Iracema/XXV

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XXV

A alegria ainda morou na cabana, todo o tempo que as espigas de milho levarão a amarellecer.

Uma alvorada, caminhava o christão pela borda do mar. Sua alma estava cançada.

O colibri sacia-se de mel e perfume; depois adormece em seu branco ninho de cotão, até que volta no outro anno a lua das flores. Como o colibri, a alma do guerreiro também satura-se de felicidade, e carece de somno e repouso.

A caça e as excursões pelas montanhas em companhia do amigo, as caricias da terna esposa que o esperavão na volta, o doce carbeto no copiar da cabana, já não accordavão nelle as emoções de outrora. Seu coração resonava.

Iracema brincava pela praia: os olhos delle tiravão-se della para se estenderem pela immensidade dos mares.

Viram umas azas brancas, que adejavão pelos campos azues. Conheceu o christão que era uma grande igara de muitas velas, como construião seus irmãos; e a saudade da patria apertou-lhe no seio.

Alto ia o sol; e o guerreiro na praia seguia com os olhos as azas brancas que fugião. Debalde a esposa o chamou á cabana, debalde offereceu a seus olhos, as graças della e os fructos melhores do campo. Não se moveu o guerreiro, senão quando a vela sumiu-se no horisonte.

Poty voltou da serra, onde pela primeira vez fora só. Tinha deixado a serenidade na fronte de seu irmão e achava ali a tristeza. Martim sahiu-lhe ao encontro:

— A igara grande do branco tapuia passou no mar. Os olhos de teu irmão a virão voar para as margens do Mearim, alliados dos Tupinambás, innemigos de tua e minha raça.

— Poty é senhor de mil arcos; si é teu desejo elle te acompanhará com seus guerreiros ás margens do Mearim para vencer o Tapuitinga e seu amigo o traidor Tupinambá.

— Quando for tempo teu irmão te dirá.

Os guerreiros entraram na cabana, onde estava Iracema. A maviosa canção nesse dia tinha emudecido nos labios da esposa. Ella tecia suspirando a franja da rede materna, mais larga e espessa que a rede do hymeneo.

Poty, que a viu tão ocupada, fallou:

— Quando a sabiá canta é o tempo do amor; quando emmudece, fabrica o ninho para sua prole; é o tempo do trabalho.

— Meu irmão falla como a ran quando annuncia a chuva; mas a sabiá que faz seu ninho, não sabe se dormirá nelle.

A voz de Iracema gemia. Seu olhar buscou o esposo. Martim pensava: as palavras de Iracema passarão por elle, como a brisa pela face lisa da rocha, sem echo nem rumores.

O sol brilhava sempre sobre as praias do mar, e as areias reflectião os raios ardentes; mas nem a luz que vinha do ceo, nem a luz que ia da terra, espancarão a sombra n'alma do christão. Cada vez o crepusculo era maior em sua fronte.

Chegou das margens do Acaraú um guerreiro pytiguara, mandado por Jacaúna a seu irmão Poty. Elle veio seguindo o rasto dos viajantes até o Trahiry, onde os pescadores o guiarão á cabana.

Poty estava só no copiar; ergueu-se e abaixou a fronte para escutar com respeito e gravidade as palavras que lhe mandava seu irmão pela boca do mensageiro:

— O Tapuytinga, que estava no Mearim, veio pelas matas até o princípio da Ibyapaba, onde fez alliança com Irapuan, para combater a nação pytiguara. Elles vão descer da serra as margens do rio em que bebem as garças, e onde tu levantaste a taba de teus guerreiros. Jacaúna te chama para defender os campos de nossos paes: e teu povo carece de seu maior guerreiro.

— Volta as margens do Acaraú e teu pé não descance emquanto não pizar o chão da cabana de Jacaúna. Quando ahi estiveres, dize ao grande chefe: "Teu irmão é chegado á taba de seus guerreiros". E tu não mentirás.

O mensageiro partiu.

Poty vestiu suas armas, e caminhou para a varzea, guiado pelo passo de Coatyabo. Elle o encontrou muito além, vagando entre os canaviaes que bordão as margens de Jacarehy.

— O branco tapuia está na Ibyapaba para ajudar os Tabajaras á combater contra Jacaúna. Teu irmão corre á deffender a terra de seus filhos, e a taba onde dorme o camocins de seu paes. Elle saberá vencer depressa para voltar á tua presença.

— Teu irmão parte comtigo. Nada separa dois guerreiros amigos quando troa a inubia da guerra.

— Tu és grande, como o mar e bom como o ceo. Os dois amigos abraçarão-se; e seguirão com o rosto para as bandas do nascente.



Notas[editar]

Pag. 117.—Colibri.—Desse lethargo do colibri no inverno falla Simão de Vasconcelos.