Laura de Anfriso/Écloga Primeira

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LAVRA

DE

ANFRISO
Pello Lecenceado Manoel da Veiga.

Ecloga Primeira

AO EXCELLENTISSIMO PRINCIPE
O SENHOR D. DVARTE.

Anfriſo. Alſiſibeu.

O Lamentar ſuaue dos Paſtores
Anfriſo juntamente,& Alſiſibeu
Cãtarei,ſeus queixumes imitãdo.
A cujo canto o Rio orelhas deu;
E as nouilhas deixando heroas,& flores,
Eſtiuerão ſuſpenſas eſcutando.
Vôs que repreſentando

   Eſtais, neſſe poder neſſa excellencia,
   Hũa dourada idade
   Da Real Aſcendencia,
   Inclinai Principe alto a Mageſtade
   E nos bolques entrai que os eſcurârão;
   Tão bem Deoſes ja boſques habitârão.

Ha de vir por ventura aquelle dia:
   Quãdo em cothurno excelſo a Muſa graue
   Pello mundo dirâ voſſas grandeſas?
   Ha de vir quando em cytara ſuaue,
   Cante a Imperial genealogia?
   Mageſtages Reaes? nobres Altezas?
   Mas em quanto defeſas
   Eſtas glorias me tem minha ventura;
   Vos darei entre tanto
   Os verſos da eſpeſſura,
   Onde enſayarme vou para outro canto;
   Sofrei que eſta hera a vôs viua arrimada,
   Entre voſſos loureiros enrolada.

Apenas ſe apartâra a ſombra fria,
   Quando o orualho agradauel para o gado
   No campo as tenras heruas eſmaltaua;
   Ao pê de hũa ſylueira recoſtado
   O ſem ventura Anfriſo o Ceo feria
   Cos laſtimoſos ais que derramaua.

Tirano Amor bradaua,
Tirano Amor, tiranas alegrias,
Tirano paſſatempo,
Ia de tuas porfias
Vingado eſtou: ja veo o doce tempo
De meu tão deſejado deſengano:
A Deos maligno Amor, cruel tirano.

Que tiue ſenão dor,pena,& tormento,
Quando andaua feruindo a teus altares,
A pos fingidas glorias embebido?
Que cantos derramei aos ſurdos ares?
Mas ay que ſe enganaua o penſamento
De ſeus prantos futuros eſquecido.
Ay quão mal entendido
Era de mi o dano, que encuberto
Aos olhos,não ſe via,
Com que outro deſconcerto
E outra pena maior a forte ordia,
Trazendome entre falſas eſperanças;
Duros cuidados,& aſperas lembranças.

Em loucuras de Amor perdendo o ſizo
Denoite repetia o nome amado
Por vnico deſcanſo a meu deſejo.
E ja quando no carro marchetado
Moſtraua a branca Aurora o alegrẽ riſo

Aljofar derramando ſobre o Tejo
Eu tanto que a luz vejo,
A choça paſtoril deſemparaua
E em doces deſuarios
Laura,Laura,entalhaua
Com a fouce nos alemos ſombrios;
Crecei,crecei,dizia,ô ramas bellas:
Leuai o bello nome atê as eſtrellas.

Quantas vezes das eruas eſquecida
Entre os cordeiros a ouelhina muda
Pondo os olhos em mi ficou balando!
Porque me ouuio tocar a frauta ruda,
Ia não leda,mas triſte,& enrouquecida,
E ſem concerto os ares acroando.
Oh gado doce & brando!
Buſcay de oje em diante outro paſtor:
Que eu deixando eſtes montes,
Por fartar minha dor
Vou buſcar outros climas,& orizontes,
Adonde a morte bemauenturada
Acabe a vida miſera & cançada.

Quantas vezes dos vendos a braueſa?
Soſpirando amanſei com o doce canto?
E as furioſas ondas empolladas?
As dores deſiguaes puderão tanto

Que àbrandàrão dos montes a dureza.
Ficãdo as rochas cõ me ouuir quebradas
Ay horas mal gaſtadas!
Ah jugo riguroſo,& deshumano!
Triſte cadea fera
Daquelle Deos tirano!
Onde a alma eſperando deſeſpera;
E onde (ô duro penar!) morre viuendo,
Pera que mais,& mais va padecendo.

Vòs ſempre verdes myrtos,& altas faias,
Duros pinheiros, alemos ſombrios,
Montes pyramidais, caluos rochedos:
Deſpenhados criſtais dos claros rios,
Ondas do brauo mar, amenas praias,
Que tendes por eſcudos altos penedos:
Dizeime que ſegredos
Do liſongeiro amor cantar me ouuiſtes?
Quando peſadamente
Os ecchos repetiſtes
De minha Lyra triſte,&e deſcontente,
Que quãdo ſeu queixume aos vétos daua,
O ſilencio dos boſques animaua.

Ay que magros andauão na erua verde!
Os mimoſos cabritos, & os cordeiros:
Que tambem minha pena os abrangia.

   As cabras perdoàrão aos ſalgueiros;
   Todo o bem com ſeu dono o gado perde;
   Ambos de dous Amor nos deſtruia.
   Guardallo eu não podia:
   Pois q̃ nem guardar ſoube o meu cuidado;
   Perdido me enredei,
   Viuendo ſô lembrado
   Do nome de hũa ingrata que adorei,
   De mi,& das ouelhas eſquecido;
   Que muito ſe ẽ mi meſmo andei perdido?

Em mi perdido andei como em deſerto;
   Minha alma eſtaua feita hum laberinto.
   Sepultadas em dor minhas potencias.
   Leuarme de hum tormẽto em outro ſinto
   Tudo era magoa, tudo deſconcerto,
   Tudo rigores, tudo violencias.
   Ah crueis inſolencias!
   Oh aſperas priſoẽs, ô duros laços!
   Oh fortuna auarenta!
   Reſplandores eſcaſſos!
   Que inda agora a memoria me atormẽta
   Daquelle dia em que me perdi;
   Ay que fiquei perdido quando vi!

Naquellas ſebes vi a dura ingrata,
   Onde torcendo o paſſo as parras verdes
   Tem os duros eſpinhos enlaçados.

Vôs ſereis teſteminhas ſe quiſerdes
De meu primeiro amor, Rios de prata,
Que correis para o mar deſpedaçados.
Eſcaſſamente entrados
Tinha doze annos na florida idade:
Ja cantando mouia
O monte a ſaudade;
Ia os ramos tocar do chão podia;
Quando me arrebatou o maligno erro:
Ah minino cruel,de bronze,& ferro!

Agora te conheço a natureza
   Improbo amor tirano endurecido
   Agora que tuas obras me enſinárão.
   Tu de Rodope ou Iſmaro es nacido,
   Teu berço foi das rochas a dureza,
   Onde Tygres Hireanas se criârão.
   Ai quanto me cuſtàrão!
   Hũas breues & falſas eſperanças,
   Com que então me enganaſte;
   Mas logo as eſquiuanças
   Sobre mi como chuua derramaſte,
   Ordenando cruel, que a inimiga
   Va fugindo de mim; & eu que a ſiga.

Quantas vezes correndo ao freſco Rio?
   As vacas por fugir da calma ardente
   Que as louras ſementeiras abraſaua;

Me virão ſolitarío, & diſcontênte?
Os dous olhos a par correndo em fio,
Com que a larga corrente acrecentaua.
Deſpois que deſpertaua
Daquelle mortal ſono o penſamento;
Pera que alliuiaſſe
Em parte meu tormento,
Pondo os olhos no chão, & a mão na face,
Laurá, Laura, mil vezes repetia,
O monte Laura, Laura, reſpondia

Nâo mais não mais tiranos penſamentos
 Não mais que aſſâs prouel voſſos rigores
 Não mais, não mais cuidados mentiroſos
 Ia agora cantareis ſabios Paſtores
 (Entre os fogos de Fillis, & os tormentos
 A que chamou Menalcas glorioſos)
 Deſenganos ditoſos
 Qué indá q̃ em algum tempo me tardarão
 Em dar morte a meus danos;
 Em fim em fim chegârão;
 Venhais embora ô ſantos deſenganos
 De minhas glorias vnico teſouro.
 Oh tempo venturoſo, idade de ouro.

Bem como aquelle aquem o mar vomita,
 Depois da procelloſa tempeſtade

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