Lendas do Sul/O Negrinho do Pastoreio
A Coelho Netto
Pelotas — 1 de janeiro, 1907
Meu caro patrício Sr. J. Simões Lopes Netto.
Venho agradecer-lhe a dedicatória da lenda “O Negrinho do pastoreio ”publicada no Correio Mercantil ”de 26 de dezembro. Já conversamos sobre a necessidade que, todos quantos nos interessamos pela tradição temos de coligir as trovas e narrativas do velho tempo. Elas representam o sonho dos que passaram, são a bem-dizer o rastro das almas. Entendem muitos escritores que devem corrigir a afabulação e a forma de tais relíquias tirando-lhe o caráter ingênuo, o sabor suave que elas trazem de origem. O meu amigo não incorreu em tal culpa—procedeu como o file celta que, chamado para referir aos da “clan ”as histórias dantanho, dizia-as repetindo com respeitosa observância da tradição tal como as ouvira dos maiores. E o que, sobretudo encanta no lindo raconto que me ofereceu, no qual transparece bem a alma do povo pastoral, é a simplicidade.— Lendo-a tive a impressão de estar ouvindo contada, em tom lento, por uma dessas velhinhas que são as conservadoras de muito primor da Poesia popular, tão rica em nossa pátria e tão desestimada.
Reiterando os meus agradecimentos peço-lhe que continue a respigarem tão rica seara trazendo-nos outros presentes como o que me ofereceu com tanta generosidade.
Muito seu agradecido
O Negrinho do Pastoreio
Naquelle tempo os campos ainda eram abertos, não havia entre elles nem divizas nem cercas; sómente nas volteadas se apanhava a gadaria chucra e os veados e as avestruzes corriam sem empecilhos..
Era uma vez um estancieiro, que tinha uma ponta de surrões cheios de onças e meias doblas o mais muita prataria; porem era muito cauila e muito máu, muito.
Não dava pouzada a ninguem, não emprestava um cavallo a um andante; no inverno o fogo da sua caza não fazia brazas; as geadas e o minuano podiam entanguir gente, que a sua porta não se abria; no verão a sombra dos seus umbús só abrigava os cachorros; e ninguem de fóra bebia agua das suas cacimbas.
Mas tambem quando tinha serviço na estancia, ninguem vinha de vontade dar-lhe um ajutorio; e a campeirada folheira não gostava de conchavar-se com elle, porque o homem só dava para comer um churrasco de tourito magro, farinha grossa e herva cauna e nem nm naco de fumo... e tudo, debaixo de tanta somiticaría e choradeira, que parecia que era o seu proprio couro que elle estava lonqueando...
Só para tres viventes elle olhava nos olhos: era para o filho, menino cargozo como uma mosca, para um baio cabos negros, que era o seu parelheiro de confiança, e para um escravo, pequeno ainda, muito bonitinho e preto como carvão e a quem todos chamavam sómente o — Negrinho.
A este não deram padrinhos nem nome; por isso o Negrinho se dizia afilhado da Virgem, Senhora nossa, que é a madrinha de quem não a tem.
Todas as madrugadas o Negrinho galopeava parelheiro; depois conduzia aos avios do chimarrão e à tarde sofria os maus tratos do menino, que o judiava e se ria.
Um dia, depois de muitas negaças, o estancieiro atou carreia com um seu vizinho. Este queria que a parada fosse para os pobres; o outro que não, que não! que a parada devia ser do dono do cavalo que ganhasse. E trataram: o tiro era trinta quadras, a parada, mil onças de ouro.
No dia aprazado, na cancha da carreira havia gente como em festa de santo grande.
Entre os dois parelheiros a gauchada não sabia se decidir, tão perfeito era e bem balançado cada um dos animais. Do baio era fama que quando corria, corria tanto, que o vento assobiava-lhe nas crinas; tanto, que só se ouvia o barulho, mas não se lhe viam as patas baterem no chão… E do mouro era voz que quanto mais cancha, mais agüente, e que desde a largada ele ia ser como um laço que se arrebenta…
As parcerias abriram as guaiacas, e aí no mais já se apostavam aperos contra rebanhos e redomões contra lenços.
— Pelo baio! Luz e doble!…
— Pelo mouro! Doble e luz!…
Os corredores fizeram suas partidas à vontade e depois as obrigadas; e quando foi a última na última, fizeram ambos sua senha e se convidaram. E amagando o corpo, de rebenque no ar, largaram, os parelheiros menando cascos, que parecia uma tormenta…
— Empate! Empate! gritavam os aficionados ao longo da cancha por onde passava a parelha veloz, compassada como n’uma colhéra.
— Valha-me a Virgem madrinha, Nossa Senhora! gemia o Negrinho. Se o sete léguas perde meu senhor me mata! Hip! hip! hip!…
E baixava o rebenque, cobrindo a marca do baio.
—Se o corta-vento ganhar é só para os pobres! retrucava o outro corredor. Hip! hip!
E cerrava as esporas no mouro.
Mas os fletes corriam compassados como numa colhéra. Quando foi na última quadra, o mouro vinha arrematado e baio vinha aos tirões… mas sempre juntos, sempre emparelhados.
E a duas braças da raia, quase em cima do laço, o baio assentou de sopetão, pôs-se em pé e fez uma cara-volta,, de modo que deu ao mouro tempo mais que preciso para passar, ganhando de luz aberta! E o Negrinho, de em pelo, agarrou-se como um ginataço.
—Foi mal jogo! gritava o estancieiro
—Mau jogo! secundavam os outros da sua parceria.
A gauchada estava dividida: mais de um toreana coçou o punho da adaga, mais de desapresilhou a pistola, mais de um virou as esporas para o peito do pé… Mas o juiz, que era um velho do tempo da guerra de Sapé-Tiaraiú, era um juiz macanudo, que já tinha visto muito mundo. Abanado a cabeça branca sentenciou, para todos ouvirem.
—Foi na lei! A carreira é de parada morta; perdeu o cavalo baio, ganhou o cavalo mouro. Quem perdeu, que pague. Eu perdi cem gateadas; quem as ganhou venha buscá-las. Foi na lei!
Não havia o que alegar. Despeitado e furioso o estancieiro pagou a parada, à vista de todos atirando as mil onças de ouro sobre o poncho do seu contrário, estendido no chão.
E foi um alegrão por aqueles pagos, porque logo o ganhador mandou distribuir tambeiros e leiteiras, covados de baetas e baguais e deu de resto, de mota, ao pobrerio. Depois as carreiras seguiram com os changueiros que havia.
O estancieiro retirou-se para sua pobre casa e veio pensando, pensando, calado, em todo caminho. A cara dele vinha lisa, mas o coração vinha corcoveando como touro de banhado laçado e meia espalda… O trompaço das mil onças tinha-lhe arrebentado a alma.
E conforme apeou-se, da mesma vereda mandou amarrar o Negrinho pelos pulsos a um palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho.
Na madrugada saiu com ele e quando chegou no alto da coxilha falou assim:
— Trinta quadras tinha a cancha da carreira que tu perdeste: trinta dias ficarás aqui pastoreando a minha tropilha de tordilhos negros… O baio fica de piquete na soga e tu ficarás de estaca!
O Negrinho começou a chorar, enquanto os cavalos iam pastando.
Veio o sol, veio o vento, veio a chuva, veio a noite. O Negrinho, varado de fome e já sem força nas mãos, enleiou a soga num pulso e deitou-se encostado a cupim.
Vieram então as corujas e fizeram roda, voando, paradas no ar e todas olhavam-no com os olhos reluzentes, amarelos na escuridão. E uma piou e todas piaram, como rindo-se dele, paradas no ar, sem barulho nas asas.
O Negrinho tremia, de medo… porém de repente pensou na sua madrinha Nossa Senhora e sossegou e dormiu.
E dormiu. Era já tarde da noite, iam passando as estrelas; o Cruzeiro apareceu, subiu e passou; passaram as Três Marias; a estrela d’alva subiu… Então vieram os guaraxains ladrões e farejaram o Negrinho, e cortaram a guasca da soga. O baio sentindo- se solto rufou a galope, e toda tropilha com ele, escaramuçando no escuro e desaguaritandoE assim o Negrinho achou o pastoreio. E se riu...
Gemendo, gemendo, o Negrinho deitou-se encostado ao cupim e no mesmo instante apagaram-se as luzes todas; e sonhando com a Virjem, sua madrinha, o Negrinho dormiu. E não apareceram nem as corujas agoureiras nem os guarachains ladrões; porem peior do que os bichos máus, ao clarear o dia veiu o menino, filho do estancieiro e enxotou os cavalos, que se dispersaram, disparando campo fóra, retouçando e desguaritando-se nas canhadas.
O tropel acordou o Negrinho e o menino maléva foi dizer ao seu pai que os cavalos não estavam lá..
E assim o Negrinho perdeu o pastoreio. E chorou...
O estancieiro mandou outra vez amarrar o Negrinho pelos pulsos, a um palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho... dar-lhe até elle não mais chorar nem bulir, com as carnes recortadas, o sangue vivo escorrendo do corpo... O Negrinho chamou pela Virjem sua madrinha e Senhora Nossa, deu um suspiro trise, que chorou no ar como uma muzica, e pareceu que morreu... E como já era de noite e para não gastar a enxada em fazer uma cova, o estancieiro mandou atirar o corpo do Negrinho na panela de um formigueiro, que era para as formigas devorarem-lhe a carne e o sangue e os ossos... E assanhou bem as formigas; e quando ellas, raivozas, cobriram todo o corpo do Negrinho e começaram a trincal-o, é que então elle se foi embora, sem olhar para traz.
Nessa noite o estancieiro sonhou que elle era elle mesmo, mil vezes e que tinha mil filhos e mil negrinhos, mil cavalos baios e mil vezes mil onças de ouro... e que tudo isto cabia folgado dentro de um formigueiro pequeno...
Caíu a serenada silencioza e molhou os pastos, as azas dos passaros e a casca das frutas
Passou a noite de Deus e veiu a manhã e o sol encoberto.
E tres dias houve cerração forte, e tres noites o estancieiro teve o mesmo sonho.
A peonada bateu o campo, porem ninguem achou a tropilha e nem rastro.
Então o senhor foi ao formigueiro, para ver o que restava do corpo do escravo.
Qual não foi o seu grande espanto, quando chegando perto, viu na boca do formigueiro o Negrinho de pé, com a pele liza, perfeita, sacudindo de si as formigas que o cobriam ainda!.. O Negrinho, de pé, e ali ao lado, o cavalo baio e ali junto, a tropilha dos trinta tordilhos... e fazendo-lhe frente, de guarda ao mesquinho, o estancieiro viu a madrinha dos que não a tem, viu a Virjem, Nossa Senhora, tão serena, pouzada na terra, mas mostrando que estava no céu... Quando tal viu, o senhor caíu de joelhos deante do escravo.
E o Negrinho, sarado e rizonho, pulando de em pêlo e sem redeas, no baio, chupou o beiço e tocou a tropilha a galope.
E assim o Negrinho pela ultima vez achou o pastoreio. E não chorou, e nem se riu.
Correu no vizindario a nova do fadario e da triste morte do Negrinho, devorado na panela do formigueiro.
Porem logo, de perto e de lonje, de todos