Lourenço (Franklin Távora)/I
TERCEIRO LIVRO
LOURENÇO
CRÔNICA PERNAMBUCANA
EDIÇÃO DE DUZENTOS EXEMPLARES
O governador Félix José Machado de Mendonça Eça Castro e Vasconcelos, que chegara a Pernambuco em 7 de outubro de 1711, depois de ter passado alguns dias em Olinda, mudou a sua residência para Recife, com grande desagrado e desconfiança dos nobres, porque a florescente vila era a praça forte da burguesia portuguesa, que aspirava à posse e mando da capitânia.
Posto que já muito aumentado, não podia no lustre e número dos habitantes competir o Recife com a opulenta e populosa Capital, que, do alto do seu orgulho, olhava com desdém de soberana para a humilde vizinhança a quem hoje paga feudo de vassalagem. Eram poucas as ruas, quase nenhum os estabelecimentos públicos. Maurício de Nassau fizera surgir, da ilha pitoresca, aos sobrados, palácios e outras obras, cujos restos ainda atestam a grandeza do gênio batavo. Mas todos estes edifícios e estabelecimentos, bastantes para certificar vinte e quatro anos de domínio fecundo de um grande povo, pouco eram em comparação às ruas sem conta, aos templos suntuosos, às habitações aristocráticas com que dos seus outeiros descia até os vales, por entre pomares e jardins esplêndidos, a Olinda dos poetas, que nascera de um conflito de prazer das vistas de Albuquerque com as risonhas perspectivas que de cima desses outeiros se descortinam, como nascera Vênus do ajuntamento do sangue do céu com as escumas do mar.
A preferência do governador feriu a nobreza nos seus foros anciãos, e a cidade na sua justa e legítima vaidade. Todavia os nobres teriam curtido em silêncio este dobrado desdouro, se em 18 de novembro, quarenta dias depois da chegada de Félix José Machado, não fossem escandalizados com a nova inauguração do pelourinho, causa primordial da guerra extinta. [1] Não podendo mais reter, em presença do novo desacato, os seus ressentimentos mal ocultos, os mais importantes membros da nobreza pernambucana procuraram o bispo D. Manuel Alves da Costa, de cujas mãos o governador recebera as rédeas do governo, para o consultarem sobre o procedimento que deviam ter.
O bispo, modelo de brandura cristã e de concórdia fraternal, tratou de amaciar os fidalgos melindres eriçados.
— Senhores, disse ele, não há razão para assim vos mostrardes descontentes. O ouvidor não podia deixar de restabelecer o pelourinho, demolido em 1710 no ardor das paixões pelo povo levantado, visto que a vila está criada. Até me parece que, a não ter este procedimento, o ouvidor incorreria em culpa.
— Perdoe-me v. exa., redargüiu Estevam de Aragão. É verdade que a vila está criada; mas, tendo oposto os nobres e os homens bons, ou antes o clero, a nobreza e o povo da capitania (que não podem compreender neste número os abomináveis mascates) geral reação a este ato, justo parecera que sem novo ato em que se visse manifesta a vontade de el-rei acerca de tal assunto, não houvesse por parte dos ministros a menor deliberação. Poder-se-á acaso compreender que os pernambucanos derramassem o seu sangue, que a nobreza lançasse mão das armas e gastasse rios de dinheiro pra no fim de tão sanguinolenta e dispendiosa contenda, ficarem satisfeitos com a renovação do infame padrão?! Demais, que significam a carta de D. Lourenço de Almeida, e a confirmação do perdão aos nobres pelo primeiro levante senão que estes tinham razão no dito assunto? Declaro a v. exa., não posso conformar-me com a opinião dos que entendem estar tudo acabado, e nada nos restar d'ora em diante neste singular pleito, senão curvarmos a cabeça aos que tem agora por si a autoridade que não sabem dar o devido apreço à sua honra, e à justiça entregue nas suas mãos. A meu parecer, a questão está de pé, a luta não teve o natural desfecho. O pelourinho, há pouco inaugurado por entre festivas demonstrações dos mercadores, deve ser novamente demolido.
— Nem nos custará muito darmos aos vilões esta lição, ajuntou Antônio Dias de Figueiredo. Robustos estão ainda os braços que construíram à roda do Recife essas trincheiras, que o novo governador mandou destruir tanto que tomou conta da terra, mas que as maiores e mais desesperadas investidas dos mascates não puderam romper durante quatro longos meses de cerco. Os pleitos patrióticos, que castigaram a arrogância da vilanagem, depressa voltarão ao posto, onde morrer pela pátria lhes parecia mais nobre do que vencer o inimigo.
— Senhores, respondeu o bispo, as guerras são cruas calamidades, que os estados devem evitar e os homens temer; elas se opõem à civilização, e a moral condena-as. Milhões de cruzados e, o que é mais, milhares de vidas gastaram-se nesses infaustos meses. Sofreu a agricultura, sofreu o comércio, sofreu o governo, sofreu a família, sofreu a religião prejuízos incalculáveis. Mas para justificar o estado lastimoso de Pernambuco, havia uma razão - o governo tinha o direito de se fazer obedecer e a obrigação de impor aos rebeldes a obediência. Nestes intuitos, a nobreza fez o que ordenara sua honra e o seu dever. Mas as circunstâncias atuais não são as mesmas. A nossa resistência às novas autoridades meteria na mão deles a arma que brandimos contra os rebeldes, e estigma de rebeldia deixaria em nossas frontes. Cuidemos antes de reparar os grandes males que nos deixou como legado fatal essa luta inglória e fratricida. Deixemos o mais à conta da disciplina das coisas humanas, aos altos conselhos da Providência.
Este parecer, que tinhas as principais raízes no ânimo piedoso do bispo, não foi bem aceito pelos circunstantes. Entre estes, o que mais tenaz se mostrou em não se conformar com a nova direção das coisas públicas, foi Leão Falcão d'Eça. Estava ele para os fidalgos do sul da província, pela sua intrepidez e exaltação, na mesma relação que Cosme Cavalcanti para os do norte. Pelo seu voto, o primeiro passo que deviam dar os pernambucanos era porem abaixo o pelourinho. Disse ele que tinha amigos e moradores em Tracunhaém que o seguiriam na represália, sem entrarem na indagação e dos perigos e do resultado final. Disse mais, que não queria a vida senão até o momento de dar esse segundo ensino aos mascates, depressa esquecidos do primeiro.
Cosme Cavalcanti trouxe também a sua pedra para o edifício da revolta.
— Não ignorais que vim de propósito de Goiana a cumprimentar o governador, porque se me mandara dizer desta cidade que "os nobres haviam assentado fazer cada qual a sua visita", e recolher-se enquanto a obrigação de algum negócio os não chamasse. Ia eu chegando às portas do palácio, quando saíam de dentro João da Mota e o padre João da Costa. Ao darem com as vistas em mim, risos escarninhos são os cumprimentos que tem um, olhares ameaçadores e desdenhosos são a cortesia que tem o outro. Diante dessas figuras ainda macilentas pela fome que com o cerco padeceram, todos os meus brios sentiram-se insultados. Pareceu-me que subir cabisbaixo as escadas por onde haviam descido triunfantes duas víboras peçonhentas não era ação que se compadecesse com o meu sangue e linhagem. Dei de rédeas ao cavalo e torci para trás. Não me hajais por arrebatado, senhores. Eu já trazia nesse momento todos os espíritos erguidos: pelas ruas da infame povoação encontrara magotes de reles mercadores com alegres ares, e palavras descompostas. Uns diziam versos em honra do seu triunfo; outros cantavam as trovas depravadas contra a nobreza, chocalhando da nossa derrota. Sabeis ao que ia essa desprezível gentalha? Ia levar os seus agradecimentos ao ouvidor e ao governador pelo restabelecimento do pelourinho.
— Coisas de imprudentes, disse o bispo. Ponhamos bem altos os nossos ouvidos para que não escutemos insultos e injúrias, e bem atentas as vistas no estudo da nossa posição. Senhores, não nos iludamos. O governador traz largos poderes, e empregará todos os meios para se fazer obedecer. Não é tão fácil como vos parece entorpecer a administração em sua marcha. Ele procura mostrar-se imparcial, se acaso não o é.
— Procurou ao princípio, hoje não. Hoje tem-no consigo, os mascates, graças à força milagrosa do seu ouro e dos padres da recoleta.
— Graves coisas afirmais, Sr. Falcão d'Eça, observou o bispo em ar de quem fazia amiga censura.
Sentindo a intenção de D. Manuel, Falcão d'Eça retorquiu:
— Perdoe-me v. exa., não estou levantando aleives. Contou-me José da Silva que, "indo com um requerimento um dia à casa do ouvidor, achara aí dois missionários, que naquela ocasião lhe entregavam um cartucho de porte; e, querendo, sem que esta parte o visse, recebê-lo, rompendo-se-lhe nas mãos o papel com o peso que embrulhava, se espalharam sobre um bufete as moedas de ouro, que caíram em quantidade, do que ficou o que as recebera, se bem pago, em nada satisfeito da testemunha de vista". [2] Quer v. exa. lhe aponte outros fatos? No banquete que deu há oito dias, o governador, em seu palácio, aos mascates, aceitou peças de ouro, louvando por essa ocasião a inteligência deles e, dizendo-lhes que era muito superior à dos naturais de Pernambuco. [3]
Não obstante esse forte ânimo dos nobres contra a política do governador e do ouvidor, não obstante a inclinação das suas paixões para o novo conflito, que devia resolver-se em segunda guerra porventura mais encarniçada e mortífera que a primeira, pôde D. Manuel, graças ao prestígio que lhe ficara do governo, ao seu sagrado ministério, à sua piedade, ao seu esforço, dissuadir os nobres do grave pensamento que alimentavam. D. Manuel foi ainda além deste resultado.
— Sou de parecer, dissera ele por derradeiro, que cada um dos amigos presentes volte à sua casa a tratar dos seus interesses, sem outro ânimo em relação à administração pública senão o de obedecer às autoridades e ser fiel a el-rei que elas representam.
Estas palavras foram ouvidas por todos. Ate Cosme Bezerra e Falcão d'Eça dentro de vinte e quatro horas volviam a seus lares.
O bispo não se enganara nas conjeturas. De fato, Félix José Machado estava armado com todos os poderes para vencer o espírito da rebelião, fosse de que lado fosse. A corte de Lisboa não quisera desconsiderar inteiramente os pernambucanos, importantes pelas suas tradições, posição e fortuna; mas incumbira o governador de destruir tudo o que se parecesse com germens de resistência, de que pudesse proceder o pensamento de tornar independente o Brasil. Não era sem razão que se previa ali este caso: soubera-se em Portugal tudo o que em Olinda se passara em 1710, por ocasião de reunir-se a nobreza com o Senado da Câmara para escolha do governador, depois da fuga de Sebastião de Castro Caldas. D. João V percorrera com a vistas algumas das cartas, em que pelo miúdo se referiam, a importantes pessoas do reino, palavras dos nobres, reveladoras do intento de realizar essa independência. De feito, este intento já expresso em 1650, quando a coroa esteve para abandonar a colônia à sua própria sorte, em 1710 teve ainda mais positiva afirmação. Pedro Ribeiro da Silva, capitão-mor de Santo Antão, João de Barros Rego, capitão-mor em Olinda, João de Freitas da Cunha, mestre de campo, Bernardino Vieira de Mello, sargento-mor, enfim a principal nobreza opinara pela separação. Bernardino Vieira chegara a propor que se declarasse a capitania em república "ad instar dos venezianos".
O primeiro cuidado de Félix José de Machado depois de chegar a Pernambuco foi estudar o estado dos dois partidos que se combatiam.
Estavam ambos cansados por mais que se inculcassem o contrário. Os mascates, além de cansados, não tinham meios de prosseguir a luta. Em toda a guerra só haviam contado uma vitória - a de Sibiró. Esta mesma teve por principal origem a circunstância de haver o mestre de campo, comandante das tropas da nobreza, jurado ao bispo que em caso nenhum derramaria sangue; era o juramento de entregar-se ao inimigo. A vitória incruenta trouxe grande força moral aos mascates, e até lhes facilitou pelo lado do sul o fornecimento de gêneros, sem os quais dentro em pouco tempo cairia o Recife em poder dos nobres. Mas aquela impressão desvaneceu-se, e as facilidades cessaram com a vitória de Ipojuca, e o assédio da fortaleza de Tamandaré, que tanto ilustraram o já ilustre ajudante de tenente Francisco Gil Ribeiro. Félix José Machado, que trazia a intenção reservada de tomar o partido dos mascates, não pôde sustentar a máscara de imparcialidade senão nos primeiros dias: e em vez de compor os discordes, afastar os motivos da contenda, realizar, numa palavra, a obra do congraçamento, entendeu em mostrar-se forte para com os nobres em que o cansaço não pudera ainda gerar a fraqueza, nem os grandes gastos e prejuízos o receio de cair em penúria.
Não satisfeito com a restauração do pelourinho, ordenou ao novo ouvidor João Marques Bacalhau, que com ele viera, que instituísse a devassa sobre o primeiro levante, sem embargo de perdão; e nesta devassa atropelaram tão parcialmente os princípios da justiça, que dezenove dos principais nobres de Olinda, pronunciados em segredo, foram mandados prender pelo governador, em 17 de fevereiro de 1712. De alguns, como do sargento-mor Leonardo Bezerra e do alferes André Vieira de Mello, verificou-se a prisão por ocasião de saírem do próprio palácio do governador. As prisões continuaram. O capitão André Dias de Figueiredo, depois de passar quase uma semana dentro de uma mina, no convento dos jesuítas, em Olinda, teve de ser ali arrancado para a semi-tumba das Cinco Pontas. A fuga para o mato foi então o primeiro, senão o único recurso dos nobres. Em poucos dias Olinda ficou entregue somente às famílias apavoradas, os engenhos ficaram ao desamparo, como a cidade e vilas. A guerra já contribuíra poderosamente para paralisar o serviço da lavoura; o novo golpe veio completar a triste obra.
A capitania era como um país conquistado. Olinda chorava lágrimas de sangue e trajava luto. O Recife, porém, embalava entre verdores gentis e águas mansas, como cândida ninfa.
Os mascates banqueteavam-se como os novos ministros. Chegara a sua vez.
Notas do autor
[editar]- ↑ Vid. o Matuto, segundo livro da Literatura do Norte.
- ↑ Memor. Historic. de Pernambuco.
- ↑ Histórico.