Iracema/XXVII
Uma tarde Iracema viu de longe dois guerreiros que avançavão pelas praias do mar. Seu coração palpitou mais apressado.
Instante depois ella esquecia nos braços do esposo tantos dias de saudade, e abandono que passara na solitaria cabana. Outra vez sua graça encheu os olhos do christão; a alegria voltou a habitar em sua alma.
Como a seca varzea, com a vinda do nevoeiro, reverdece e matisa-se de flores, a formosa filha do sertão com a volta do esposo reanimou-se; e sua bellesa esmaltou-se de meigos e ternos sorrisos.
Martim e seu irmão havião chegado a taba de Jacaúna, quando soava a inubia: elles guiarão ao combate os mil arcos de Poty. Ainda dessa vez os Tabajaras, apezar da alliança dos brancos tapuias do Mearim, foram levados de vencida pelos valentes Pytiguaras.
Nunca tão disputada victoria e tão renhida pugna, se pelejou nos campos que regão o Acaraú e o Camocim; o valor era igual de parte á parte, e nenhum dos dois povos fora vencido, si o Deus da guerra não tivesse decidido dar estas plagas a raça do guerreiro branco, alliada dos Pytiguaras.
Logo apoz a victoria o christão tornara ás praias do mar, onde construira sua cabana. De novo sentiu em sua alma a sede do amor; e tremia de pensar que Iracema houvesse partido, deixando ermo aquelle sitio tão povoado outrora pela felicidade.
O christão amou outra vez a filha do sertão, como da primeira vez, quando parece que o tempo nunca poderá exhaurir o coração. Mas breves sóes bastarão para murchar aquellas flores de uma coração exilado da patria.
O imbú , filho da serra, si nasceu na varzea porque o vento ou as aves trouxerão a semente, vinga, achando boa terra e fresca sombra; talvez um dia copou a verde folhagem e enflorou. Mas basta um sopro do mar, para tudo murchar. As folhas lastrão o chão; as flores leva-as a brisa.
Como o imbú na varzea era o coração do guerreiro branco na terra selvagem. A amisade e o amor o acompanharão e sostiverão algum tempo; mas agora longe de sua casa e de seus irmãos, sentia-se em um ermo. O amigo e a esposa não chegavão mais a sua existência, cheia de grandes e nobres ambições.
Passava os já tão breves, agora longos sóes, na praia, ouvindo gemer o vento e soluçar as ondas. Os olhos, engolphados na immensidade do horisonte, buscavão, mas em balde discernir do azul diaphano a alvura de uma vela perdida nos mares.
A distancia curta da cabana, se elevava á borda do oceano um alto morro de areia; pela semelhança com a cabeça do crocodilo o chamavão os pescadores Jacarécanga. Do seio das brancas areias escaldadas pelo ardente sol, manava uma agua fresca e pura; assim destilla a dor lagrimas doces de allivio e consolo.
A esse monte subia o christão; e lá ficava seismando em seu destino. As vezes lhe vem á mente a idéa de tornar á sua terra e aos seus; mas elle sabe que Iracema o acompanhará; e essa lembrança lhe remorde o coração. Cada passo mais que affaste dos campos nativos a filha dos Tabajaras, agora que não tinha o ninho de seu coração para abrigar-se, é uma porção da vida que lhe rouba.
Poty conhece que Martim deseja estar só, e affasta-se discreto. O guerreiro sabe o que afflige a alma do seu irmão; e tudo espera do tempo, porque só o tempo endurece o coração do guerreiro, como o cerne do jacarandá.
Iracema tambem foge dos olhos do esposo, porque já percebeu que esses olhos tão amados se turbão com a vista della, e em vez de se encherem de sua belleza como outrora, a despedem de si. Mas seus olhos della não se canção de acompanhar á parte e de longe o guerreiro senhor, que os fez captivos.
Ai della!... Sentiu já o golpe no coração e como a copaiba ferida no amago, destilla lagrimas em fio.
Notas
[editar]Pag.128.—Imbu.—Fructa da serra do Araripe que não vem no litoral. E' saborosa e semelhante ao cajá.
Pag. 129.—Jacarecanga—Morro de areia na praia do Ceará, afamado pela fonte de agua fresca purissima. Vem o nome de jacaré, crocodilo e acanga cabeça.