Lágrimas Abençoadas/II/VI

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Esse dia de estreia para a missão do padre, foi mais um decorrido nas immoralidades do discipulo.

Não viera a casa, durante o dia, e metade da noite. Parece que tudo dormia no palacio; quando Fr. Antonio sentiu o rumor de um cavallo no pateo. Orava ainda, fóra do leito, ajoelhado, com o lenço ensopado em lagrimas de dorida saudade. A imagem de sua sobrinha não lhe consentia o repouso, de noite; obrigava-o ás tribulações de um amante desprezado. E, então, o ministro de Deus recolhia-se em oração, com a vehemencia de uma esperança infallivel no refrigerio do céo.

A essa hora, pois, chegava a casa Alvaro da Silveira. O seu quarto era immediato ao do sacerdote. Entrou assobiando as reminiscencias das cavatinas theatraes, e reclamou em brados imperiosos a ceia. Os servos pontuaes como escravos aos caprichos rapidos dos patricios da Roma dos imperadores, affluiam a servir o amo, que ordinariamente punia uma certa demora com a ameaça formal de quatro chicotadas. Conduzida a ceia, repellira os creados com desabrimento e ficára sósinho trauteando e comendo promiscuamente.

Alvaro acabava de cear, esquecido da apresentação do padre, quando ouviu na porta um toque.

—Entre quem é!—bradou elle.

Quem quer que era cumpriu. A presença veneranda de Fr. Antonio, um passo dentro do quarto, era uma impressão nova para o mancebo! Involuntariamente sentiu curvar-se-lhe o pescoço á cortezia grave com que o sacerdote o saudára.

—Então ainda a pé?!—perguntou Alvaro.

—Ainda a pé, e Deus sabe se me deitarei... As horas da noite são as horas da oração. Parece que o ermo e o silencio excitam a conversação do espirito com Deus... E v. ex.ª recolheu-se agora, não é verdade?

—É verdade...—respondeu o mancebo com um embaraço, que revelava a sua extranheza n'estes dialogos.

—Precisa repousar—tornou o padre—Eu, como estava a pé, quiz dar-lhe as boas noites. Agora recolho-me pedindo a Deus o seu descanço, como condição da vida, para amanhã abrir os olhos á luz que bem póde não alvorecer para nós. Fique v. ex.ª com Deus.

E retirou-se. As ultimas palavras de Alvaro pareciam syllabas desarticuladas. O frade ferira-lhe um orgão ainda virgem d'aquellas impressões. Aquelle memento, áquella hora, por aquelle homem, acordára-lhe o mais nobre dos pensamentos, que o materialismo lhe adormecera nos gelos do coração: DEUS. Os confusos projectos do dia seguinte aturdiam-se-lhe na cabeça, como alvoroçados pelo pregão da morte, que mandava calar os designios humanos na presença do destino eterno.

O abalo fôra vehemente, mas pouco duradouro. Alvaro da Silveira adormeceu. É que o som vibrado na corda da religião, devia esvaecer-se entre o estrondo das paixões ruidosas, como o vagido da creança no alarido das turbas amotinadas.