Lenda da Costa da Caparica

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Quem, em [Lisboa] ou arredores, não conhece a [Costa de Caparica], esse extenso areal que nos fins-de-semana e no Verão acolhe como uma mãe milhares de corpos em busca de sol e mar. Mas quantas dessas pessoas conhecerão na realidade a história que deu o nome ao areal onde estendem os corpos e distendem os espíritos nos quentes dias de Verão, depois de longas horas de espera nas bichas das camionetas que as levarão ao rectângulo exacto das suas toalhas de praia?

Pois tudo começou numa tarde, há longos anos, uma tarde calma e branca de calor em que o sol teimava em deixar-se morrer lá para o outro lado do mar. Nessa tarde, olhando a bola de fogo que inevitavelmente ia mergulhando no mar, estava a menina sentada na rocha. Parecia não ter pressa, como quem detém o segredo do fluir do tempo fechado na sua mão; mas podia, também, estar apenas à espera de alguém.

Há já um grande bocado que o velho a observava, e ela nem dera por isso. E o velho esperou que viesse alguém que não veio. O sol morreu, o dia ficou anil e a menina ali, sentada embrulhada na sua capa. O velho perguntou-se pela milésima vez quem seria aquela criança e, falando alto, disse:

- Quem esperas tu, menina?

- Ninguém! Estou sozinha!

- Como te chamas?

- Não sei. Costumam chamar-me Miúda.

- Olha, Miúda, porque estás sozinha?

- Também não sei. Estive sempre assim.

- Donde vens?

- Venho da estrada. Só conheço os caminhos. Por onde passo dão-me de comer.

- E essa capa, quem ta deu, Miúda?

- Tive-a sempre. É a única coisa que tive sempre.

O velho estava admirado. Como era possível que uma menina tão pequena andasse pelo mundo sem eira nem beira, sem saber sequer o seu nome. Teve pena da miúda e teve pena de si. Também ele era só.

- Queres ficar comigo, Miúda ? – perguntou subitamente.

- Pode ser. E fazemos o quê?

- Tu vais crescendo e eu envelhecendo. Aceitas?

- E moras aqui, ao pé do sol e do mar?

- Aqui mesmo. Ali, naquela casinha no alto do monte – indicou o velho.

- Bem, então fico contigo.

E ficaram juntos, ele a envelhecer, ela a crescer. Viviam com o que havia: o sol, o mar, os mariscos das rochas. Ele ensinou-lhe a falar a Deus, esse Deus que todas as manhãs aparecia resplandecente ou encoberto e pela tarde adormecia enterrado no mar ou na serra. Ela ensinou-lhe a olhar as coisas como se em cada dia fossem outras e novas.

Mas um dia o velho achou que era tempo de ir-se embora. Pediu à Miúda a capa dela porque tinha frio. Ela pôs-lhe a capa sobre o corpo estendido no catre, deu-lhe mão e deixou-se dormir juntamente com ele. Só que, quando ela acordou, ele não respondeu à sua chamada e já não foram juntos cumprimentar o sol.

A miúda não chorou. Sentiu a falta do seu velho companheiro, mas... ela sabia que a sua vida era estar só, sabia que só o momento era companheiro. Por isso ela não chorou. Enterrou o velho numa sepultura perto da igrejinha da Senhora do Monte e deixou de chamar-se Miúda. Escolheu para si o nome de Mulher.

Na velha casa do velho passou a viver a Mulher, solitária. A sua vida era ainda a mesma vida de antes, com o Sol e o mar, a Lua e as nuvens. O seu alimento, os mariscos. As suas vestes, a velha capa. Todos os dias subia ao alto do monte e rezava. Não entrava na igreja porque a sua abóbada era o céu, os pilares, as árvores, o altar o mar. Junto do túmulo do seu velho amigo pedia à Senhora do Monte que deixasse o mundo sempre belo e cheio de gente que ela pudesse olhar e ver. E a Mulher viveu na velha casa do velho companheiro, tantos anos que lhe perdeu a conta porque nunca os contou. Era solitária mas não estava só. De dentro de si brotava a luz do sol e da lua que bebera todos os dias e todas as noites da vida.

Certo dia, reparou que a gente da zona começava a olhá-la estranhamente, como se tivesse medo dela. Não atinava porquê, porque ela nada mais era do que Mulher, velha e solitária, a Mulher da capa que afinal todos conheciam desde sempre. E agora ouvia baixinho, quando descia à aldeia: «Bruxa, bruxa!».

Entristeceu. Entristeceu porque desconhecia que o desconhecido mete medo às pessoas. Porque não sabia que os solitários são estrangeiros, e, como estrangeiros, estranhos, e, porque estranhos, mágicos e poderosos. E porque não sabia que de dentro de si saía uma luz desconhecida quando no alto do monte erguia os braços ao sol ou à lua na sua saudação diária.

E as pessoas foram contar ao Rei, que como senhor das gentes tem de ser dono das mentes. E o Rei mandou chamar a Mulher:

- Mulher, dizem que és bruxa!

- Real Senhor, já sou só uma velha.

- Dizem que és poderosa, que fazes ouro e malefícios?

- Oh, meu Senhor! Sou tão pobre que só tenho esta capa desde que nasci.

Quedou-se o Rei a pensar. Olhou a Mulher e viu que era verdade. Mandou-a embora com vergonha de ter visto o que os outros não tinham visto.

O tempo fluiu como passam os dias e as noites. O mundo todos os dias foi sendo outro e outro. Só as gentes não mudaram o seu pensar e, por isso, um dia, quando souberam da morte da Mulher pelo dobre dos sinos da Senhora do Monte, acorreram à velha morada, cheias de curiosidade.

Ali estava o corpo da Mulher, agora sim, só estendido no mesmo catre que servira ao velho companheiro. Sobre o corpo a velha capa, sobre a capa um papel, para o Rei. Nesse papel ela dizia:

«Meu senhor, deixo-vos a capa que tenho desde que nasci. Encontrei nela todo o ouro que diziam que eu tinha: foi o meu velho companheiro que, antes de se ir embora, aí o meteu. Eu nunca o tinha visto e agora que o vi não preciso dele. Utilizai-o nesta terra para que todos tirem dele o que mais desejarem. Afinal, a minha capa era uma capa rica. Que o meu Deus vos abençoe.»

Calaram-se as gentes, porque há momentos em que só o silêncio é dono das vontades. Talvez, quem sabe, se tenha calado o mar, por um momento, ou tenha marulhado, pela Mulher, uma oração ao Sol.

Foi assim que esse areal, hoje pejado de corpos nos Verões do tempo, tomou o nome de Caparica, em memória de uma Mulher que ali apareceu um dia, quando era Miúda, vinda dos caminhos da terra, coberta por uma capa já velha.

Fonte: Fernanda Frazão – Lendas Portuguesas, vol. V. Lisboa: Multilar, 1988, pp. 17-22.