Saltar para o conteúdo

Iracema/XI

Wikisource, a biblioteca livre
XI

Os guerreiros tabajaras, acorridos á taba, esperavão o ennemigo diante da caiçara.

Não vindo elles, sahirão á busca-lo.

Baterão as matas em torno e percorrerão os campos; nem vestigios encontrarão da passagem dos Pytiguaras; mas o conhecido fremito do buzio das praias tinha resoado ao ouvido dos guerreiros da montanha; não havia duvidar.

Suspeitou Irapuam que fosse um ardil da filha de Araken para salvar o estrangeiro, e caminhou direito á cabana do Pagé. Como trota o guará pela orla da mata, quando vae seguindo o rasto da presa escápula, assim estugava o passo o sanhudo guerreiro.

Araken viu entrar em sua cabana o grande chefe da nação tabajara, e não se moveu. Sentado na rede, com as pernas cruzadas, escutava Iracema. A virgem referia os sucessos da tarde: avistando a figura sinistra de Irapuam saltou sobre o arco, e unio-se ao flanco do jovem guerreiro branco.

Martim a affastou docemente de si, e promoveu o passo.

A protecção, de que o cercava a elle guerreiro a virgem tabajara, o desgostava.

— Araken, a vingança dos tabajaras espera o guerreiro branco; Irapuam veio busca-lo.

— O hospede é amigo de Tupan: quem offender o estrangeiro ouvirá rugir o trovão.

— O estrangeiro foi quem offendeu a Tupan, roubando sua virgem, que guarda os sonhos da jurema.

— Tua boca mente como o ronco da jiboia: exclamou Iracema.

Martim disse:

— Irapuam é vil e indigno de ser chefe de guerreiros valentes!

O Pagé fallou grave e lento:

— Si a virgem abandonou ao guerreiro branco a flor de seu corpo, ella morrerá; mas o hospede de Tupan é sagrado; ninguem lhe tocará, todos o servirão.

Irapuam bramio; o grito ronco troou nas arcas do peito, como o fremito da sucury na profundeza do rio.

— A raiva de Irapuam não pode mais ouvir-te, velho Pagé! Caia ella sobre ti, si ousares subtrahir o estrangeiro a vingança dos Tabajaras.

O velho Andira, irmão do Pagé, entrou na cabana; trasia no punho o terrivel tacape e nos olhos uma sanha ainda mais terrível.

— O morcego vem te chupar o sangue, si é que tens sangue e não mel nas veias, tu que ameaças em sua cabana o velho Pagé.

Araken affastou o irmão:

— Paz e silencio, Andira.

O Pajé desenvolvera a alta e magra estatura, como a caninana assanhada, que se enrista sobre a cauda, para affrontar a victima em face. As rugas affundarão; e repuxando as pelles engelhadas, esbugalharão os dentes alvos e afilados:

— Ousa um passo mais, e as iras de Tupan te esmagarão sob o peso desta mão secca e mirrada!

— Neste momento, Tupan não é comtigo! replicou o chefe.

O Pagé rio; e seu riso sinistro reboou pelo espaço como o regougo da ariranha.

— Ouve seu trovão, e treme em teu seio, guerreiro, como a terra em sua profundeza.

Araken proferindo essa palavra terrivel, avançou até o meio da cabana; ali ergueu a grande pedra e calcou o pé com força no chão; súbito, abrio-se a terra. Do antro profundo sahio um medonho gemido, que parecia arrancado das entranhas do rochedo.

Irapuam não tremeu, nem enfiou de susto; mas sentio tuvar-se a luz nos olhos, e a voz nos labios.

— O senhor do trovão é por ti; o senhor da guerra, será por Irapuam.

O torvo guerreiro deixou a cabana; em pouco seu grande vulto mergulhou-se nas sombras do crepusculo.

O Pajé e seu irmão travarão a prática na porta da cabana.

Martim ainda surpreso do que vira, não tirava os olhos da funda cava, que a planta do velho Pagé abrira no chão da cabana. Um surdo rumor, como o echo das ondas quebrando nas praias, ruidava ali. O guerreiro christão scismava, elle não podia crer que o Deus dos Tabajaras désse a seu sacerdote tamanho poder.

Araken percebendo o que passava n'alma do estrangeiro, Araken acendeu o cachimbo e travou do maracá:

— E' tempo de applacar as iras de Tupan, e calar a voz do trovão.

Disse e partio da cabana.

Iracema achegou-se então do mancebo; levava os labios em riso, os olhos em jubilo:

— O coração de Iracema está como o abati n'água do rio. Ninguem fará mal ao guerreiro branco na cabana de Araken.

— Arreda-te do ennemigo, virgem dos Tabajaras; respondeu o estrangeiro com aspereza de voz.

Voltando brusco para o lado opposto, furtou o semblante aos olhos ternos e queixosos da virgem.

— Que fez Iracema, para que o guerreiro branco desvie seus olhos della, como si fora o verme da terra?

As fallas da virgem resoarão docemente no coração de Martim. Assim resoão os murmurios da aragem nas frondes da palmeira. O mancebo sentio raiva de si, e pena della:

— Não ouves tu, virgem formosa? exclamou elle, apontando para o antro fremente.

— E' a voz de Tupan!

— Teu Deus fallou pela boca do Pagé: "Si a virgem de Tupan abandonar ao estrangeiro a flor de seu corpo, ela morrerá!..."

Iracema pendeu a fronte abatida:

— Não é a voz de Tupã que ouve teu coração, guerreiro de longe terras, é o canto da virgem branca, que te chama!

O rumor estranho que sahia das profundezas da terra, apagou-se de repente: fez-se na cabana tão grande silencio, que ouvia-se pulsar o sangue na arteria do guerreiro, e tremer o suspiro no labio da virgem.

Notas

[editar]

Pag. 44.—Guará.—Cão selvagem, lobo brasileiro. Provem esta palavra do verbo ucomer, do qual se forma com o relativo G e a desinencia ara o verbal g-u-ára comedor. A sillaba final longa é a partícula propositiva ã que serve para dar força à palavra.

G-u-ára-ã realmente comedor, voraz.



Pag. 45.—Giboa.—Cobra conhecida; de gi machado, e boia cobra. O nome foi tirado da maneira por que a serpente lança o bote, semelhante ao golpe do machado; pode traduzir-se bem: cobra de arremesso.



Pag. 46.—I.Sucury.—A serpente gigante que habita nos grandes rios e engole um boi. De Suu, animal e cury ou curu roncador. Animal roncador, porque de feito o ronco da sucury é medonho.

II. Si pe que tens sangue e não mel. Allusão que faz o velho Andira ao nome de Irapuam, o qual como se disse, significa mel redondo.



Pag. 47.—Ouve seu trovão.—Todo esse episodio do rugido da terra é uma astucia, como usavam os pajés e os sacerdotes de toda a nação selvagem para imporem á imaginação do povo. A cabana estava assentada sobre um rochedo, onde havia uma galeria subterrânea que communicava com a varzea por estreita abertura; Araken tivera o cuidado de tapar com grandes pedras as duas aberturas, para occultar a gruta dos guerreiros. Nessa occasião a fenda inferior estava aberta e o Pagé o sabia; abrindo a fenda superior, o ar encanou-se pelo antro espiral com estridor medonho, e de que pode dar uma idéa o sussurro dos caramujos.—O facto é pois natural; a apparencia sim é maravilhosa.



Pag. 48.—Abaty n'agua.—Abaty—arroz; Iracema serve-se da imagem do arroz que só viça no alagado, para exprimir sua alegria.