Ilíada (Odorico Mendes)/X

Wikisource, a biblioteca livre

Liga os demais a noite em mole sono;
Em claro a passa o rei de tantas gentes,
Gravíssimos cuidados ruminando:
Qual de Juno pulcrícoma o consorte
Lampeja crebro, se aguaceiro ajunta,
Granizo ou neve que embranqueça as lavras,
Ou se abre à guerra amarga as fauces negras;
Tal suspira, e as entranhas lhe estremecem.
Turbado considera em cerco de Ílio
Os muitos fogos, o rumor dos homens,
Das tíbias e trombetas; mas, se atenta
O Aquivo exército e as silentes praias,
Aos Céus queixando-se os cabelos carpe,
No íntimo geme o coração brioso.
Melhor enfim parece-lhe ao Nelides
Ir consultivo e combinar com ele
Como os Dânaos defenda. Ergue-se, os peitos
Reveste, calça fúlgidas sandálias,
De um leão fulvo com sanguíneos laivos
Pele talar enverga, apunha a lança.
De Menelau às pálpebras o sono
Também não pousa; pelos Dânaos treme,
Que em seu favor sulcando a azul campina,
Audazes debelar vieram Tróia.
De um pardo forra com manchado espólio
O dorso largo, aêneo casco mete,
E hasta na mão robusta, o irmão procura,
Supremo regedor que o povo adora.
À popa ainda se armava, e ledo encontra
Ao pugnaz Menelau, que assim lhe fala:
“Armas-te, augusto irmão? Noturno espia
Mandar intentas? Que nos falte hei medo
Quem sozinho se arrisque pelo escuro:
Requer nímia ousadia empresa tanta.”
A quem o régio irmão: “Celeste aluno,
Precisamos conselho em tal perigo,
Pois, mudado o Satúrnio, hoje prefere
De Heitor os sacrifícios. Nem vi nunca,
Nem de algum filho ouvi de deus ou deusa,
Que num só dia como Heitor obrasse!
Mortal sim, mas de Júpiter valido,
Executou façanhas extremadas,
Que longo viverão na mente Argiva.
Tu corre, a Ajax e Idomeneu convoca;
Vou Nestor acordar, que incite os guardas,
Cuja coorte sacra, entregue ao filho
Mormente e a Merion, de grado o atende.”
Submisso Menelau: “De mim que ordenas?
Ficar à tua espera, ou, convocados,
Vir ter contigo?” - O rei tornou-lhe: “fica;
Receio um desencontro em desvairados
Caminhos do arraial. Por onde fores,
Grita e alerta, nomeia em honra a todos
Seus pais e estirpe; o tom de orgulho evita.
Participemos das comuns fadigas:
Desde o berço a lidar nos fadou Jove.”
Com estas precauções o irmão despede.
Acha na tenda o maioral Nelides
Em brando leito, ao pé luzentes armas,
O escudo, o capacete e lanças duas,
O bem lavrado boldrié, que o cinge
Ao comandar cruíssimas batalhas,
Pois dos anos ao peso inda reluta.
No cúbito arrimado, alça a cabeça,
A perguntar: “Quem ronda o campo e a frota
Por treva espessa, quando os mais repousam?
Buscas um guarda ou companheiro? Fala;
Que hás mister? Sem falar não te apropínqües.”
“Nestor, glória da Grécia, o Atrida acode,
Sou Agamêmnon. Mais que a todos Jove
Me oprime, e cessará quando este alento
Em mim cesse, e os joelhos não se dobrem.
Vagueio, por fugir-me o grato sono:
A guerra, o dano dos Aqueus me pesa;
Por eles desfaleço esmorecido;
O coração tituba e sai do peito,
Convulsos tenho os membros. Já que velas
A meditar, à guarda me acompanhes;
Vejamos se em descuido as sentinelas
Dormem cansadas: próximo o inimigo,
Empreenderá talvez noturno assalto.”
E o de Gerena: “O providente padre
Nem tudo acabará que Heitor cogita;
Creio, alto rei, que amargo lance o espera,
Se Aquiles bane a cólera funesta.
Já já te sigo. Despertemos outros,
Diomedes grã lanceiro; ínclito Ulisses,
O ágil filho de Oileu, valente Meges.
Ao divo Telamônio alguém se expeça
E ao régio Idomeneu, que as naus tem longe,
E um do outro não perto. Embora o estranhes,
O honrado amigo Menelau censuro:
Dorme, e tu só te afanas? Não devera
Contigo os chefes deprecar afável,
Quando urge uma cruel necessidade?”
Replica o Atrida: “Às vezes a espertá-lo
Eu te exorto, ancião, porque amiúde
Hesita e se retém, não por incúria,
Não por moleza, sim por ter os olhos
Fitos no meu exemplo: a mim contudo
Hoje ele antecipou-se, e os que desejas
Foi convocar. Às portas e entre os guardas
Vamos, que juntos acharemos todos.”
E Nestor: “Nenhum Grego há jus agora
De argüi-lo e impugnar seu mando e aviso.”
Então se arnesa, as nítidas sandálias
Ata aos pés, amplidúplice e punícea
Clâmide abrocha de lustrosa felpa,
Rijo eriagudo pique hasteia, e parte.
Ao gritar junto às naus dos lorigados,
O cauto Ulisses lhe surgiu da tenda:
“Porque sós percorreis na opaca noite
O campo e a frota? ameaça algum desastre?”
E o Gerênio: “Prudente como Jove,
Longânimo Laércio, não te agastes:
Dor crua agrava os Dânaos; vem conosco,
Outro invitemos que da fuga ou prélio
Deve deliberar. “Ulisses pronto
À tenda volta, embraça o escudo e segue-os.
Dão com Diomedes fora, e em torno os sócios,
Por travesseiro a adarga, a ressonarem,
Fixas de conto as lanças, o êneo lume
O do raio imitando: o herói dormia
De um boi selvagem no estirado couro,
Com purpúreo tapete à cabeceira.
O idoso Pilo ao calcanhar o toca,
E o repreende e admoesta: “Sus, Tidides;
Inteira a noite logras? Nem te acorda
O fragor dos Troianos, que se acampam
Na colina e das naus mui pouco distam?”
O herói sacode o sono e clama: “É nímio
O ardor e zelo teu; falecem moços
Que pelo acampamento aos reis despaches?
És, magnânimo velho, és incansável.”
E ele: “Amigo, assim é, galhardos filhos
Tenho e outros muitos que chamar-vos possam;
Mas risco atroz nos preme: vida ou morte
Pende aos Gregos do gume de um cutelo.
Tu, que és moço e de mim te compadeces,
Ajax de Oileu convoques e o Filides.”
Leonina talar pele ombreia fulva
Logo Diomedes, pega a lança e corre,
Volve aqueles guerreiros conduzindo.
Juntam-se à guarda, e alerta em armas todos
Estão seus cabos. Se em vigia assídua
O redil ovelhum molossos rodam
E o lobo sentem vir do monte à selva,
Mesclam ladros às vozes dos pastores,
A quem morreu nas pálpebras o sono:
Destarte, morto o seu na infausta noite
O campo Teucro olhando os atalaias,
Ao mais leve rumor atentos eram.
O ancião folga e os louva: “Assim! meus filhos,
Nenhum se renda ao pérfido repouso,
Por não sermos escárnio do inimigo.”
Eis salta o fosso, e vão-lhe após os Dânaos
Reis congregados; à consulta acrescem
Merion e o Nestório Trasimedes.
Num sítio pousam da sangueira puro,
Entre o espaço onde, envolto em sombra densa,
Heitor pôs termo à Grega mortandade.
Quando uns e outros vários debatiam,
Fere o ponto Nestor: “Acaso, amigos,
Há quem, no braço afouto; ao campo extremo
Dos bravos Teucros vá, para que apanhe
Desgraçado inimigo, ou mesmo indague
Se eles ali permanecer tencionam,
Ou recolher-se ufanos da vitória?
Incólume e informado nos regresse,
Que terá fama eterna e insigne prêmio:
De cada capitão que em nau comanda
Preta ovelha e de mama um cordeirinho
Alcançará, presente incomparável,
E sempre no banquete um posto honroso.”
Disse; todos em roda emudeceram,
Falou porém Diomedes valoroso:
“O coração, Nestor, a entrar me impele
No próximo arraial; mas outro sócio
Me dará mor denodo e mor firmeza:
Dois entre si advertem-se, combinam;
Um, se concebe, é lento e menos ousa.”
Querem-no já seguir de Marte servos
Os Ajax, Merion; com ânsia o filho
De Nestor; Menelau de ardida lança:
Anela penetrar no campo Ulisses,
Que tem sempre na mente empresas grandes.
E o rei dos reis: “Amigo predileto,
Prestam-se muitos, à vontade escolhe;
Nem por algum respeito ou má vergonha,
Considerando o sangue e a realeza,
Um inferior guerreiro tu prefiras
Ao que julgues mais apto.” - Assim discursa
Pelo seu louro Menelau temendo.
Porém Diomedes: “Se me dás a escolha,
Posso o Laércio preterir divino,
Paciente, animoso, caro a Palas?
Com tão completo herói, constante e sábio,
Ileso hei-de sair de ardentes chamas.”
E Ulisses: “Nem me gabes, nem rebaixes,
Que os Dânaos do que valho estão cientes.
Vamos, Diomedes; as estrelas caem,
Acena o albor, a noite já descamba,
Resta apenas um terço.” - Vestem-se ambos
De hórridas armas. Do belaz Nestório
Tidides, que deixara a bordo a sua,
Recebe adaga ancípite e a rodela,
E sem crista e cimeira elmo taurino,
Simples galero, defensão de imberbes.
Cede Merion a Ulisses o terçado,
Coldre e arco, e de pele um capacete
Que, de rígidos loros dentro o forro,
De javali tem fora os brancos dentes,
Em reforço com arte à roda apostos,
E feltro espesso o fundo lhe guarnece.
De Eliona as casas de Amintor Ormênio
Antólico arrombando, ali furtado
A Anfidamas, Citério o deu na Escândia;
Em penhor Anfidamas da hospedagem,
A Molo; Molo, a Merion seu filho,
Que ao Laércio cobriu com ele a fronte.
De ponto em branco, dos consócios partem.
Pela estrada Minerva à destra envia
Garça que, invisa em feia baça treva,
Grasnar ouviam. Ledo Ulisses ora:
“Filha do Egífero, a quem nada oculto,
Neste aperto me assiste, ó protetora,
Mais do que nunca; dá que às naus voltemos,
Findas árduas ações que aos Teucros doam.”
Tidides segue: “Ajuda-me e acompanha,
Indomável Tritônia, como a Tebas
A meu pai, dos Aqueus eriarnesados
Legado, que os largou do Asopo às ribas.
Aos cadmeios a paz Tideu levava;
Mas de volta acabou gentis façanhas,
Graças a ti, benévola deidade.
Preserva-me igualmente; em honra tua
Aneja imolarei do jugo intacta,
Larga de fronte, com dourados cornos.”
Encomendando-se à fautora Palas,
Deitam-se os dois leões por noite escura:
Por montes de cadáveres, por armas
Da carnagem recente ensangüentadas.
Também não dorme Heitor, excita os cabos
E com eles concerta: “Há quem se atreva,
Por obter alto nome e digno prêmio,
O inimigo espreitar? Prometo um carro
E de cerviz altiva os dois mais finos
Corcéis de junto a frota, a quem me explore
Se inda a velam de noite, ou se aterrados
E lassos de destroço, os Dânaos tratam
Só da fuga, e não mais guardá-la querem.”
Disse, e em redondo foi silêncio tudo.
Mas um Dólon, do arauto Eumedes filho,
Irmão de cinco irmãs, torpe de facha,
Leve de pés, em ouro e bronze rico,
A Heitor voltou-se: “Heitor, o ânimo forte
A perscrutar me instiga as naus veleiras;
Arvora o cetro, o coche eri-esplendente
Jura dar-me e os frisões do exímio Aquiles.
Explorador não sou que iluda e falhe:
Entrado no arraial, me acerco à popa
Agamemnônia; ali talvez da fuga
Ou da peleja os príncipes debatam.”
O cetro pega Heitor: “Fico ao de Juno
Altitonante esposo que essa biga
Outro nenhum transportará dos nossos;
Nela só brilharás.” Foi jura falsa;
Mas Dólon inflamado encruza a arco,
De lobo enfronha-se em fouveira pele,
De pele de fuinha um gorro encacha,
Toma dardo pontudo, e às naus caminha,
Donde por ele Heitor não terá novas.
Já, fora do tropel, cortava a trilha,
O Ítaco, ao lobrigá-lo: “Alguém, Diomedes,
Sai da parte contrária, acaso espia,
Ou despir os cadáveres pretende?
Passe por nós um pouco, e dele à pista,
O agarremos depois. Se em pés nos vence,
Para as naus, de hasta em reste, o impele sempre,
A fim de que não se esgueire e não se acolha.”
Desviam-se e agachados entre os mortos
Os deixa o incauto. Longe quanto os sulcos
De mulas distam, mais que bois aptadas
A charrua a tirar por denso alqueive,
Encalçam-no; ao rumor se tem, supondo
Ser o do sócio que avocá-lo vinham;
De lança a tiro, ou menos, reconhece-os,
Rápido move os joelhos fugitivo,
Mas eles apressados o perseguem:
Qual dois sabujos de raivosos dentes
Mais e mais lebre ou corça em brenha apertam,
Que cisca-se a guinchar, assim Diomedes
E Ulisses vastador o acossam lestos,
Impedindo a escapula. À guarda e à frota
Próximo o espia, a vulnerá-lo Palas,
Por que nenhum blasone de primeiro,
A Tidides influi, que bradou: “Pára,
Ou desta lança ao bote a vida rendes.”
Aqui, de jeito a vibra que lhe esflore
O úmero destro e finque-se na terra:
Dólon, quedo e medroso, os queixos bate,
Soa da boca pálida o rangido,
Aferram-no açodados, e ele chora:
“Vivo deixai-me redimir, que tenho
Bronze, ouro, ferro de lavor difícil,
E vos dará meu pai riqueza infinda,
Se preso me souber na Grega armada.”
Logo o matreiro: “Eu te afianço a vida,
Conta a verdade sem temor. No escuro
Às naus caminhas, quando os mais repousam!
Despir tentas os mortos? Vens mandado,
Ou por teu mesmo impulso nos espias?”
O mísero a tremer: “Num laço infesto
Caí de Heitor, o coche eri-esplendente
Prometeu-me e os frisões do exímio Aquiles,
Em prêmio de ir pela sombria treva
Explorar diligente, ao pé da frota,
Se inda a velam de noite, ou se aterrados
E lassos do destroço, os Dânaos tratam
Só da fuga e não mais guardá-la querem.”
Sorriu-se o astuto: “Apetecias muito,
Frisões que homem nenhum sofreia e doma,
Exceto o Eácio que gerou mãe deusa.
Mas tu sê franco: Heitor onde é que estava?
Onde o seu márcio arnês, onde os cavalos?
Onde o grosso da tropa, onde os vigias?
Eles ali permanecer intentam,
Ou recolher-se alegres da vitória?”
Volve o de Eumedes: “A verdade exponho.
De Ilo ao túmulo sacro, Heitor e os chefes,
Livres do burburinho, deliberam;
Certos não há vigias e atalaias;
Os Troianos, senhor, todos alertas,
Exortam-se ao luzir de acesos fogos;
A multidão porém de auxiliares,
Sem mulheres nem filhos, nos da terra
Descansa e dorme.” - “E dormem, torna Ulisses,
Mistos mais os Troianos cavaleiros,
Ou com longo intervalo? Nada encubras.”
E Dólon: “Nada encubro. Ao mar vizinham
Cares, Caucomes, Lelagas, Peones
Arci-recurvos, ínclitos Pelasgos
A Fimbra, Lícios e arrogantes Mísios,
Eqüestres Frígios, campeões Meônios,
Para que mais! se o campo entrar desejas.
Sentou na extrema os Traces recem-vindos
Reso Eiônides rei com seus cavalos,
Quais nunca vi grandíssimos e belos,
Auras na rapidez, no candor neve:
O coche é de relevos de ouro e prata;
Áureo o arnês de admirável artifício,
Não próprio de mortais, mais sim de numes.
Às alígeras naus levai-me agora,
Ou de rijo amarrai-me, até que à volta
Verifiqueis se falo ou não sincero.”
Minaz Tidides: “Certo embora informes,
De nossas mãos não contes evadir-te:
Se te soltarmos ora, ou te remires,
Virás espia ou combatendo às claras,
Em torno as mesmas naus; se aqui te mato,
Cessas por uma vez de ser danoso.”
Súplice a forte mão do Grego ao mento
Lança o infeliz; a adaga os tendões ambos
Da garganta lhe tronca; inda falava,
E rodou-lhe a cabeça na poeira.
De lobo a pele, de fuinha o gorro,
O extenso dardo e o arco renitente
Sacam-lhe os dois, e à predadora Palas
Oferta-os o Laércio deprecando:
“Aceita-os, alma deusa, a quem no Olimpo
Invocamos primeira; tu nos guia
Dos Traces ao quartel e aos seus cavalos.”
Disse, eleva o despojo, e a tamargueira
Folhuda em que o suspende esgalha, canas
Lhe enfeixa à roda, que tornando enxerguem
Na incerta pressurosa escuridade.
Entre armas e sangueira, enfim chegaram
Dos Traces ao quartel, que de fadiga
Ressonavam, dispostos em três filas.
Ao lado arneses belos, a parelha
Ao pé de cada um. No centro o Eiônides
A dormir, tinha atrás do coche atados
Em loros os sonípides ginetes.
Ulisses, que os descobre: “Ei-lo, Diomedes,
O guerreiro, os frisões que assinalou-nos
O morto espia. Tens a espada em ócio?
Desprega o teu valor; solta os cavalos,
Ou deixa-os ao meu cargo e imola os homens.”
A olhicerúlea então lhe dobra o esforço;
Aqui e ali talhava, os ais restrugem,
Roxa de sangue a terra: qual salteia
Truculento leão rebanho ou fato
Não vigiado; assim cai Diomedes
Sobre os Traces, e a doze arranca a vida,
Quantos ele estoqueia. Ulisses cauto
Pelos pés arredava, por que andando
Os novos crinipulcros não se espantem,
Pouco avezados a pisar cadáveres.
O herói vai ao trezeno, ao triste Reso,
Que expira ao despertar de um pesadelo,
Onde Minerva toda a noite a imagem
Lhe pôs daquela morte à cabeceira.
O Ítaco, desprendendo os corredores,
Pelos freios da chusma a subtraí-los,
De arco os fustiga, havendo-lhe esquecido
No vário assento o esplêndido chicote,
E a Diomedes adverte assobiando.
Este, se audaz insista na matança,
Pelo temão se o coche de áureas armas
Tire cheio, ou se o leve aos próprios ombros,
Dúbio examina; mas ali Minerva:
“Já, regressa aos baixéis; não te afugentem,
Ó filho de Tideu, caso outro nume
Alerte os Frígios.” Ele a voz divina
Sente e monta um cavalo: o seu verbera
De arco o Laércio; à desfilada arrancam.
O argenti-archeiro deus não cego espreita,
Vê com Tidides Palas; desce e grita
Furioso pelo Trácio Hipocoonte,
Bravo primo de Reso e conselheiro.
Este salta, examina o sítio vácuo
Dos corcéis e os guerreiros palpitantes
E o cruor fresco e negro; urrando geme,
Chama o parente. Num ruído imenso,
Tumultua-se o campo: o feito o assombra;
Salvarem-se os varões foi pasmo aos Teucros.
Junto ao corpo do espia Ulisses pára;
O sócio apeia-se, o cruento espólio
Toma e entrega ao de Júpiter valido,
E torna a cavalgar. Tocados voam
Para a frota os ungüíssonos contentes.
O Pílio o seu trotar sentiu primeiro:
“Se não desvairo, príncipes e amigos,
De cavalos o estrépito me soa.
Oh! se Diomedes e o Laércio fossem,
Com Troianos solípedes roubados!
Mas receio que à turba sucumbissem
Tão bizarros Aqueus.” - Mal acabava,
Desmontam-se eles: de alegria todos,
Estreitadas as destras, o saúdam.
Interroga Nestor: “Esses cavalos,
Nobre Ulisses, da Grécia adorno e brilho,
Donde os houvestes? Penetrando o campo,
Ou de um deus recebendo-os no caminho?
Radeiam como o Sol. Não fico ocioso,
Bem que velho, e combato sempre os Teucros;
Mas nunca tais corcéis meus olhos viram:
De encontradiço deus julgo um presente;
Sois ambos do Nubícogo mimosos,
Da Glaucopide sua amados ambos.”
E Ulisses: “Ó Neleio, ó glória nossa,
Com tamanho poder, um deus querendo,
Fácil nos doaria outros melhores;
Mas recém vindos estes são dos Traces.
Diomedes chefes doze e o rei matou-lhes;
Próximo às naus, do espia demos cabo
Que explorá-la Heitor e os seus mandaram.”
Disse, e fez os corcéis pular o fosso,
E iam com eles os Dânaos jubilosos.
Ao Diomedes presepe os ata em loros
Bem recortados, onde os mais comiam
Suave trigo, e à popa sua Ulisses
O de Dólon depõe sangüento espólio,
Enquanto a Palas sacrifício apontam.
N’aba do mar cervizes, coxas, pernas,
Do suor que lhes mana, os dois expurgam:
Depois que a sordidez mais crassa escorrem
N’água salgada e o coração confortam,
Em tinas polidíssimas se banham,
Untam-se de óleo, com prazer almoçam,
E de plena cratera entornam vinho,
Que a Minerva melífico libavam.