Lei e regulamento
Não serviu, era de esperar, aos juristas oficiais a teoria por nós desenvolvida na demonstração de que o nº 9 do art. 42, no reg. nº 4.824, não atribuía à polícia, no inquérito policial, todas as faculdades, em que as leis do processo investem, para o sumário da culpa, a magistratura. Os raciocínios da Imprensa não são magistrais, as suas opiniões não encerram o debate, senão quando acertam de estar com as opiniões ou os interesses do Governo e seus amigos. Fora daí claro está que seria absurdo termos razão. Todo este país bem sabe que ela nunca abandonou os nossos governos, e que o critério dos seus panegiristas é o termômetro infalível do direito.
Aliás nos parecia evidente que as expressões “no que for aplicável” não haviam de estar naquele texto escusadamente. Isso tanto mais certo se nos afigurava, quanto, da primeira vez que o invocaram nas folhas, em um comunicado editorial, lhe tinham subtraído essa cláusula relevante.
O comunicante citava o Processo Criminal de Araripe, dando da sua versão este traslado: “Para notificação e comparecimento das testemunhas... se observarão as disposições, que regulam o processo da formação da culpa.” Ora o que se acha na compilação desse legista, art. 196, § 13, p. 154, é a cópia literal do decr. nº. 4.824, art. 42, nº 9, nestes termos: “Para a notificação e comparecimento das testemunhas e mais diligências do inquérito policial se observarão, no que for aplicável, as disposições que regulam o processo da formação da culpa.” Como se está vendo, eliminava o citante a ressalva “no que for aplicável”, sem indicar sequer a omissão pela reticência, com que, na linha anterior, assinalara a supressão da frase “e mais diligências do inquérito policial”. Algumas linhas adiante reincidia no mesmo descuido o advogado da polícia, averbando à conta do mesmo compilador este fragmento de período: “As testemunhas, que não comparecerem, tendo sido citadas”. Nestoutro tópico, de feito, Araripe não fazia mais que transcrever declaradamente (art. 355, p. 271, e não art. 344, como se inscreve na citação) o art. 95 do Código do Processo em seu fraseado textual: “As testemunhas, que não comparecerem sem motivo justificado, tendo sido citadas...” De onde se vê que, às mãos do citador, o texto padecera a mutilação da restritiva “sem motivo justificado”, anterior à incidente “tendo sido citadas”, que destarte aparecia travada com a oração “que não comparecerem”. Desta decepação resultava acabar-se, para as testemunhas, com o direito de escusa, expressamente consagrado no texto, assim como da primeira se origina a colação à autoridade policial de todas as prerrogativas do juiz na formação da culpa, sem a reserva igualmente explícita no regulamento de 1871.
Ora, como essa reserva lá está, formalmente articulada, nós, que nos não reputávamos com o direito de imitar aquele esquecimento, ousamos concluir que o autor do decreto não a devia ter posto ali em vão. Se havia na formação da culpa (alçada do juiz), coisas não-aplicáveis ao inquérito (competência policial), essas deviam ser por força, antes de mais nada, bestuntávamos nós, as em que entre a função policial e a função judiciária existissem barreiras reconhecidas. E um dos pontos onde certamente as há, treslíamos nós, é na atribuição de prender. Prender é função privativa da justiça, guardadas as execuções formais da lei. Logo, se o texto que faz comuns à polícia, no inquérito policial, os poderes da judicatura no sumário da culpa, não é absoluto, antes reduz essa transmissão de faculdades ao que for aplicável, isto é, ao que condisser com a natureza da instituição nova, necessariamente dela se deve supor excluído o arbítrio da prisão. E de verdade este, franqueado à polícia, a pretexto de citação de testemunhas, seria, no arsenal, já tão opulento, dela, uma anomalia das mais duras, um vexame dos mais intoleráveis.
Mas demos o contrário. Fomos nós quem tresloucou. Estava, admitamos, no propósito do decreto imperial armar os chefes de polícia com o jus de prender, a título de inquirição de testemunhas, na mesma reforma cujo brasão era haver desarmado a polícia de todas as funções judiciais. Seja. Assim seria. Mas então o decreto, onde se encontra esse texto, exorbitava da lei, que devia regular. Isso óbvio será, se a compulsarmos.
Na lei a disposição, de cujo ventre saiu o inquérito policial, é a do art. 10, § 1º, concebida assim:
“Para a formação da culpa nos crimes comuns as mesmas autoridades policiais deverão, em seus distritos, proceder às diligências necessárias para descobrimento dos fatos criminosos e suas circunstâncias, e transmitirão aos promotores públicos, com os autos do corpo de delito e indicação das testemunhas mais idôneas, todos os esclarecimentos coligidos; e desta remessa, ao mesmo tempo, darão parte à autoridade competente para a formação da culpa.”
Nada mais.
Ora da textura desse parágrafo bem se vê que o legislador, na tarefa ali cometida à polícia, apenas lhe teve em mente incumbir, não um processo regular, mas uma colheita de meros “esclarecimentos”, dos quais apenas reputa essenciais o corpo de delito e a indicação das testemunhas. Não inovou outra coisa. Não conferiu à polícia outras faculdades. Como admitir, pois, que, além dessas, lhe outorgasse o exercício do direito de prisão? E isso por inferência? E essa inferência justamente numa lei, que consagrara parte tão larga do seu texto a rodear de garantias contra esse arbítrio a liberdade individual, concentrando-o todo nos órgãos da justiça? Não pode ser.
Logo, se o art. 42, § 9, do decreto nº 4.824 assegura à polícia o direito de prender, esse estatuto regulamentar está de guerra aberta com o art. 10, § 1º, da lei nº 2.033. No Império, como na República, o poder executivo expedia regulamentos para a execução das leis; e se eles as excediam, eram abusos de autoridade, a que os tribunais muitas vezes negavam execução, devendo negar-lha sempre.
O desmando não era raro sob a nossa monarquia (de que a república se mostra aluna aproveitada), como não tem sido noutras. Da Itália, por exemplo, notava, há alguns anos, um conselheiro de Estado: “Longuíssima tarefa seria deveras citar os casos inumeráveis de jurisprudência prática, em que tribunais, cortes de apelação, cassações e até o conselho de Estado, com aflitiva persistência, tacham de ilegalidade e inconstitucionalidade, entre nós, os regulamentos. Não há, talvez, um só imune a essa pecha. E tal uma das causas principais de haver perdido e perder o Estado tantas lides, que as administrações têm de sustentar por simples obrigação de ofício.”
Mas não há necessidade nenhuma de assacar ao decreto de 22 de novembro de 1871 esse desvio, quando, se o interpretarmos segundo a acepção natural do seu próprio teor, vamos encontrar-lhe, nas palavras da ressalva, onde nos temos apoiado, o documento de que, sendo judicial o arbítrio da prisão, ficou, por esse restritivo, excluído claramente das funções policiais ali à polícia adscritas.
Demais, que esse é o estado legislativo do assunto, ainda no-lo certifica a lei nº 76, de 16 de agosto de 1892, art. 15. Nesse lance esse ato republicano, que deu nova organização ao serviço da polícia no Distrito Federal, assim se enuncia:
“É limitada a competência da polícia, nos inquéritos policiais, para a formação da culpa nos crimes comuns, às diligências policiais para o descobrimento dos fatos criminosos e de suas circunstâncias, devendo transmitir, com breve relatório, diretamente, ao juiz da formação da culpa, com os autos do corpo de delito e indicação das testemunhas, todos os esclarecimentos coligidos, na forma do art. 10, § 1º, da lei nº 2.033, de 20 de setembro de 1871, exceto na parte derrogada pelo presente artigo.”
O qualificativo de policiais, cujo emprego, nessa provisão legal, define os encargos por ela cometidos à polícia do Rio de Janeiro, põe de manifesto como o legislador não a considerava empossada numa faculdade, qual a de prender testemunhas, que não só o Código do Processo, senão até as instituições reacionárias de 1841 e 1842, a lei de 8 de dezembro e o reg. de 31 de janeiro, reservaram privativamente à magistratura.