana escuro. Mas não cessa
O galeato herói: retrocedendo
No campo agarra válido um penedo
Áspero e denegrido; o centro abola
Ao dobrado broquel de tergos sete;
Circunsoa o metal. Mor pedra erguida,
Ajax com fúria imensa a expede e roda:
O molar seixo quebra a Heitor a tarja,
Que, aos joelhos magoado e a tarja aos peitos,
Cai de espinhaço; mas levanta-o Febo.
Já se iam vulnerar de espadas, quando
Núncios de Jove e dos mortais, o Acaico
Taltíbio e Ideu Troiano, cautelosos
Os cetros seus na briga interpuseram.
E Ideu falou perito nos conselhos:
“Não mais, diletos filhos: do Tonante
Ambos amados sois, terríveis ambos,
Confessamo-lo todos; mas é noite,
Cumpre à noite ceder.”- E o Telamônio:
“Ideu, pronto obedeço; Heitor comece,
Que os Dânaos provocou mais destemidos.”
Acode o bravo Teucro: “Ajax, dos Gregos
És lanceiro o mais guapo; o Céu doou-te
A grandeza, a prudência, a valentia:
Suspendamos, até que noutro encontro
A um de nós a fortuna entregue a palma.
Noite é, ceda-se à noite: às naus Aquivas
A alegrar volve amigos e consócios;
Volvo de Príamo à cidade vasta
A consolar os meus e as pias donas
De roçagantes vestes, que suplicam
Por mim no santuário. Mutuemos
Comemoráveis dons; e os nossos digam:
-Eles em voraz sanha combateram,
Mas com sinais de estima se apartaram.”
Nisto, ofertou-lhe a espada claviargêntea,
De primor a bainha e fino bálteo;
Purpúreo cinto recebeu lustroso.
Aos Aqueus um regressa e o outro aos Frígios;
Que, em susto há pouco, ao vê-lo exultam salvo
Do invicto braço, e às portas o acompanham.
Ovante Ajax, à tenda Agammenônia
Seus grevados Grajúgenas o escoltam.
O amplo-reinante ali sacrificava
Qüinqüene touro ao padre onipotente:
Esfolam-no, retalham-no, espostejam,
De espeto as carnes cuidadosos assam.
Pronto o festim, regalam-se os convivas
De iguais porções; a Ajax embora desse
O rei dos reis em honra o dorso inteiro.
Exausta a fome e a sede, abre a consulta
O facundo Nestor, cordato sempre:
“Atridas e mais chefes, confundido
O atro sangue no límpido Escamandro,
Muitos crinitos Graios Marte acerbo
Tem mandado a Plutão; na aurora, tréguas.
De mus e bois em carroções colhidos,
Queimem-se os mortos junto à frota; as cinzas,
De volta à pátria, aos filhos seus rendamos.
Todos numa fogueira e num sepulcro,
Das naus e deles em defesa, torres
Com portões para carros perto alcemos;
Cave-se em roda um fosso, que proíba
De équites e peões o ardido assalto.”
O ancião termina, os príncipes aplaudem.
Na cidadela, ao pórtico Priâmeo
Tumultuava trépida assembléia;
Sábio Antenor discorre: “O que em mim sinto
Ei-lo, Dardanos, Teucros e aliados.
Perjúrio é contender contra os Atridas:
Restitua-se Helena e seus tesouros;
Senão, vos digo, triste fim teremos.”
Mal acabava, arrebatado surge
Páris, da loura bela Argiva esposo:
“Agravas-me, Antenor; al tu podias
Excogitar: se falas sério, os deuses
Roubaram-te o juízo. A minha Helena!
Ah! não, declaro à face dos Troianos;
Sim de Argos restituo o espólio todo,
Mais do meu lhe acrescento.” E foi sentar-se.
Então Príamo, igual no siso aos numes,
Ergueu-se: “Ouvi, Dardânios e aliados,
O que hei no peito. O exército se esparza,
Depois da ceia, em rondas e atalaias;
Vá-se Ideu na alvorada à grega frota,
E anuncie aos Atridas a promessa
Do autor desta pendência. Em tal ensejo,
Para os mortos queimarmos tréguas peça;
E findas, só da guerra o estrondo pare
Ao dispor a fortuna da vitória.”
Todos, com mais respeito, lhe obedecem;
Em ranchos vão cear. N’alva Ideu parte;
Em parlamento, à popa Agamemnônia,
Achando os Graios servos de Mavorte,
No meio anunciou com voz canora:
“Atridas, vós aqueus de fina greva!
Príamo e outros senhores me ordenaram,
Grato vos seja! que a promessa exponha
Do autor desta pendência: os bens que trouxe
(Ele antes acabara!) em cavos bojos,
Dar-vos quer todos, e acrescenta muitos;
Mas, apesar da instância dos Troianos,
Vos denega a mulher que em virgem teve
Menelau generoso. E também tréguas
Pedem, para os cadáveres queimarmos;
E findas, só da guerra o estrondo pare
Ao dispor a fortuna da vitória.”
Silêncio em torno reina, até que o márcio
Diomedes o quebrou: “Ninguém receba
Riquezas de Alexandre, ou mesmo Helena:
A quem não for criança é manifesto
Que iminente ruína os Teucros urge.”
A aclamação geral seu dito aprova.
E Agamêmnon a Ideu: “Já tens, arauto,
A unânime resposta, e eu dela folgo.
Quanto à queima dos mortos, consentimos;
Dilatar não se deve a cerimônia
Jucunda aos manes: este pacto assele
De Juno o excelso troador marido.”
E aos imortais aqui seu cetro eleva.
Dardanos e Troianos congregados
O núncio aguardam, que, de volta a Ílio,
A resulta expendeu no ajuntamento.
Uns a lenhar, a carrear os corpos
Aprestam-se outros: por igual motivo,
Das instrutas galés desembarcavam.
Tanto que o sol, ferindo monte e vale,
Do manso undoso pélago arraiava,
Topam-se todos. Cada um seus mortos
Só distingue ao lavá-los da sangueira,
E lamentando os metem nas carroças.
Do grã Príamo aos seus vedado o choro,
Tácitos os cadáveres cumulam,
E celebrada a queima, se recolhem.
Reprimindo igualmente a pena e o pranto
Combustos numa pira os tristes restos,
Volvem-se às naus os de elegante greva.
Antes d’alva, ao crepúsculo, operários
Um túmulo comum, junto à fogueira,
Aos finados erigem: muro e torres,
Das naus e deles em defesa, perto
Com portões para carros edificam;
Fosso profundo e largo externo cavam,
De paliçada em roda guarnecido.
A arte e perícia dos comantes Gregos,
Do senhor dos trovões a par, os deuses
Olham com pasmo. O Enosigeu Netuno:
“Júpiter, vozeou, quem há no mundo
Que de ora avante nos consulte e implore?
Não vês como os Aqueus de ênea loriga,
Sem preces nem solenes sacrifícios,
Trincheira e fosso e torreões fabricam?
Por onde a luz se expande, irá seu brado
Calar o das muralhas que eu e Apolo
A Laomedonte a custo levantamos.”
Carrega-se o Nubícogo enfadado:
“Poderoso Netuno, hui! que proferes?
A deidade inferior fique esse medo:
Por onde a luz se alargue, a tua glória
Se alargará. Tolera, e assim que os Dânaos
Do caro ninho em busca se embarcarem,
Para que de obras tais o rasto apagues,
Desmorona, submerge, arrasa tudo.
Cobre e de areia inunda a vasta praia.”
Cai, nisto, o Sol: do afã cessando, matam
Nas tendas reses e da ceia cuidam.
Em baixéis remetera Euneu de Lemnos,
Prole de Hipsípile e Jason monarca,
Medidas mil de vinho aos dois Atridas;
O exército o comprava a bronze, a ferro
Assacalado, a peles, bois e escravos:
O festim se adereça. Inteira a noite,
No campo os Dânaos, na cidade os Frígios,
Ledos se deleitavam, quando alerta
Aziago toa o próvido Satúrnio.
Pálido lavra o susto; o vinho entorna
Dos copos cada qual, nenhum bebia
Sem prelibar ao prepotente Jove.
Deitam-se alfim, no brando sono pegam.