Livro de uma Sogra/XXII

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Mês e meio depois do nascimento de meu lindo netinho, recebia Leandro na Europa uma carta que o chamava para junto da esposa.

Fomos buscá-lo a bordo e César foi conosco.

A mulher que restituí aos braços e aos lábios sequiosos de meu genro era de novo a formosa criatura que ele deixara oito meses antes; se não é que, com cumprir o seu mais alto destino de mulher, ganhara geral e do riso dos convivas — seu coração sangrava verdadeiramente belas e viçosas depois de darem o seu primeiro fruto.

Ele também vinha mais forte e bem disposto. Notei, no seu primeiro olhar trocado comigo, depois que cobriu de beijos sôfregos as faces, as mãozinhas e os pezinhos de seu filho, que Leandro me não guardava rancor, e estive quase a acreditar que ele já tivesse afinal chegado a compreender-me. Mas percebi logo o meu engano: ainda era muito cedo para tanto. Um homem vulgar não compreende assim tão facilmente as complicadas delicadezas de um coração de mãe.

César, esse é que me compreendia bem e tomava parte direta nas minhas alegrias e nas minhas vitórias. Com que ar de satisfação acompanhou o meu bom amigo, essa tarde, a reentrada de meu genro em casa da mulher, e com que sinceridade de contentamento se tornaram a ver!

O nosso jantar foi uma festa. Houve brindes, dirigidos quase todos ao pequerrucho, que compareceu à mesa nos braços da ama, e que, valha a verdade, se portou muito incorretamente. Ainda não vi criança para berrar tão forte, nem para ensopar cueiros daquele modo!

À noite vieram visitas; tocou-se, cantou-se e dançou-se. Atentando para uma das amigas de Palmira, acompanhada à nossa casa pelo marido, a qual também, havia poucos meses antes, tivera o seu primeiro filho, não me pude eximir de comparar esse casal com o meu casal, e reconhecer quão diferente era nos dois pares o modo por que se mantinha e conduzia cada um de per si. No entanto, o casamento daqueles era sem dúvida muito mais recente que o de Leandro com minha filha...

Não me contive e disse ao ouvido desta:

— Olha! ali tens uma infeliz, cujo parto foi com certeza fiscalizado de perto pelo marido. Vê como os dois nunca se aproximam francamente um do outro, e repara como só conversam quando há uma terceira pessoa que forneça o assunto. — Estão separados pelo filho!...

E, porque Palmira fizesse um vivo gesto de surpresa com esta última frase, acrescentei em segredo, para bem lhe explicar minha sentença: — O filho, desde que o pai assista ao seu nascimento, é um traço de união moral, um laço de amizade, que se estabelece entre os dois indivíduos donde ele nasce, mas é ao mesmo tempo uma fria linha isoladora, que se cava para sempre entre o corpo de um homem e o corpo de uma mulher, que sensualmente até aí se amavam e se queriam.

Ela teve para mim um sorriso inteligente, em que lhe veio ao rosto toda a sua gratidão pelos meus desvelos, e o seu sorriso desabotoou-se num beijo que recebi na face. Quis detê-la ainda um instante, Leandro, porém acercou-se de nós, com o seu ar de namorado feliz, passou-lhe o braço na cintura, e os dois afastaram-se, rindo e conversando intimamente.

Sentia-me um pouco fatigada. As canseiras daqueles últimos tempos deixaram-me abatida. Doíam-me as costas e o peito. Levantei-me com intenção de ir lá dentro tomar um copo de leite quente com uma gota de conhaque, quando um fato, em extremo desagradável, veio interromper a nossa festa: Acabava de chegar da casa do Dr. César um recado exigindo que ele seguisse imediatamente para lá, porque a irmã, que nesse dia se mostrara aliás muito melhor, fora, ao cair da noite, acometida por uma terrível hemoptise e parecia agora em perigo de vida.

O bom homem não esperou segunda ordem para tomar às pressas o sobretudo, o chapéu e a bengala. Corri a ter com ele e pedi-lhe, enquanto agitado me apertava a mão, que, se o caso fosse com efeito grave, me mandasse prevenir logo ao chegar a casa.

Infelizmente era. O mesmo cocheiro do nosso carro, em que fora o Dr. César, voltou com a notícia de que D. Etelvina agonizava. Entreguei logo a casa a meus filhos, agasalhei-me, tomei o meu livro de orações, despedi-me das visitas, e segui por minha vez, mandando puxar bem pelos cavalos.

César morava na praia do Flamengo. Quando cheguei lá, a pobre senhora expirava nos braços do irmão. Muito magra, muito descorada, com os olhos imóveis e sem fito, a boca ressequiada babando sangue, o nariz luminoso e com um brilho sinistro, ela era apenas uma fugitiva sombra humana, que se exinania em soluços de morte.

Havia algumas pessoas presentes, mulheres e homens. Ajoelhei-me ao lado da cabeceira da cama, abri o meu livro de orações e pus-me a rezar em silêncio. A moribunda já não dava acordo do que se passava em torno do seu aniquilamento. Um colega de César, que com este lhe acompanhara a moléstia, sacudia os ombros desanimado, pronto já para sair.

E ali, dentro daquele quarto, defronte dos nossos olhos, uma vida apagou-se, deixando vazia e fria a quebradiça lâmpada de argila. Ninguém dava palavra, e todos, em volta, contemplavam o cadáver, como, se a força de fitá-lo, procurassem compreender, alguma coisa daquele fato tão comum e sempre tão extraordinário e tão comovedor.

Eu já não rezava, fitava-o também, como os outros, pensando nesse misterioso destino de todos nós. E lembrei-me de meu neto, que, com o mesmo mistério daquela retirada, havia pouco antes entrado na vida. Um a chegar e outro a sair!... Donde baixava ele?... e ela, para onde descia?... De que vívido manancial e para que fundo e soturno depósito — vinham e iam essas pobres almas, que vemos passar ruidosamente no cenário da existência, entrando e saindo pelos bastidores de treva?... O que haveria lá dentro, na misteriosa caixa desse teatro, onde talvez não repercuta uma só gargalhada ou um único soluço da comédia ou da tragédia que representamos cá fora?... Por que seria que os atores não voltavam nunca à cena, mesmo depois de muito aplaudidos?... Ou quem sabe se voltariam, mas já descaracterizados e já irreconhecíveis para aqueles que em vida os vitoriaram com o seu amor ou com o seu ódio!...

Trevas e trevas!

Uma velha amiga da morta interrompeu o seu pranto, para pedir aos homens que se retirassem dali: ia preparar-se o cadáver para entrar na terra. Nessa ocasião, César encarregava um amigo de cuidar do enterro. E nenhuma de nós descansou um instante até que o corpo de Etelvina, depois de lavado, vestido, penteado e calçado, foi posto sobre um sofá da sala próxima, com as ósseas mãos cruzadas sobre a carcaça do peito, e com o escaveirado queixo seguro por um lenço de seda branca. E, à cabeceira do sofá, armou-se uma mesa, coberta por uma toalha de rendas, com a imagem de Cristo crucificado, entre duas velas de cera, que ardiam com uma luz amarela e fumegante.

Então, assentaram-se todos em volta do cadáver, e continuaram a contemplá-lo. E o silêncio foi de novo se condensando, numa oprimidora harmonia com o frio da madrugada e com o longínquo ladrar dos cães lá fora na rua. E mais e mais pesada e úmida se foi fazendo a tristeza. As velas, ao lado do crucifixo, pareciam chorar com aquelas suas quentes e longas lágrimas de cera, a escorrerem-lhe em vagarosos fios e a pingarem, gota a gota.

A primeira mosca pousou no lábio da defunta.

Em torno, numa desolação muda, ouvia-se de longe em longe, um longo suspiro. E tristes figuras, negras de luto, permaneciam imóveis, com o queixo apoiado na mão — a fitar o cadáver.

Eu também o fitava sempre, irresistivelmente, sem saber por quê.

Serviu-se café. Tomei a chávena que me levaram e continuei a encarar o cadáver... Mas, de súbito, uma idéia, que nunca até então me viera ao espírito, atravessou-me o coração de lado a lado, como com aquela mesma agulha que eu vira pouco antes coser o lençol da defunta: "E se a minha hora estivesse também a bater?... Sim, nada mais natural!... Achava-me velha, fraca; sentia-me doente... podia pois morrer de um momento para outro!... E minha filha?! ficaria para sempre abandonada à imprevidência moral do marido, sem ter quem lhes dirigisse a vida?... Mas assim, os dois acabariam fatalmente por cair na vulgaridade do casamento e no tédio da promiscuidade sexual!... E a minha obra, tão penosamente levada ao ponto em que se achava, seria perdida, completamente perdida!..."

Esta idéia fez-me fechar os olhos, para não ver o cadáver. Compreendi que outras pessoas que lá estavam em redor dele e pareciam dormir, tinham apenas, como eu, fechado os olhos, também para não ver a morte.

Como me sucedia sempre ao preocupar-me qualquer idéia sem pronta solução, pensei em César, e lembrei-me de que, havia talvez mais de duas horas, notara eu a sua ausência da sala, e não tivera por conseguinte trocado com ele senão algumas frases de pêsame oficial, em presença de estranhos; e que, pois, não lhe havia recolhido ainda uma só palavra de dor, quando aliás devia o meu pobre amigo estar mortalmente ferido no coração: — Aquela sua irmã, agora ali finda e putrescente, era toda a sua última família, era a sua extinta comunhão doméstica!... E eu sabia perfeitamente quão extremoso fora o amor que os ligara por mais de vinte anos. Ainda não lhe tinha visto uma lágrima — devia sofrer muito! Precisava ir para junto dele...

Levantei-me à sua procura. Talvez estivesse no seu gabinete de trabalho. Fui ver.

O gabinete tinha luz e o reposteiro estava corrido. O pobre homem lá se achava com efeito, sozinho, assentado à secretária, o rosto escondido entre as mãos, de costas voltadas para a porta de entrada. Os seus cabelos brancos, cortados à escovinha, brilhavam argentinamente ao reflexo da luz do gás que lhes batia de cima.

— Posso entrar, César?...

Ele ergueu-se com sobressalto e veio receber-me. Tomou-me as mãos, puxou-me para junto de si, fechou-me nos braços sobre o peito, e desatou a soluçar, como se só esperasse por mim para dar curso àquela explosão de desabafo.

Eu compreendi — cerrei-o forte no meu colo e pousei a cabeça no seu peito generoso, procurando fazê-lo sentir, bem no fundo do coração, que ainda lhe ficava neste mundo de misérias — uma irmã, uma amiga, uma camarada fiel, para o amor estremecidamente como a outra o amara durante a vida inteira.

E assim estivemos muito tempo, estreitados nos braços um do outro, a chorarmos ambos, sem achar nenhum de nós uma palavra, dele para mim, ou de mim para ele.

Ia, no entanto, naquela ocasião, decidir-se entre nós dois o fato mais extraordinário de toda a nossa existência.