Lágrimas Abençoadas/I/XXII

Wikisource, a biblioteca livre

«Eramos vinte e dois homens abandonados á Providencia, sós com a nossa desgraça, sem futuro e sem esperanças de alcançar um bocadinho de pão mendigado. Eis a nossa situação. Era forçoso separarmo-nos. Companheiros de noviciado, quasi amigos de infancia, condiscipulos, presos ao céo e ao sacrificio por um laço commum, affeitos a harmonisar as nossas vozes em acção de graças, a dobrar os joelhos no mesmo chão, a comermos á mesma mesa, a soffrermos ao mesmo tempo os flagellos que attrairamos sobre nós, porque em todas as nossas frontes fôra escripto o caracter indelevel de nossa humildade... Eu não tento dizer-vos como foi amargo, como foi chorado aquelle adeus... para sempre! «Antes o martyrio, e que nos apartem!» exclamava um em quanto outro, debulhado em lagrimas nos braços de seus compaheiros, pedia um tumulo para todos nós! Foi um lance cheio d'aquella nobre dôr, que tanto honra o coração humano. O supplicio da separação d'aquella pequena sociedade cujos membros, não cançados, não egoistas, amavam-se como virgens na esphera innocente dos seus amores de collegio... podereis vós comprehende'-lo, meus amigos? Não! Deus quer que não! É sentir-se a morte, que parece deixar no coração um alento de vida para o tormento da saudade; mas aniquila todas as alegrias, todas as esperanças... que são a vida na terra.

«E separámo-nos!... que irresistivel imperio tem a desgraça, meus filhos! Recuavamos a cada passo para um novo adeus, para um novo gemido, convulso, apertado na garganta, como se a dôr nos fosse prohibida. Este doloroso trance demorou-se muito. Alguem, condoído de nós, avisou-nos dos rumores que corriam a nosso respeito na villa proxima. Dizia-se que tencionavamos, reunidos, caminhar para onde nos fosse possivel pegar em armas. A calumnia podia tudo então. O odio foi fertil em pretextos... Ora o amor da vida fez calar o grito da saudade. Demos o ultimo Adeus. O ultimo... foi o ultimo, meu Deus!... Diz-me o coração que sim.

«Entrei n'uma aldeia, onde fôra prégar um anno antes. Pedi gasalhado na casa de um lavrador. Foi-me negado. Não instei. Fui á porta de um jornaleiro: achei-a franca. Era assim o seu coração, porque o pobre, sem vergonha nem pesar de o ser, tem uma alma cheia de bondade. Pedi-lhe umas palhas: deu-me a sua cama, a sua manta e o seu lençol de estopa. Não lhe pedi mais nada: mas o pobre deu-me o seu caldo, o seu pão amassado em suor, e o seu apresigo, producto das economias da semana para solemnisar o dia do descanço. E adormeci abençoando o pão do pobre, em quanto elle, sentado ao lar, rezava o seu rosario, ou espertava a fogueira para me ser menos sensivel a pouca roupa da cama; O pobre será sempre o eleito, o ente privilegiado para as virtudes praticas do evangelho. Jesus Christo adoçou-lhe o travo da penuria, dando-lhe ao espirito o antegosto das riquezas que enthesoura no céo.

«Adormeci.

«E alta noite, fui acordado em sobresalto pelo meu hospede. Ouvi tiros. «Que é?» perguntei eu. Não sei ao certo, senhor. Ha pedaço que ouço estes tiros, e estou com medo... «Que venham ter comnosco?» perguntei eu. «Sim, senhor; mas eu vou ver o que é» respondeu o bom homem.

«Eu quiz conte'-lo; mas elle convenceu-me da segurança da sua empresa. Quando voltou, disse-me que tinham sido mortos dois frades do meu convento em casa de um tal lavrador. Imaginae o meu terror. Quiz saltar fóra da cama, trocar o meu habito por alguns farrapos e fugir; mas o jornaleiro estorvou-me com boas razões. «A casa de um pobre, disse elle, é mais segura.» Não a perseguem as grandes desgraças, porque tambem a não procuram as grandes felicidades—disse eu na minha consciencia. Orei por alma dos meus infelizes amigos, se o seu martyrio não era expiação bastante de suas faltas.

«Amanheceu, e tive mais informações. Dizia-se que dois monges desfigurados vieram bater á porta do lavrador que me tinha recusado a entrada. A porta fôra-lhes aberta, porque ninguem de casa os conheceu ao principio. Recolhidos, foram logo conhecidos; mas era tal o seu contentamento, e a sua linguagem que o lavrador adormeceu descançado com os seus dois hospedes, que, por mais de uma vez, declararam com arrogancia que já não eram frades. O lavrador não os comprehendeu. Mas, alta noite, uma guerrilha forçara a porta, entrára e matára os dois desgraçados que tiveram a louca ousadia de resistir com bacamartes, depois de malogradas as suas razões. Surprehendeu-me esta noticia! parecia-me um conto disparatado!

«O jornaleiro arranjou-me um fato semelhante ao seu. Desfigurei-me. Providencia de Deus! No instante em que me vestia, olhei para a ferida que recebera na perna, e encontrei-a quasi cicatrizada! É quando o atheu o reconheceria o anjo do Senhor, pensando as chagas da alma e do corpo áquelles que o confessam!

«Saí. O quinteiro do lavrador estava a trasbordar de povo. Conheci que os cadaveres estavam no centro.—Atravessei a multidão, até junto do carro onde os mortos estavam... recuei horrorisado! Senti precisão de gritar: «justiça de Deus!» mas cedi a um sentimento egualmente grande. Do meu peito saíu outro grito: «misericordia, meu Deus!»

«Informei-me. Estes dois infelizes caminhavam para suas casas, com o cofre das economias do convento. Eram os assassinos do venerando prelado.

«Aquelle sangue escrevera na face de taes homens uma lugubre sentença de punição. Quem seriam os instrumentos de vingança? Ignora-se.

«Meus amigos, erguei a Deus as mãos, e os corações. Oremos pelas almas dos meus desgraçados companheiros!»

E oraram de joelhos. Maria tremia como de susto.