Iracema/XXIV

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XXIV

Foi costume da raça, filha de Tupan que o guerreiro trouxesse no corpo as cores de sua nação. Traçavão em princípio negras riscas, sobre o corpo, á semelhança do pello do coaty de onde procedeu o nome dessa arte da pintura guerreira. Depois variarão as cores; e muitos guerreiros costumarão escrever os emblemas de seus feitos.

O estrangeiro tendo adoptado a patria da esposa e do amigo, devia passar por aquella cerimonia, para tornar-se um guerreiro vermelho, filho de Tupan. Nessa intenção fora Poty se prover dos objectos necessarios.

Iracema preparou as tintas. O chefe, embebendo as ramas da pluma, traçou pelo corpo os riscos vermelhos e pretos, que ornavão a grande nação pytiguara. Depois pintou na fronte uma flecha e disse:

— Assim como a seta traspassa o duro tronco, assim o olhar do guerreiro penetra n'alma dos povos.

No braço pintou um gavião:

— Assim como o anajê cahe das nuvens, assim cae o braço do guerreiro sobre o inimigo.

No pé esquerdo pintou a raiz do coqueiro:

— Assim como a pequena raiz agarra na terra o alto coqueiro, o pé firme do guerreiro sustenta seu corpo.

No pé direito pintou uma aza:

— Assim como a asa do majoy rompe os ares, o pé veloz do guerreiro não tem igual na corrida.

Iracema tomou a rama da penna e pintou uma folha com uma abelha sobre: sua voz resoou entre sorrisos:

— Assim como a abelha fabrica o mel no coração negro do jacarandá, a doçura está no peito do mais valente guerreiro.

Martim abriu os braços e os labios para receber corpo e alma da esposa.

— Meu irmão é um grande guerreiro da nação pytiguara; elle precisa de um nome na lingua de sua nação.

— O nome de teu irmão está em seu corpo, onde o poz tua mão.

— Coatiabo! exclamou Iracema.

— Tu disceste; eu sou o guerreiro pintado; o guerreiro da esposa e do amigo.

Poti deu á seu irmão o arco e o tacape, que são as armas nobres do guerreiro. Iracema havia tecido para ella o cocar e a arassoia, ornatos dos chefes illustres.

A filha de Araken, foi buscar á cabana as iguarias do festim e os vinhos de genipapo e mandioca. Os guerreiros beberão copiosamente e trançarão as danças alegres. Durante que volvião em torno dos fogos da alegria, resoavão as canções.

Poty cantava:

— Como a cobra que tem duas cabeças em um só corpo, assim é a amisade do Coatiabo e Poty.

Acodiu Iracema:

— Como a ostra que não deixa o rochedo, ainda depois de morta, assim é Iracema junto á seu esposo.

Os guerreiros disserão:

— Como o jatobá na floresta, assim é o guerreiro Coatiabo entre o irmão e a esposa, seus ramos abração os ramos do ubiratan, e sua sombra protege a relva humilde.

Os fogos da alegria arderão ate que veio a manhã; e com elles durou o festim dos guerreiros.



Notas[editar]

Pag. 113.—Coatya—pintar. A Historia, menciona esse facto de Martim Soares Moreno se ter coatyado quando vivia entre os selvagens do Ceará.



Pag. 115.—Coatyabo.—A desinencia abo significar o objecto que soffreu a acção do verbo, e talvez provenha de aba, gente, creatura.