Inspirações do Claustro/Notas

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NOTAS


Meditação – pag. 14.

Eu conheço o ingênuo descarnado e comum desta peça poética, se seu nome é este. Tenho vergonha de chamar isto — meu. Não é por orgulho que o digo, nem por falsa modéstia: é pela verdade, que eu amo, pela verdade, a quem eu gosto de sacrificar toda a exterio­ridade ridícula, toda a convenção puramente social que a possa encobrir. Não posso me alargar muito nestas notas, — e me perdoarão alguma coisa pouco desenvolvida, porque a brevidade não traz sempre a clareza. Se me fosse licito deixar de fazê-las, seria melhor. Para quem leu somente o prólogo, são elas inúteis. Quem, porém, teve a paciência de ler sossegado, — o que eu acho difícil, — todas essas composições, a qual mais contraditória em aparência, esse preci­sará de alguma coisa mais. Eu não o saciarei entretanto, porque não posso.

A peça presente foi impressa há dois anos ou mais no Noticia­dor Católico. As poucas pessoas que lêem este periódico, aplaudiram — as Páginas do coração, — nome que lhe dei, então, e que, por extravagantemente romântico, risquei agora. É por isso que estas poucas pessoas gostaram, que eu também o deixo ir aí.

O apostolo entre as gentes – pag. 25.

Esta composição era bem indigna de ser oferecida ao Sr. Dr. Gonçalves Dias; Entretanto, há dois anos, tive o arrojo bastante im­prudente de lha dedicar! Hoje, sepultado conscienciosamente na convicção de meu nada literário, devo pedir-lhe o perdão de minha insolência.

Quanto ao pensamento geral desse poemeto, dirão que há aí panteísmo.

Não o sei. Confesso que não tinha essa intenção. Como coisas piores terão de assacar-me ainda, caio-me aqui.

Milton – pag. 63.

O pensamento desta composição é bebido, quase inteiramente, no autor que canto.

Eu a dedico ao meu amigo — Odorico — Octavio — Odilon. Tam pobre oferta! — Não lhe peço perdão, contudo. Sua alma de poeta está mais acostumada a amar, do que a perdoar. Conheço-a bastante.

O Renegado – pag. 111.

Não faço mais, nesta composição, do que desempenhar como po­dia o papel do judeu. Pobre povo! orgulhosos da predileção de Jeová, que julgam que ainda lhes assiste, erram às porções por todo o mundo, mas não há fundirem-se em nem uma nação! Ah! uma lá­grima sequer sobre eles... O primeiro dever do cristão é chorar o desgraçado.

Eu espero que muita gente se arrepie com um santo horror do que diz o pobre judeu aí. Mas era-me preciso pintar a verdade, ou renunciar à empresa.

É o caso de dizer com Beranger:

Mais il prêche en sot,
Moi, je ris en sage.

O Monge – pag. 122.

Eu não devia dizer nada acerca desse meu reverso dos Claustros. O exposto no prólogo vale para aqui.

Devo, todavia, confessar que em uma e outra composição há por de mais. Dizem que Napoleão, no rochedo de Santa Helena, exclamara que — não era ateu quem o queria ser. — Há pouco tempo também o grande Kossuth em um célebre — meeting — disse que — se esti­vessem em seu lugar, veriam que tinha febre, quando era obrigado a repetir discursos. — Eu digo uma e outra coisa do poeta, talvez com mais verdade. A inspiração ou a razão, segundo o profundo Cou­sin, — profundo apesar dos padres, — a inspiração ou a razão não é voluntária. A Poesia, isto é, o pensamento inspirado não vem segundo o desejo. Espera-se mais, e dá menos: espera-se menos, e dá mais. Há por isso, duas linguagens para o poeta: uma da inspiração ou da razão: outra do raciocínio ou da inteligência. Há alguma coisa de máquina cartesiana na primeira: porém que máquina sublime!

O Converso – pag. 144.

Quem se horripilou pelo pobre — judeu — horripilar-se-á, com me­lhor razão acaso por este pobre — converso. —

Minha intenção aqui é fazer o libertino, apesar de seu tom de sátira, apesar de si mesmo, dar claramente a preferência à religião cristão. Eu acho que o poeta lírico, — não só o épico, como queria Chateaubriand — deve encerrar o universo. É por essa convicção que, em minhas composições, faço-me, — não céptico, como dirão, não pirrônico sublimado, qual Montaigne, — mais apenas enciclopédico, tome que tem-se tornado tão escandaloso, que se tem hoje mo­dificado pelo de eclético. Eu confesso-me, pois, eclético: quero dizer que tenho a ambição de abarcar o mundo, não como Alexandre em seu todo, mas como os Apícios em seu melhor. Se diviso lá num ponto do céu um crepúsculo de poesia, tomo o pégaso de Homero, ou o anjo de Milton, e para lá me arrojo. Se sonho que numa caverna do abismo esconde-se uma figura poética, para lá me encaminho também pela mão de quem guiou Orfeu, ou pela mão de quem guiou o Dante.

Eu sei que os hipocritamente devassos devotos, — segundo a bela frase do Sr. Lopes de Mendonça, — não gostam disso. Ficam todos com os cabelos eriçados, como se vissem o tal monstro de Virgilio. Esses mesmos, que não poderão ouvir sem horror alguma de minhas insignificantes e mortas canções, estariam preparados para assistir com toda a satisfação religiosa a um auto de fé, hoje, agora, mesmo. Ai! quantos deles não estarão me olhando de revés, sentindo santas saudades da boda Inquisição.

E com efeito, meu livro, Jano de duas faces, figura versátil de Proteu, que vai-se metamorfoseando a cada página, estatua profética de Daniel forjada de não sei quantos metais, e finalmente de barro, — meu livro, pedra de escândalo, insânia de ímpio, ignorância de libertino, que entretanto faz mal, — meu pobre livro merece bem a fogueira, e com ele o renegado, ou o apóstata, que o fabricou.

Eu o reconheço.

Se fosse possível, porém, que os homens piedosos me ouvissem, eu lhes diria que meu primeiro tentamen poético, assim como apresento, não é de nem uma sorte um livro filosófico nem dogmático: eu lhes pediria que não se assanhassem a ponto de alevantar-me cada­falsos, como o enfurecido De-Maistre, que lhes serve de norma: que, com quanto eu receba com toda a paciência própria de meu espírito o epíteto de — ímpio — que eles me dão, lembrem-se todavia de que Helvécio, segundo eles mesmos, foi muito ímpio, e foi um bom­-homem, etc., etc., etc.

Este meu livrinho não é, como disse já, senão um acanhado ensaio. É uma pequenina messe, tal qual é possível com a idade ainda em flor. Os frutos da mocidade são sempre temporãos; mas há de se perdê-los, quando o sol tem obstinadamente esperdiçado tanto raio para amadurecê-los à força?

Transparece, portanto, aqui, um estudo rápido e passageiro, mais como uma ambição versátil, multicor, incerta, do que como um tra­balho metódico, sereno, profundo, — apanágio da idade madura. Há mais desejos, que pensamentos: mais crepúsculo, que luz: mais dúvidas, que proposições: mais pressentimento, que fé. Há uma vocação ardente, indeterminada, insaciável, quase infinita, para uma imagem, que não se define ainda, — para um incógnito, que, qualquer que seja, deve ser grande. Há uma contemplação do imenso, — um desespero talvez.

Creio que o estado de solidão monástica, por espaço de três anos, me fez algum mal...

Assim, este livrinho tornou-se um labirinto, onde eu mesmo custo a achar o fio. O que eu sei dizer, é que foi uma colheita do que, se­gundo meu gosto, achei de belo em tudo. A religião do Cristo, — este pensamento verdadeiramente digno de Deus, — abastava-me de inspirações.

Não sei se as recolhi todas, mas sei que as copiei bem mal. Nem todos tudo podemos, segundo a bela expressão de Virgilio. Ao mesmo passo as outras religiões, mais ou menos teológicas, mais ou menos filosóficas, adereça,vão-se cada uma com seu belo, e desafiavam-­me com ele.

Não me senti bastante forte para lhes resistir. Foi nesse período, quem sabe se de tentação? — que escrevi — A Religião do poeta, impressa no Noticiador Católico. Nessa espécie de bosquejo, que fiz então, das religiões, percebe-se bem o estado de meu espírito.

Julgo que, ao dizer isso, sou verdadeiro e franco.

Deixas-me! – pag. 157.

O jovem a quem é dedicada esta mesquinha composição, conta ape­nas dezessete a dezoito anos. Eu deposito sobre o talento deste moço as mais formosas esperanças. Nem uma de suas poesias viu ainda luz pública. Entretanto tem já em sua voluntária obscuridade pro­duzido algumas que lhe merecerão o salve de poeta, logo que aparecerem.

Eu ardo por saudá-lo primeiro que todos. Ao menos, se nem um mérito tenho por mim, contentar-me-ei com o que resultar, para minha consciência, aclamando um gênio.

Sou pontual aqui no dever sagrado, que Pope nos impõe, de favo­recer o mérito de pressa.

Saudade – pag. 168.

Dirão que sou cabeça de motim, e que, como precipitei-me no abismo, quero arrastar a todos em minha queda. Inda bem — que eu sei a linguagem dos devotos.

Eu não me atreveria a dirigir esta poesia ao meu antigo compa­nheiro de claustro e de sofrimento, se não conhecesse que sua alma está muito acima da alma do frade. Com isto tenho respondido a todos. Talvez mais tarde eu tenha de provar com fatos o que acabo de di­zer, em uma obrita que tenho planejado.

A morte no claustro – pag. 175.

Esta composição tinha outro título, com o qual foi impressa. Sub­stitui-o por este pela justa crítica de um amigo.

Não obstante é uma dessas composições, de que me envergonho. Imprimo-a, porém, — porque pode agradar ainda a algum, como agra­dou já uma vez. Há algumas pessoas de um gosto tão esquisito...

Eu assisti à morte deste monge, — e pela primeira vez à morte de um homem. Fui tão impressionado, que corri a escrever, com ânsia, esse espetáculo medonho. Saiu uma coisa comum, e entretanto, monstruosa.

Aqui começam minhas composições fúnebres. Careciam elas de muitas notas, de muitos esclarecimentos, impossíveis neste livrinho. Eu me reservo para melhor menção.

É-me preciso, todavia, dizer uma coisa. No canto fúnebre à morte do meu melhor amigo França-Rebouças, digo que tenho uma alma feita a um cepticismo inato. Há aí quase uma hipérbole poética. Meu cepticismo não é um pirronismo absoluto, mas essa dúvida que Descartes aconselhava, essa dúvida do Dante:

Che non men che saper, dubbiar m'aggrada.

Isto sou eu, e não mais. Que importa, porém, o que eu seja?