Lágrimas Abençoadas/I/XIX
«Ao anoitecer de um dia passado em orações e suffragios por alma do nosso chorado prelado—continuou frei Antonio—ouviram-se tiros ao longe do mosteiro. Eramos quarenta e tantos os monges assombrados pelo terror não sei se da morte, se das injustiças da humanidade a quem não offenderamos. A egreja, escura e silenciosa, afigurava-se-me um grande tumulo, e um doce repouso. Ajoelhei. Ajoelharam todos. E lembra-me com emoção o fervor d'aquellas preces murmuradas como a derradeira supplica do que vae apparecer na presença de Deus. Os tiros avisinhavam-se, e o alarido, ao principio confuso, era já perto um grito distincto: morram os frades! abaixo os ladrões!
«Eram 23 de Outubro de 1833. Que noite aquella, santo Deus!...
«As balas ouviamo'-las zumbir, e bater na parede da egreja, e nas vidraças do zimborio. Todos os servos empregados na casa vieram ajuntar-se ás nossas orações, acobertando-se com a protecção dos ministros de Deus, como debeis mulheres, em semelhante lance, buscando o invalido apoio de seus maridos. Nós não podiamos nada, quando á debilidade de nossas forças moraes ajuntavamos a resignação, o abandono de nossas vidas aos decretos da Providencia. Os paroxismos tinham sido longos e trabalhosos. Uma hora de preparação para receber a morte, que sentiamos avisinhar-se com a vozeria, e com os tiros, devera quebrantar-nos o espirito, aniquilando-nos lentamente a esperança.»
—E não tinham esperança nenhuma? Deus não podia salva'-los ainda? perguntou Maria.
—Nós, minha filha, não pediamos a Deus a vida: pediamos-lhe a salvação, a vida da alma. A morte não nos atormentava: poderia a natureza estremecer em nós com o terror do ferro, que no'-la daria; mas o Eterno manda que o espirito proteja as fraquezas da materia. É muito grande a providencia do Altissimo! Quando a morte se nos apresenta como um decreto irresistivel, sentimo-nos tanto mais longe da terra, tanto mais perto da eternidade, quanto a esperança da vida nos foge, e o frio da morte se chega. O que seria a morte do impio, apegada á vida, se não fosse esta resignação providencial, este esquecimento proprio, este mortal entorpecimento do corpo, antes que o espirito se deprenda das algemas, que parecem aperta'-lo mais na hora final?... Maria, tu entendeste-me?
—Penso que sim, meu tio. Deus quiz que a morte lhe parecesse um bem, em comparação do mal que estava soffrendo: não é assim?
—Sim, meu anjo. Deixa-me beijar-te que és uma boa parte da indemnisação que a misericordia divina me dá pelos meus padecimentos.