Lágrimas Abençoadas/II/XV

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Fr. Antonio dos Anjos concluira a sua reza. Gonçalo da Silveira esperava anciosamente o ensejo de visita'-lo. Mal ouviu passos no quarto, entrou. Riam-se-lhe as feições, e pulava-lhe o coração na face. O sacerdote achou-se nos braços do velho pae, que soluçava expressões de reconhecimento.

O padre maravilhava-se.

—Pois a que devo eu esta commoção de agradecimentos?—perguntava elle enternecido.

—Salvou meu filho!—exclamava o fidalgo, beijando-lhe as mãos.—Amenisou-me a velhice... Deu-me um bom fim de vida, e uma boa morte. Vós arrancastes meu filho do mau caminho.

Era bem justificado o pasmo de frei Antonio! Gonçalo da Silveira contara-lhe o que vinha de passar com Alvaro. Exagerára, talvez, as suas expressões, as palavras do filho, os elogios do mestre, e as esperanças da sua boa alma. Frei Antonio, que não podia attribuir-se a rapida mudança do neophito, agradecia tacitamente a Deus o raio luminoso de graça que fizera baixar ao coração escuro do convertido. Depois, quando a commoção do contentamento serenou em Silveira, o padre, magestoso como um propheta, apontou para o crucifixo.

—É alli—exclamou com uma voz vibrante e pathetica.—É alli, que v. exc.ª deve ajoelhar e agradecer.

Gonçalo da Silveira ajoelhou. Pouco mais atraz ajoelhára o padre.

O lance era sublime, o que ha de mais sublime debaixo do céo. Adorar com mais fervor, só os anjos na presença immediata do Altissimo!

Alvaro entrava no quarto do padre, cuja porta ficára meio aberta. Ao ver seu pae n'aquella postura extranha, e mais atraz, o vulto immovel do levita, recuou machinalmente.

Que sentimento o fez recuar? Não saberia elle dize'-lo! Susteve-se irresoluto. Ergueram-se os que oravam, e ambos olhavam para a porta. Viram Alvaro, que parecia ceder ao pejo. Pejo! um tal sentimento nas faces petrificadas pelo gelo da libertinagem! Pejo no mancebo, que se vangloriava de um cynismo inalteravel!

—Não quer entrar na sua casa, sr. Alvaro?—perguntou Fr. Antonio, collocando-se cortezmente fóra da porta do quarto.

—Vim perturba'-lo...—murmurou Alvaro, hesitando entrar.

—Não era possivel...—O espirito quanto mais se avisinha de Deus, menos cede ás perturbações... Nós oravamos com fé, e ardor. E, demais, a entrada de v. exc.ª não podia distrair-nos para mal.

Alvaro tinha entrado.

Agitou-se uma conversação variada entre as tres pessoas. Fr. Antonio, que vivera na casa do agricultor nas provincias do norte, falava de agricultura. Gonçalo parecia versado n'este ramo, e applaudia os melhoramentos, a que elle devia um duplicado rendimento das suas grandes propriedades. Alvaro escutava, pela primeira vez, um discurso serio, especialmente sobre agricultura, que elle ignorava desde a estação das sementeiras á das colheitas. E não parecia enfastiado, com quanto guardasse um justificado silencio na materia.

Era já outra a conversa. Frei Antonio estudava a maneira de entreter a attenção do discipulo. Falou d'esta litteratura amena, que se tornou universal por ser perigosa, por ser destruidora dos costumes, e dos estudos sérios. Falou de romances, como falaria de livros canonicos.

Conhecia-os como um vigilante examinador da origem da immoralidade. Alvaro conhecia alguns e honrava-os com a posse privilegiada de uma pequena estante que decorava no seu quarto. Fr. Antonio reparava nas encadernações de marroquim douradas, e nos titulos com que os licenciosos Paulo de Kock e Pigault Lebrun assignalaram os seus thesouros de libertinagem, escandalos da prevertida arte de imprimir.

Alvaro que não podia impugnar os argumentos do padre, e tivera a louvavel modestia de ouvi'-lo apenas, não quiz deixar-lhe plena gloria de triumpho, sem uma observação que elle julgava um golpe certeiro:

—Mas sua sobrinha—diz elle—é romantica...

—Que é ser minha sobrinha romantica?—atalhou o padre, sorrindo.

—Lê romances, escreve romances, pensa como nos romances... emfim, não vive, nem pensa, nem fala como a maior parte das mulheres...

—Ora ahi está uma definição de mestre!—disse o padre, soltando uma risada que parecia um motejo, se não fosse sua.—O romancista deve ser uma coisa bem extraordinaria!—proseguiu elle, batendo levemente no hombro do discipulo.—Quem me parece romantico, segundo a arte, é v. exc.ª, sr. Alvaro.

—Eu!?—interrompeu Alvaro com innocente admiração.

—Sim, meu caro senhor. Não póde assim fazer-se uma idéa tão singular de uma pobre rapariga, sem contempla-la pelos olhos de uma imaginação maravilhosa! Minha sobrinha é uma artista que trabalha muito para sustentar-se, e vestir-se. Ora isto é muito positivo, muito trivial, muito commum com a vida do pobres, onde nunca entrou a palavra romance. Minha sobrinha nas horas furtadas ao trabalho, lê os livros que eu escolhi para a sua cultura espiritual, mas todos elles conselheiros da virtude, da probidade, da paciencia, e do temor de Deus. A sciencia profana, que eu affeiçoei ás necessidades do seu espirito, é muito pouca, porque, se fosse muita, seria um desperdicio de tempo, e de canceira inutil. A sciencia de ser boa filha, boa esposa e boa mãe, limita-se a muito poucas regras; e uma mulher não precisa outra sciencia. Minha sobrinha não leu ainda romances. Sabe que existem enredos torpes, escriptos em bella linguagem, como os cadaveres fetidos envoltos nos velludos prateados da eça; mas os seus dedos não levantaram ainda esse envoltorio de podridão. Minha sobrinha fala esta linguagem, senão geral, a melhor que os filhos podem aprender para falarem a seus paes, porque minha sobrinha conhece apenas o metal de voz de sua familia... É isto que v. ex.ª chama «mulher romantica?»

Alvaro demorou a resposta.

—Eu pensava—balbuciou elle—outra cousa... O mundo engana-se muito nos seus juizos.

—Pois—tornou o padre com tristeza—que juizos são os do mundo a respeito d'ella?

—Eu lhe digo... O mundo chama romantica uma mulher, como muitas mulheres, que os romances nos pintam. Por exemplo, uma virgem, que vive n'um sonho continuado; que vê anjos onde as mulheres prosaicas não vêem nada; que scisma em continuas tristezas, ao lado dos que vivem n'uma continua gargalhada; que busca a solidão, encosta a face pallida á mão direita, como a estatua da melancolia, e se devora incessantemente sem poder explicar o motivo por que se devora. É o ideal que a mata; é a febre d'uma paixão indefinivel que a consome, é a esperança de um sonho, de que não acorda; é finalmente, a poesia, o romantismo.

Frei Antonio ouvira religiosamente este harmonico de palavras, que algumas vezes lhe pareceram desapegadas, e vasias de sentido. Respeitador das conveniencias, fez calar a verdade austera, que o mandava pedir uma definição logica de todo aquelle espiritualismo, de toda aquella linguagem refolhuda. Absteve-se da sua auctoridade, e transigiu discretamente.

—Serão esses—diz elle—os predicados da mulher romantica; mas o que eu posso conscienciosamente asseverar a v. ex.ª, é que minha sobrinha está tão longe de ser romantica, quão longe de compreender a definição que o meu amigo acaba de dar.