João Ferreira de Almeida 1819 (ortografia atualizada)/Mateus/XXVI
Aspeto
- E ACONTECEU que, como Jesus tinha acabado todas estas palavras, disse a seus discípulos:
- Bem sabeis, que daqui a dois dias é a Páscoa, e o Filho do homem será entregue, para ser crucificado.
- Então os príncipes dos sacerdotes e os escribas, e os anciãos do povo se ajuntaram na sala do sumo pontífice, o qual se chamava Caifás.
- E consultaram juntamente, para prenderem a Jesus por engano, e o matarem.
- Porém diziam: não na Festa, porque se não faça alvoroço entre o povo.
- E estando Jesus em Betânia, em casa de Simão o Leproso,
- Veio a ele uma mulher com um vaso de alabastro, de unguento de grande preço, e derramou-lho sobre a cabeça, estando ele assentado à mesa.
- E vendo-o seus discípulos, indignaram-se, dizendo: De que serve esta perdição[1]?
- Porque este unguento se podia vender por muito, e dar-se o dinheiro aos pobres.
- Porém entendendo-o Jesus, disse-lhes: Por que molestais a esta mulher? pois me fez uma boa obra.
- Porque aos pobres, sempre convosco os tendes; porém a mim sempre me não tendes.
- Porque derramando ela este unguento sobre meu corpo, para preparação de meu enterramento o fez.
- Em verdade vos digo, que aonde quer que este Evangelho em todo o mundo for pregado, também o que esta fez será dito para sua memória.
- Então um dos doze, chamado Judas Iscariotes, se foi aos príncipes dos sacerdotes;
- E disse: Que me quereis dar, e eu vo-lo entregarei? e eles lhe assinalaram trinta moedas de prata.
- E desde então buscava oportunidade, para o entregar.
- E ao primeiro dia da festa dos pães asmos, vieram os discípulos a Jesus, dizendo-lhe: Aonde queres que te aparelhemos, para comer a Páscoa?
- E ele disse: Ide à cidade um tal, e dizei-lhe: o Mestre diz: meu tempo está perto; contigo farei a Páscoa juntamente com meus discípulos.
- E os discípulos fizeram como Jesus lhes mandara, e aparelharam a Páscoa.
- E vinda a tarde, assentou-se à mesa com os doze.
- E comendo eles, disse: Em verdade vos digo, que um de vós outros me há de trair.
- E entristecendo-se eles em grande maneira, começou cada um deles a dizer-lhe: Porventura sou eu, Senhor?
- E respondendo ele, disse: O que comigo mete a mão no prato, esse me há de trair.
- Em verdade o Filho do homem vai, como dele escrito está; mas ai daquele homem, por quem o Filho do homem é traído; bom lhe fora ao tal homem, se não houvera nascido.
- E respondendo Judas, o que o traía, disse: Porventura sou eu, Rabi[2]? ele lhe disse: Tu o disseste.
- E comendo eles, tomou Jesus o pão, e bendizendo partiu-o, e deu-o aos discípulos, e disse: Tomai, comei, isto é o meu corpo.
- E tomando o copo, e dando graças, deu-lho, dizendo: Bebei dele todos.
- Porque isto é o meu sangue, o sangue do novo Testamento, o qual por muitos é derramado, para remissão dos pecados.
- E digo-vos, que desde agora não beberei mais deste fruto da vide, até aquele dia, quando convosco o beber novo no reino de meu Pai.
- E havendo cantado o hino, saíram-se ao monte das Oliveiras.
- Então Jesus lhes disse: Todos vós outros vos escandalizareis em mim esta noite; porque escrito está: ferirei ao pastor, e as ovelhas do rebanho serão derramadas.
- Mas depois de eu haver ressuscitado, irei diante de vós outros à Galileia.
- Porém respondendo Pedro, disse-lhe: Ainda que todos em ti se escandalizem, eu nunca me escandalizarei.
- Disse-lhe Jesus: Em verdade te digo, que nesta mesma noite, antes que o galo cante, me negarás três vezes.
- Disse-lhe Pedro: Ainda que contigo morrer me importe, em maneira nenhuma te negarei. E todos os discípulos disseram o mesmo.
- Então veio Jesus com eles a um lugar, chamado Getsêmani, e disse aos discípulos: assentai-vos aqui, até que vá, e ali ore.
- E tomando consigo a Pedro, e aos dois filhos de Zebedeu, começou-se a entristecer, e a angustiar em grande maneira.
- Então lhes disse: Minha alma está totalmente triste até a morte; ficai-vos aqui, e vigiai comigo.
- E indo-se um pouco mais adiante, prostrou-se sobre seu rosto, orando, e dizendo: Pai meu, se é possível, passe de mim este copo; porém, não como eu quero, mas como tu queres.
- E veio a seus discípulos, e achou-os dormindo, e disse a Pedro: Basta que nem uma hora comigo pudestes vigiar?
- Vigiai, e orai, para que não entreis em tentação; o espírito em verdade está prestes[3], mas a carne é fraca.
- E tornando segunda vez, orou, dizendo: Pai meu, se não pode este copo passar de mim, sem que eu o beba, faça-se a tua vontade.
- E vindo a eles, achou-os outra vez dormindo, porque seus olhos estavam carregados.
- E deixando-os, tornou e orou terceira vez, dizendo as mesmas palavras.
- Então veio a seus discípulos, e disse-lhes: Dormi já e descansai; vedes aqui chegada é a hora, e o Filho do homem é entregue em mãos dos pecadores.
- Levantai-vos, vamos-nos, vedes aqui chegado é o que me trai.
- E falando ele ainda, eis que vem Judas, um dos doze, e com ele uma grande companhia, com espadas e bastões, da parte dos príncipes dos sacerdotes, e dos anciãos do povo.
- E o que o traia, lhes tinha dado sinal, dizendo: Ao que eu beijar, esse é, prendei-o.
- E logo chegando a Jesus, disse: Ajas gozo, Rabi[2], e beijou-o.
- Porém Jesus lhe disse: Amigo, a que vens aqui? então chegaram, e lançaram mão de Jesus, e o prenderam.
- E eis que um dos que estavam com Jesus, estendendo a mão, puxou de sua espada, e ferindo ao servo do sumo pontífice, cortou-lhe uma orelha.
- Então Jesus lhe disse: Torna tua espada a seu lugar; porque todos os que tomarem espada, à espada perecerão.
- Ou cuidas tu, que não possa eu agora orar a meu Pai, e ele me daria mais de doze legiões de anjos?
- Como pois se cumpririam as Escrituras, que dizem, que assim convém que se faça?
- Naquela mesma hora disse Jesus às companhias: Como a salteador saístes com espadas e bastões a me prender; cada dia me assentava convosco, ensinando no Templo, e não me prendestes.
- Mas tudo isto se fez, para que as Escrituras dos Profetas se cumpram. Então todos os discípulos fugiram, deixando-o a ele.
- E os que prenderam a Jesus, o trouxeram a Caifás, o sumo pontifice, aonde os escribas e os anciãos estavam congregados.
- E Pedro o seguia de longe, até à sala do sumo pontífice; e entrando dentro, assentou-se com os criados, para ver o fim.
- E os príncipes dos sacerdotes, e os anciãos, e todo o concílio, buscavam algum falso testemunho contra Jesus, para o poderem matar, e não o achavam.
- E ainda que muitas falsas testemunhas se apresentavam, contudo não o achavam.
- Mas por derradeiro vieram duas falsas testemunhas, e disseram: Este disse: Eu posso derrubar o Templo de Deus, e edificá-lo em três dias.
- E levantando-se o sumo pontífice, disse-lhe: Não respondes nada? que testificam estes contra ti?
- Porém Jesus calava. E respondendo o sumo pontífice, disse-lhe: esconjuro[4]-te pelo Deus vivente, que nos digas, se tu és o Cristo, o Filho de Deus?
- Jesus lhe disse: Tu o disseste. Porém digo-vos, que desde agora vereis ao Filho do homem, assentado à mão direita da potência de Deus, e vindo nas nuvens do céu.
- Então o sumo pontífice rasgou seus vestidos, dizendo: Blasfemou, que mais necessitamos de testemunhas? vedes aqui agora ouvistes sua blasfêmia.
- Que vos parece? e respondendo eles, disseram: Culpado é de morte.
- Então lhe cuspiram no rosto, e lhe deram de punhadas[5].
- E outros lhe davam de bofetadas, dizendo: Profetiza-nos, ó Cristo, quem é o que te feriu?
- E Pedro estava assentado fora na sala; e chegou-se a ele uma criada, dizendo: também tu estavas com Jesus o Galileu.
- Mas ele o negou diante de todos, dizendo: não sei o que dizes.
- E saindo à anteporta, viu-o outra, e disse aos que ali estavam: também este estava com Jesus o Nazareno.
- E negou-o outra vez com juramento, dizendo: Não conheço a esse homem.
- E dali a um pouco, chegando aos que ali estavam, disseram a Pedro: Verdadeiramente também tu és deles; porque tua fala te manifesta.
- Então se começou ele a amaldiçoar, e a jurar, dizendo, não conheço a esse homem.
- E logo o galo cantou. E lembrou-se Pedro da palavra de Jesus, que lhe dissera: Antes que o galo cante, me negarás três vezes. E saindo-se para fora, chorou amargosamente.