Lourenço (Franklin Távora)/Ao leitor
Esta chronica, pronta ha mais de dois annos para seguir em volume o Matuto, cujo é conclusão lógica e natural, acaba de sair a lume na Revista Brasileira, a que dedico affectos de natureza paternal.
Mudando-se o plano da publicação, tive por necessário adaptar aos leitores da Revista, que eu não podia presumir fossem absolutamente os mesmos do Matuto. Fiz por isso muitas alterações neste manuscripto. Augmentei informações e minucias, reproduzi idéas inuteis no primeiro caso, indispensaveis no segundo. Quem lêr agora o Matuto e o Lourenço notará algumas repetições. É certo, porém, que, na leitura, póde ser este desacompanhado daquelle. Pelo que respeita ás repetições, passará as vistas por cima delas o leitor benevolo, sem enxergar materia para corpo de delito contra o autor, atentos os motivos explicados.
Cumpre advertir, que, conquanto cada uma das duas narrativas tenha acção propria, comquanto cada uma delas possa subsistir sem a outra, para melhor conhecimento da guerra dos mascates em que ambas se inspiraram, a leitura do Matuto sem a do Lourenço, e vice-versa, não é bastante.
Esforcei-me por dar, quer no primeiro quer no último, uma idéa tão completa quanto possivel, dessa guerra, ainda pouco estudada, não obstante a sua originalidade, por si só no caso de convidar a serio exame e meditação o historiador depois do economista e do politico. Pouca ou nenhuma importancia se lhe tem dado entre nós; é certo comtudo que, sem a guerra dos mascates, a qual deixou um valo profundo entre brazileiros e portuguezes. não teriamos a revolução de 1817, radiante e alva de que fôra aquela guerra o pallido crepusculo precursor do dia da Independencia em 1822.
Antes da emancipação das colônias americanas (1776), antes da conjuração mineira (1789), reunida a nobreza com o Senado da Camara de Olinda, em 1710 tratou de dar á capitania de Pernambuco outra fórma de governo, independente de Portugal: foi a guerra dos mascates o primeiro grito do novo mundo contra as metrópoles européias. Não imitou Pernambuco a França nem os Estados Unidos. Pensou e obrou por si muito antes de nesses países se pensar em independência e república.
O ajuntamento discutiu a idéia sugerida por vários nobres de se estabelecer em Olinda uma república aristocrática modelada pela de Veneza; e se esta idéia, considerada por todos de alta magnitude, e recebida por muitos com medo, não prevaleceu, porque foram votos vencedores os dos moderados que, como meio de conciliar os ânimos discordes, propuseram fosse aceito para governador o bispo alheio às lutas partidárias, e a quem aliás cabia o governo, na falta do governador fugitivo, por via de sucessão, conforme dispunha a carta-régia prevenindo as vacâncias, nem por isso se deve desconhecer a prioridade de Pernambuco em cogitar na independência.
A devassa, instaurada depois da chegada do governador Félix José Machado, ocasionou homízios, prisões, seqüestros, que somente tiveram termo em 1714. A capitania ficou arruinada, muitas famílias na viuvez e na miséria; muitas fortunas desapareceram: foram quatro longos anos de calamidades, de lágrimas e luto. Se não houve execuções capitais, não foi por faltarem bons desejos ao governador e aos ministros, mas por se poderem avir neste ponto com aquelas autoridades sanguinárias os ouvidores da Paraíba e das Alagoas; houve, porém, mortes e não poucas por ocasião dos levantes nos assaltos e batalhas; houve assassínios nas estradas e até nos refúgios onde os nobres tinham buscado pôr em segurança a sua vida.
Com todo o fundamento dever-se-ia reputar esta guerra como uma das mais prejudiciais a Pernambuco, se ela não fora a semente donde pululou a planta da nossa independência política.
FRANKLIN TÁVORA