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Invenção dos Aeróstatos Reivindicada/Capítulo 4

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IV
O manifesto

Estão de tal sorte dependentes e ligadas entre si as sciencias e as lettras, que jámais succedeu florescerem umas sem as outras. Durante o seculo XVI produziu Portugal na litteratura verdadeiros monumentos, e nas sciencias obras taes, que os estrangeiros as preferiam como classicas entre as melhores d'aquella epoca. Nos principios do seculo XVII acompanhavam a poesia em geral decadencia todos os conhecimentos hamanos. Parecia que o genio do mal estendêra para sempre o sombrio manto da ignorancia por sobre a terra de Camões e de Pedro Nunes.

As sciencias physicas, em particular, foram as que mais longo espaço se conservaram no lastimoso estado, a que as haviam conduzido as vans especulações e arguciosas subtilezas de uma philosophia degenerada e corrupta. Em 1737 queixava-se Jacob de Castro Sarmento de que a philosophia experimental de Newton tinha entrado sem resistencia por toda a Europa, menos Portugal e Hespanha. Em 1746 Verney cobria de ridiculo os methodos do ensino da physica em Portugal, onde preferiam o Soares e o Comptono aos bons auctores do tempo, e explicavam pelas palavras sacramentaes materia, forma e privação todos os effeitos da natureza, e preferiam admittir o horror do vacuo ao peso do ar, conhecido e demonstrado havia mais de um seculo na Italia: etc., etc.

Ninguem ignora as censuras com que fulminaram, particularmente os jesuitas, o Verdadeiro methodo de estudar, e a chuva de improperios arremessada contra o sabio escriptor que ousava reprovar de fóra do reino os systemas que havia aqui apprendido, e assim publicamente renegava. E, annos depois, ainda se repetiam censuras e ultrajes contra illustre Theodoro d'Almeida, que teve, afinal, a satisfação de vêr triumphantes as novas idèas, talvez antes pela queda da companhia de Jesus e geral reforma dos estudos, que pelo relevante merito da Recreação philosophica e das Cartas mathematicas.

Todavia em 1709, sendo absoluto em toda o reino o dominio das doutrinas d'Aristoteles, estragadas e corrompidas pelos escolasticos, não havendo ainda quem abertamente impugnasse o peripato, que assim chamavam ao systema, em 1709 Bartholomeu Lourenço de Gusmão escrevia o seu Manifesto, que, nem de longe, faz lembrar as demonstrações enredadas e nebulosas dos peripateticos. As razões que o auctor accumulou para provar a possibilidade da navegação do ar, deduziu-as da observação da natureza, que, totis viribus, aquelles repugnavam e repelliam, apezar dos uteis e numerosos descobrimentos, que n'outros paizes estava produzindo.

Analysado á luz da physica moderna, o Manifesto não é nenhuma obra prima. O auctor pretendeu explicar a acceleração da queda dos graves pela diminuição da resistencia do ar nas camadas inferiores, e allegou n'outra parte a doutrina dos quatro elementos. Mas, em attenção ao tempo, e mais particularmente ao logar em que escrevia, deu-nos um documento de capacidade e habilitações scientificas muito superiores ás dos seus contemporaneos e compatriotas. Nem conhecemos até em portuguez outros escriptos scientificos do seculo passado, que na elegancia e perspicuidade do estylo lhe sejam comparaveis, senão os do padre Theodoro d'Almeida, que appareceram quarenta ou cincoenta annos depois.

O Manifesto não dá idéa dos meios, de que o autor pretendia servir-se para navegar pelo ar. O fim que teve em vista, escrevendo aquelle papel, foi unicamente mostrar que não havia razão para crêr innavegavel este fluido. A opinião publica manifestava-se contraria ás suas tentativas; convinha-lhe, pois rebater as asserções dos que lhe contestavam a possibilidade do invento. O modo porque o havia de praticar, esse era o seu segredo, que lhe importava encobrir em quanto não apresentasse em publico a nova machina. E por isso se limitaria a fazer suas considerações sobre o principio da resistencia do ar, que servira á construcção de todos os apparelhos antecedentemente conhecidos e experimentados. Que Bartholomeu Lourenço de Gusmão intentava soccorrer-se do principio d'Archimedes, a que não allude no Manifesto, é o que mais adeante provaremos pela experiencia que executou com o auxilio do ar dilatado por meio do fogo.

Advirta-se mais que o auctor do Manifesto n'elle declarou fallar só com o vulgo e não com os doutos e discursivos, sendo por tanto obrigado a pôr de parte todo o apparato scientifico e todas as considerações que por sua transcendencia não estivessem ao alcance da maior parte dos leitores.

N'uma das duas copias conhecidas d'este documento attribuiu-o o copista a Bartholomeu Lourenço, e parece-nos fóra de duvida este ponto. As expressões, nosso invento, nossa fabrica, nossa naveta etc. que se nos deparam a cada passo no Manifesto, bem claramente designam quem o escreveu, e da mesma sorte o seguinte periodo : Resta-nos agora advertir um absurdo que entendeu o vulgo em se dizer que estas navetas haviam de cursar mais de duzentas leguas por dia, o que se não deve entender etc. E, lendo-se na petição que a machina faria duzentas e mais leguas por dia, natural é suppôr que, taxada por alguns de fabulosa tal velocidade, viesse o auctor a explicar-se n'este ponto, bem como n'outros, impugnados pelos que não acreditavam em suas promessas.

Manifesto summario para os que ignoram poder-se navegar pelo elemento do ar.

Diz um auctor moderno que entre os homens uns têem o entendimento nos olhos, e outros os olhos no entendimento : os que têem o entendimento nos olhos são aquelles que crêem o que sómente viram ou costumam vêr ; os que têem os olhos no entendimento, são os que não vendo dão credito áquillo, que se faz visivel aos olhos do discurso ; e como estes penetram as coisas pelas idêas, e os olhos corporaes as alcançam só pelos objectos, duvidam os que carecem de discurso, sómente pelo descostume da vista, como cegos á claridade do uso da razão. Mas para que refutemos as duvidas dos especulativos, que fazem impossivel o effeito do novo invento, lhes responderemos ás objecções que lhes temos ouvido, sem mais rethorica no dizer, do que a que for sufficiente á clareza de nos explicarmos.

Primeiramente não ha nem póde dar-se maior razão para serem navegadas as aguas, do que os ares ; porque ambos são elementos fluidos, supposto que não egualmente corporeos, cuja differença abaixo explicaremos. Dão todos crédito á navegação dos mares só porque os vêmos surcados continuamente, que se tal se não vira, é certo se não crêra por ser um invento tão difficultoso, que até Salomão depois de o vêr o admirou. Tria sunt difficilia mihi; viam aquilae in celo; viam navis in medio maris etc. N'este proverbio temos a paridade do nosso invento, que é viam aquilae in celo; assim como pois vemos a uma ave cortar os ares, assim é possivel cortal-os qualquer artificio feito á sua imitação, tendo os mesmos instrumemtos necessarios, como v. g. a nau que foi feita á mesma similhança; pois as velas lhe servem de azas, a prôa de peito, o leme de cauda, e os homens que a governam de vida. Vamos a imitada, e deixemos a imitadora.

Tres coisas pois são necessarias á ave para voar, convém a saber: azas vida e ar, azas para subir; vida para as mover; e ar para as sustentar: de sorte 'que, faltando um d'estes tres requisitos, ficam inuteis os dois; porque azas sem vida não podem ter movimento; vida sem azas não póde ter elevação : ar sem estes individuos não póde ser surcado : porém dando-se estas tres circumstancias de azas, vida e ar, conforme a necessaria proporção, é infallivel o vôo em qualquer artificio, como o estamos vendo na ave.

Entra agora o nosso invento com as mesmas tres circumstancias, em que infallivelmente devemos dar-lhe o vôo por certo. O nosso invento tem azas, tem ar e tem vida. Tem azas porque lh'as formámos á mesma imitação e proporção das da ave; tem ar porque este se acha em toda a parte, e tem vida nas pessoas, que o hão de animar para o movimento. É logo infallivel que não póde ser frustraneo este artificio, suppostos n'elle os tres requisitos necessarios para o vôo: que se a esta fabrica se pódem dar estas tres circumstancias por factiveis, de que não ha duvida, infallivelmente d'ellas se lhe hão de produzir as mesmas operações, que vêmos na ave, como effeito produzido da causa : e não fazemos menção das aves, que costumam andar na terra, porque supposto tenham estas tres circumstancias, ou não vôam, ou têm o vôo violento, como a gallinha, o perú, o pato, a perdiz etc. o que lhes procede de terem as azas defeituosas, em quanto á proporção necessaria ao pêso do corpo.

Argumentar-me-hão agora os especulativos, que estas duas paridades da nau e da ave são falsas em quanto ao nosso invento : que a nau sustenta-se nas aguas, porque estas são mais corporeas e crassas, e que a ave se libra ou vôa nos ares, porque esta é de corpo acommodado á raridade d'este elemento, que por leve não póde sustentar o grave : ao que se responde :

Têem as aguas os mesmos accidentes, que têem os ares : porque, assim como as aguas são mais grossas quanto mais distam da terra, assim os ares têem mais corpo quanto mais estão distantes do chão. Exemplo : o mar ou o rio sempre corre mais brando pelas extremidades das praias do que pelo profundo do vau; assim tambemo ar sempre sustenta mais as coisas na altura do que juncto á terra, v. g., deitamos de qualquer parte eminente uma prancha pelo ar, e vemos que esta juncto do chão é que arrebata mais o precipicio : a razão d'isto é pela maior ou menor distancia, que acha no curso por lhe faltar o vento que costuma tomar em maior altura. Têem mais outra propriedade, e é que, assim como as aguas mortas, agitadas de qualquer movimento se fazem mais vivas e vigorosas, assim tambem os ares, estando serenos, impellidos de qualquer instrumento se fazem mais tangiveis, que o vento não é outra coisa mais que um ar inquieto, agitado e impellido, que de brando passa por seu proprio movimento a ser furioso. Emfim, assim como as aguas nas innundações têem violencia para levarem pontes, e arrasarem vallas, e tragarem povoações, assim tambem teem impulso os mesmos ares nos terremotos para arruinarem cidades, e subverterem imperios.

Finalmente tem a agua com o ar tão conforme a qualidade, que ambos podem ter união mista sem repugnancia violenta, eomo tambem a agua a tem com a terra; que se assim não fôra não consentiriam os ares em si os vapores da agua, nem as humidades da terra, como qualidades repugnantes; que estas como contrarias se nâo podem unir conformes. O que se não acha no elemento do fogo, que com elle não pode subsistir outro qualquer elemento sem repugnancia violenta.

Mas comtudo entre todas estas similhanças têem uma differença, porque as aguas são mais solidas e graves, e os ares são mais raros e leves : porém, não obstante esta razão, o mesmo corpo, que se acha nas aguas para a sustentação das coisas no condensado, se acha tambem nos ares na extensão. Explico-me com este exemplo : qualquer lenho, por pequeno que seja, se sustenta facilmente nas aguas, e este mesmo se não pode sustentar nos ares. A razão é porque este é mais leve em quanto ás aguas e mais grave, em quanto aos ares : porém dando-lhe a comensuração necessaria e proporcionada em quanto á distancia, por tomar mais ar, tanto se pode sustentar nas aguas o pêso do dicto lenho, como nos ares ainda maior pêso.

Ponhamos por exemplo uma agulha em competencia de uma folha de papel : uma agulha é muito mais leve no que pésa do que uma ou duas ou tres folhas de papel unidas, e estamos vendo que uma agulha nem se pode sustentar nas aguas, sem logo ir ao fundo, nem menos nos ares sem logo buscar o centro; e as tres folhas de papel pesando mais se sustentam nos ares com facilidade ; a razão é porque a agulha, ainda que pese menos, é materia solida e grave, e as folhas de papel, ainda que pesem mais, são de materia leve, e então o que as faz descer mais leves é a extensão do corpo com que tomam mais ar para se sustentarem; ou, senão, vejamos. Esta mesma folha de papel, que estendida é leve, dobrada é mais grave, e quanto mais se dobra, mais grave desce, porque fica com menos corpo do que lhe é necessario para se sustentar : com que é certo que a extensão do corpo das coisas as faz ser para a sustentação no ar ou mais graves ou mais leves.

E não fallo em quanto á qualidade propria das coisas : porque o que é leve de sua natureza não póde ser junctamente grave ; mas fallo em quanto á virtude, que concorre para as fazer parecer leves, porque a mesma agua, que unida e conduzida na terra, é grave, e tem corpo para sustentar as coisas, ao ar espargida parece leve e sem substancia de suster uma palha. Mais claro. Um chovisco, que no ar não tem corpo para resistir a um leve vento, juncta toda aquella porção de agua na terra, havia de ter vigôr para sustentar uma pesada nau : mas nem por isso no ar é leve, e na terra é grave, que tão grave é na terra como no ar. Mas sim é no ar rara, e na terra é crassa, que é o que a faz parecer grave ou leve. Uma porta é grave, porém, por virtude dos quicios move-se com facilidade, e parece leve; e pelo contrario um globo de metal que no chão parece leve, por facilmente se mover, levado ao ar se experimenta grave por se não podêr levantar, e a materia d'elle tanto é grave no chao como no ar.

Tão grave é por si a qualidade do aço ou do chumbo, ou de outro qualquer metal no pouco como no muito, que a quantidade não lhe tira a qualidade : porém despedindo de eminente altura ao mesmo tempo uma agulha e uma barra da mesma materia de muitas arrobas, é assentado em philosophia, que primeiro ha de chegar á terra a agulha, do que a barra : e a razão é o ar que não tomou a agulha por ter menos corpo, e o ar que tomou a barra pelo ter maior : d'onde se infere que o corpo das coisas é que as sustenta no ar, conforme a mensura proporcionada á substancia do elemento, em que se sustentam. Emfim, ao impeto do vento abala uma parede, porém não se move uma pedra, e mais grave é uma parede, que consiste de muitas pedras do que uma pedra, que não tem o pêso de uma parede ; o que procede da extensão do corpo d'onde o vento póde fazer mais prêsa.

Temos mostrado por principios certos e paridades infalliveis como é factivel suster-se qualquer artificio no ar, como se sustenta qualquer ave, dando-lhe a proporção acommodada á substancia do elemento. Agora resta mostrar como póde fazer curso sem embaraço nem desassocego ou confusão, a respeito de que os ares não têem constancia no movimento, e que esta instabilidade ha de servir de infallivel precipicio ás nossas navetas. Ao que respondo, que no mar succede o mesmo, porque tambem não tem constancia, ora se altera ora se abranda, e nem por isso deixa de se navegar, e não ha maior razão porque o tempêro que uma nau tem no mar, não tenha qualquer navegação no ar ; a nau no mar tem o governo no leme, o tempêro nas velas: uma e outra coisa temos no nosso invento. Uma nau é combatida dos ventos da mesma sorte, com que o póde ser o nosso artificio ; e comtudo resiste ás tempestades ou tomando as velas necessarias ou deixando-se ir com os ventos. Toda esta experiencia achâmos na ave. A ave quando vôa por vento rijo, ou lhe afrouxa as azas conforme a violencia, ou se deixa ir com elle seguindo-lhe o curso.

Temos outro exemplo mais palpavel : quem havia de dizer (se o não vira) que um homem se sustenta quasi no ar sómente com os pés em uma delgada maroma, e n'ella anda, corre e dansa, o que costuma fazer tanto em um' pateo com ar sereno, como em um campo com vento rijo, sem o vento lhe alterar a egualdade com que se move? A virtude d'isto está no pêso da vara, que contrapõe a inclinação do corpo, onde temo governo para a temperança do movimento.

Aqui me dirão que a nau acha corpo solido nas aguas, onde assenta o bojo ; e o volatim o acha na corda, onde estriba os pés ; e que as nossas navetas o não podem ter no ar, por ser (como temos dicto) um elemento raro, que, supposto que tenha corpo, é fluido e leve, que não tem sustancia sufficiente para per si suster as coisas : ao que respondo que se a nau se podéra sustentar nas velas (que para tal fim lhe não foram dadas) não lhe fôra necessario o descanço nas aguas. Se o volatim se podéra attrahir na vara, não usára do assento da corda, o que não milita no nosso caso, porque como nas azas ha de fazer descanso o nosso artificio (pela razão referida) no lhe é necessario assento solido, para encostar o corpo.

Dir-me-hão tambem que para tão grande pêso hão de ser necessarias muito grandes azas, e que aqui está a difficuldade, ou por se lhe não poder dar o movimento adequado ao tempo, ou se lhe não podêr dar a extensão opportuna ao pêso. Cuja dúvida facilmente se desfaz, respondendo que a qualidade pode egualar a quantidade. Explico-me, tanto pesa um arratel de chumbo, como um arratel de lan, que supposto que a lan do chumbo seja diversa na qualidade, lhe vem a egualar o pêso na quantidade : tanto vento toma em qualquer embarcação uma vela grande como muitas pequenas, cujos exemplos bastam para a solução da dúvida.

Temos apontado as razões e os exemplos, que bastam para a nossa fabrica etherea se podêr sustêr no ar, e o possa navegar com socego similhante ao de qualquer navegação no mar. Falta-nos agora resolver a terceira duvida ; como poderá fazer o gyro certo, o que é facil de decidir, e respondo que da mesma sorte que o faz o artificio maritimo com a agulha de marear, porque a mesma virtude, que tem a pedra de cevar sobre as aguas, a tem nos ares : e assim não necessita de mais prova, porque a razão por si está patente.

E se se duvida como poderá a nossa embarcação correr direita, sem se voltar á variedade e violencia dos ventos? Se responde que tanto nas aguas como nos ares, o grave busca o seu centro. E assim como nas aguas o bojo ou quilha da embarcação sempre pende á parte inferior, assim o pêso das barquetas ha de por força pender sempre á terra : o que vêmos em qualquer embarcação, que quanto maior é o lastro mais endireita os bordos. Se a ave no vôo lhe faltára o pêso do corpo, confundiram-se-lhe as azas, voltando-se facilmente pela falta do grave que as endireita.

Comtudo não seguro a total segurança das nossas barquetas, sem correrem as mesmas variedades, que têem as embarcações no mar ; que assim como a nau no mar tem bonanças, tempestades e naufragios, assim ellas hão de experimentar no ar os mesmos accidentes. Um sovereiro, um cypreste ou outra qualquer planta, por robusta, que seja, tendo as raizes entranhadas na terra, com o vento se quebra; uma torre, que tem o fundamento no centro, com o tempo se arruina.

Resta-nos agora advertir um absurdo, que entendeu o vulgo, em se dizer que estas navetas haviam de cursar mais de duzentas leguas por dia, o que se não deve entender da sorte, com que materialmente se tomou, senão d'aquella com que formalmente se disse. A medição das leguas, que pela terra demarcamos por leguas, pelo ar têem differente distancia. Exemplo: de Lisboa a Coimbra contam trinta e quatro leguas pelos gyros e circumferencias, que fazemos no curso, por respeito dos montes, que não podêmos atalhar, e os caminhos asperos, que por linha parallela não podêmos vencer ; e pelo ar, como não ha estes obstaculos, são muito menos as leguas, do que as que fazemos por terra : que aliás fôra grande absurdo o entendido, porque a ave mais veloz, dando por caso que não parasse nunca, e fosse voando sempre, não podia vencer por dia similhante distancia pelo ar, como se mede pela terra.

E advirto mais que no que tenho dicto só fallo com o vulgo, que tem o entendimento nos olhos (como no principio disse) e não com os doutos e discursivos, que têem os olhos no entendimento. O entendimento, como potencia da alma, vê o que não vêem os olhos, e a vista, como sentido corporal, vê sómente os objectos materiaes, que se lhe offerecem e antecipadamente costuma vêr o discurso pelas especies da ideia, de sorte, que os inventos mais subtis, que até agora se têem descoberto, até áquelle ponto, em que não foram vistos, foram negados pelos ignorantes da razão, porque, como nos objectos sómente têem o discurso, só com a vista é que então lhes deram o credito, sendo como espelhos, que sem objectos não podem ter em si representações.

D'onde finalmente acabo o meu discurso com esta comparação, que, posto que pueril, é verdadeira; são emfim os inventos tão incriveis para os indiscursivos como são as ligeirezas de mãos. Dizemos a um d'estes que lhe havemos de mostrar v. g. uma pelotilha, e que á sua vista d'esta lhe havemos fazer um pomo. O que vos responderá? Responde logo com velocidade, sem primeiro discursar se pode ser ou não ser, ou por que arte se poderá fazer a dicta farça: que tal coisa se não pode fazer. Fazeis-lhe a ligeireza, fica attonito o nosso leigo, e responde-vos que aquillo não póde ser senão por arte diabolica. Ensinaes-lhe a peça, entende o segredo, e põe-se a sorrir; e vendo tão facil o que tinha por impossivel rompe do seu assombro dizendo : quem tal dissera? Assim pois esperamos que se hade dizer, vendo-se surcar os ares o nosso invento, para confusão dos ignorantes, que o negam, e desempenho dos sabios, que o affirmam.[1]

PARA A HISTÓRIA DA AERONÁUTICA
A famosa «Passarola»

de Bartolomeu de Gusmão

tal como a concebemos

é uma mistificação do autor?

Com vista aos interessados na história da aronautica.

Em 8 de agosto de 1709 o padre português nascido em Santos, Brasil—Bartolomeu de Gusmão ter-se-ia lançado da esplanada do castelo de S. Jorge na experiência do seu aparelho voador, a famosa «passarola» do padre Gusmão, facto que era atestado numa lapide e até há poucos anos estava na Praça de mas do Castelo, de Lisboa.

Este facto está um pouco envolto em lendas ou erradas suposições de ṕrmenor; a verdade fundamental parece, porém, incontestavel.


A «Passarola», na sua estranha forma, an- mais eu menos reproduzida numa estampa e corre mundo em jornais e revistas.

Agora, no Brasil, onde vai ser emitido um especial, com dois milhões de exemplares, e celebra a descoberta, ou primeira ascenção Bartholomeu de Gusmão, está a fazer-se a va de que a tal «Passarola» não era a figura caricatural e teratologica» que anda por divulgada, e cujo modelo fez grande mal á reputação do jesuita. O professor Afonso Ton director do Museu de S. paulo, sustenta ialmente que a «Passarola», tal qual a conhecemos de estampa, «foi uma composição mistificadora do próprio Gusmão, para fins de despistamento de possíveis aproveitadores do seu invento».

A verdadeira composição do aparelho encontra-se baseada na lição rigorosa de oito documentos existentes. E, êsses documentos provam que Gusmão construiu um «glovo esférico ou esferoidico, cujo interior era dilatado por um foco igneo, existente numa barquinha».

Machina volante de Bartholomeu Lourenço de Gusmão, conforme o desenho impresso no anno de 1774.

Este material está em domínio público nos Estados Unidos e demais países que protejam os direitos autorais por cem anos (ou menos) após a morte do autor.

 

Todas as obras publicadas antes de 1.º de janeiro de 1929, independentemente do país de origem, se encontram em domínio público.


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  1. Este doccumento foi publicado pela primeira vez em 1849 nas Actas das Sessões da Academia Real das Sciencias por Francisco Freire de Carvalho no Additamento á sua Memoria. D'elle lhe deu conhecimento o sr. Rivara que na Bibliotheca publica de Evora encontrou uma copia de lettra do seculo XVIII. Por mais completa preferimos a copia que se conserva na Bibliotheca da Universidade no citado codice n.° 342, Veja-se a nota a pag. 31 d'este opusculo.
    O exemplar da Bibliotheca de Evora tem o seguinte titulo : «Manifesto summario para os que ignoram poder-se navegar pelo elemento do ar, feito na occasião em que o doutor Bartholomeu Lourenço de Gusmão pretendia sahir á luz com similhante invento.» No fim lê-se a seguinte nota: «Este invento o chegou a aperfeiçoar o dicto doutor Bartholomeu Lourenço de Gusmão, e dizem que chegára a fazer seu voo na casa da India, ainda que pequeno, pelo que se desenganaram de não ser possivel fazer o curso, que promettia o seu auctor, como consta do seu manifesto ; eu vi o risco d'elle, que era do feitio de uma grande passarola, e m'o mostrou D. Jorge Henriques, Senhor das Alcaçovas, etc.