Lourenço (Franklin Távora)/II

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O eclipse do astro dos nobres em Olinda alongou a sua sombra até Goiana, e nele viram medonho anúncio de próximos males todos os daquela vila que pertenciam à nobreza.

Goiana era um dos pontos da capitania onde a causa dos mascates passara por maiores reveses. Do combate que ali se dera na noite de 23 de agosto de 1711, haviam saído vitoriosos o sargento-mor João da Cunha, senhor do engenho Bujari, Cosme Cavalcanti, juiz ordinário, e outros fidalgos, auxiliados pelo ajudante de tenente Gil Ribeiro, que completamente destroçara com as suas tropas as paraibanas capitaneadas por Luís Soares. Realizaram-se por essa ocasião a morte dos sargento-mor dos mascates Antônio Coelho, a prisão de Jerônimo Paz, poderoso marchante, e a de vários cabeças no mesmo partido. Era portanto de esperar que, restituído Jerônimo Paz à liberdade com a chegada do novo governador, não se demorasse a desforra que devia ser atroz, desforra premeditada e jurada pelo feroz procurador do povo desde o momento da sua prisão. [1]

O perigo era eminente. Trataram de prevenir-se os principais nobres.

— Prometi ao bispo curvar a cabeça aos decretos da autoridade que nos mandaram para aniquilar-nos; mas não devo considerar-me ligado por esta promessa, porque para fazer tive o fundamento de supor que o intento do governador era administrar justiça a todos igualmente. O seu último procedimento prova o contrário, e eu não estou mais pela obediência senão pela oposição ao tirano. A devassa continua aberta. O governador, o ouvidor e o juiz de fora, os três paus da forca destinada a acabar com os pernambucanos, não pararam em sua obra destruidora. Jerônimo Paz diz pelas tabernas que nos há de pôr as cordas. À vista disso, deveremos ficar impassíveis? Não. Organizar a guerra à tirania eis o que nos cumpre a fazer.

— Com que gente contais vós, Sr. Cosme Cavalcanti, para organizar e sustentar essa guerra? Onde estão as vossas ordenanças? Estão com os inimigos, que são as atuais autoridades, ou os sustentadores delas. Onde estão os nossos escravos? Uns morreram, outros fugiram; os que ainda restam, mal chegam para dar-nos água para os pés. Onde estão os nossos moradores, que os não vejo, por mais que estenda as vistas? Os que não ganharam, fugitivos, o sertão a fim de não servirem contra a sua vontade nos regimentos que o governador vai formando a seu modo, são velhos achacados, ou meninos que para nada prestam. Dizei-me, por caridade, com quem havemos de fazer frente aos carrascos?

— Tendes razão, João da Cunha - disse Luís Vidal. O baralho caiu nas mãos dos inimigos, que formam o jogo que lhes faz conta.

Cosme Cavalcanti redargüiu:

— Não perdi ainda a esperança de dar a esse governador que recebe em palácio aos pares as mulheres de má vida, e sustenta aí banca de jogo, a lição que receberam de nós, por várias vezes, os que com ele se dão agora àquele vício, deixando-se roubar, para terem o grande vicioso a seu lado. Corramos daqui a Itambé. Matias Vidal deve ter muita gente reunida para arrostar com os nossos opressores.

Ouvindo falar em Matias Vidal, os outros fidalgos sobrestiveram: aquele ilustre pernambucano, filho natural de André Vidal de Negreiros - um dos heróis da restauração - grangeara grande nomeada com a formação do batalhão sagrado, composto de sacerdotes resolutos a derramar até a última gota de sangue em defesa do bispo ameaçado em sua vida pelos mascates, nos primeiros tempos do cerco do Recife.

Mas a agradável ilusão durou pouco. Rumor de passos fez-se ouvir, e um novo interlocutor, entrando inesperadamente na sala, advertiu:

— Matias Vidal desapareceu, não se sabe para onde. É o que acabo de ler em uma carta escrita por seu genro a Manoel de Lacerda.

O novo interlocutor era André Cavalcanti que, sabendo esta triste notícia, correra a participá-la a Cosme Cavalcanti, seu irmão.

Cosme refletiu um momento.

— Não importa - disse depois. Tenho cá o meu plano, e para sua realização conto convosco, Sr. Luís Vidal, e convosco, André. Estarei enganado?

— Podeis contar, podeis contar conosco - responderam os dois ao mesmo tempo.

— Morrerei onde morrerdes - ajuntou Luís Vidal.

— Estando convosco, Sr. Cosme - disse André Cavalcanti - parece-me que terei por mais certa a vitória que a derrota.

— Que plano é o vosso? perguntou o sargento-mor.

— Irei para as minhas fazendas de gado no Açu.

— Estão muito distantes. Não poderei acompanhar-vos até lá - tornou João da Cunha.

— Aí - continuou Cosme - reunirei os meus vaqueiros e criadores que quiserem seguir-me: todos hão de seguir-me. Tenho fé que em menos de dois meses Félix José Machado há de tremer ao ouvir falar em meu nome.

Um momento de silêncio que sucedeu a esta declaração, indicou que os valorosos pernambucanos ali congregados refletiam sobre a sua sorte. Às palavras de Cosme, sempre de peso para os amigos, parentes e todos os que conheciam os seus grandes espíritos, seguiu-se breve mas solene interrupção. João da Cunha foi o primeiro que se libertou dessa prisão do prestígio natural da coragem e importância pessoal.

— E quando é vossa partida? perguntou.

— Para tão breve a tenho assentada que talvez seja esta a última vez que nos achemos juntos. Há muitos dias que me aparelhei para realizá-la. Vejo que é chegado o momento de deixar Goiana, a fim de poder ser útil a Goiana. Os inimigos não dormem. Devemos ser, como eles, espertos e diligentes.

Cosme levantou-se, deu alguns passos em direção a João da Cunha, abriu os braços, e apertou-o, entre eles.

— Se não virmos mais, seja esta a nossa despedida - disse.

Os dois fidalgos ficaram comovidos. Aquela cena foi tão inesperada, tão muda e tão eloqüente que não podia ser outro o sentimento dos que tomaram parte nela.

Depois de abraçar Luís Vidal e André Cavalcanti, João da Cunha encaminhou-se à escada.

— Vede bem como sois, observou Cosme acompanhando-o. Antes de pordes o pé na rua, examinai primeiro se há do lado de fora algum vulto suspeito. Andamos cercados de espiões.

— Não há novidades. Matias e José ficaram embaixo; trazem armas, são valentes, e já teriam vindo a meu encontro se houvesse qualquer desconfiança. A noite está medonha, mas eles são dois gatos do mato; vêem perfeitamente no escuro.

— Agora nós - disse Cosme a meia voz aos irmãos, tornando à sala do sobrado onde estas coisas se passavam. São dezoito horas. À meia-noite devemos achar-nos em marcha. Ide dizer adeus à família, enquanto tomo as últimas providências.

À meia-noite três cavalos selados, e cinco carregados deixavam-se ver no quintal da casa. As cargas eram formadas com barricas, caixões e malas. Nas barricas em que se imaginavam estarem metidos comestíveis, o que continha era pólvora e bala: nos caixões havia armas de fogo. Quando Zacarias, escravo de estimação de Cosme, veio dizer-lhe que as suas ordens tinham sido executadas, ele, com os dois irmãos, que desde as onze horas se achavam de volta, entraram para o quarto de vestir, e com pouco tornaram à sala. Mostravam-se inteiramente disfarçados. Cada um era um perfeito sertanejo com as suas perneiras, guardapeito e véstia de couro. Quando puseram na cabeça o chapéu, e um pegou do chicote, e outro da peia, tendo cada qual na mão esquerda um clavinote, ninguém diria que ali se ofereciam à vista três fidalgos finos, senão três vaqueiros encourados que voltavam com carregamento ao sertão.

Cosme desceu ao quintal, abriu de manso a porta que comunicava com a rua, e examinou cautelosamente as adjacências: estavam metidas em trevas; o silêncio era absoluto.

Então ordenou aos escravos e arrieiros que tocassem os animais carregados, e montando a cavalo, tomou lugar no couce do comboio. André e Luís seguiram o seu exemplo. Aquelas sombras mudas e tristes desapareceram em menos de um minuto na erma escuridão da noite.

Passados alguns dias, João da Cunha recebeu no seu engenho dentro de um só envoltório duas cartas de circunstância. A primeira rezava assim:

"Amigo e Sr. Sargento-mor

"A tempestade que desabou sobre este Pernambuco alcançou como um raio mortal o meu amigo e sogro, quando ele julgava ter cessado a fúria dos elementos. Mas a infâmia do mau gênio que preside atualmente os destinos da capitania, não há quem dela possa tomar conhecimento sem se encher de assombro. Tanto que constou que pela devassa aberta pelo ouvidor contra os levantes, os nobres estavam expostos às perseguições e às aflições que se usam nestes negócios, tratou o Sr. Sargento-mor honorário, meu ilustre sogro, de ocultar-se nos matos da sua propriedade em Itambé. E porque foram dizer línguas serpentinas ao governador que aí o mesmo sargento-mor honorário planejava, de acordo com os nobres, terceiro levante, e o dito governador tenha em muita conta o valor e os meios do Sr. Matias Vidal, o mandou declarar em um bando, que se publicou a toque de caixas, revoltoso e inconfidente. E vendo que por este meio não conseguia prendê-lo, lembrou-lhe a perfídia publicar novo bando, destruindo todo o conceito que no primeiro patenteara contra aquele sargento-mor, restituindo-lhe as honras, mandando que lhe fossem entregues todos os bens que lhe haviam sido seqüestrados, e declarando por último que ele podia recolher-se livremente à sua casa, que não haveria pessoa que lho impedisse. Mas aqui, amigo e senhor meu, é que está a nefanda perfídia, porque tudo isso não passou de laço para prender o Sr. Matias Vidal, que, confiando na palavra do primeiro magistrado desta capitania, largou mão das cautelas até aquele momento observadas, e tanto que o tiveram fora do esconderijo deram passos para o prender; e se a prisão não se realizou desta vez, foi porque, avisado em tempo pelos amigos de que tudo quilo era uma traição, voltou ao seu esconderijo. Mas daí o foram arrancar os agentes do governador, e a esta hora jaz sepultado aquele honrado pernambucano na semi-tumba das Cinco Pontas, com outros companheiros de luta e infortúnio.

À vista disto, senhor e amigo meu, tomei a deliberação de ocultar-me nestas matas de Tracunhaém. Onde vos escrevo as presentes regras, que particularmente se dirigem a chamar-vos para este abrigo, no qual o valoroso Falcão d'Eça espera dar terrível ensino aos algozes dos pernambucanos. Se vos parecer, com a demais nobreza dessa vila, vir fazer-nos companhia nestas matas, mandai prevenir-nos, para que todas as providências sejam dadas a fim de se vos facilitar a entrada nos segredos.

Deus vos guarde, amigo e senhor meu

Vosso humilde servo

MARTINHO DE BULHÕES."

A outra carta era escrita pelo bispo, e não tinha mais que as linhas seguintes:

"Amigo e senhor sargento-mor

Não tendo aqui um amigo que vos avise, visto que, uns por se acharem presos, outros por andarem foragidos pelos bosques, todos estão ausentes, tomo eu este caridoso ofício.

Ocultai-vos com os amigos. Vai partir para aí uma grande força comandada por João da Mota.

Martinho pede-me que vos remeta a carta junta.

+ D. MANUEL A. DA COSTA".

O sargento-mor acabou de ler estas cartas com profunda mágoa. Chamar pela mulher, D. Damiana, e dizer-lhe em poucas palavras o que lera, foi o seu primeiro passo. D. Damiana, posto que moça, era discreta e ajuizada. A estes dotes reunia outro - estimava muito o marido; estimava-o como esposa e como filha. O seu conselho era o da prudência; o seu parecer tinha as principais forças na confiança que inspirava àquele que, podendo ser seu pai e sendo rico, compartira com ela a sorte a fortuna.

— Não vos assusteis - disse o senhor de engenho, disfarçando o seu pesar. O malvado governador jurou acabar com a nobreza de Pernambuco, e vai cumprindo o juramento. Vem aí uma grande força para prender os fidalgos de Goiana. Em Olinda já a maldade não tem em que pôr os dentes e as garras. Os nobres que não caem nas prisões, perdem-se nos matos. D. Manuel manda dizer-me que me oculte. Não há outra esperança de salvação. Lá se foi o tempo em que eu podia castigar tão grandes ousadias. Hoje tudo me falta. A guerra levou-me as economias que eu tinha juntas. Há um ano que meu engenho não mói uma cana, e as minhas lavouras mal dão para o gasto da casa. A nossa fábrica está reduzida pela morte de uns escravos, pela fuga de outros. Os meus foreiros, cansados do serviço da guerra a que foram forçados ante de chegar o governador, ocultam-se agora para não serem chamados a igual inclemência. Nestas penosas circunstâncias, que me resta fazer senão meter-me nas brenhas?

Nos primeiros momentos, D. Damiana, tomada de amargura, não soube o que dizer. A separação é morte temporária para os esposos que se estimam: e, a esta idéia, poucos espíritos feitos na suave paz conjugal, tão rica de brandas satisfações, não perdem a serenidade necessária a resoluções que podem traduzir-se na privação daquelas.

Mas não se demorou a recobrar os ânimos. Era mulher para lutas próprias de homens. Chamavam-lhe Escopeteira, por ser perita em atirar ao alvo. Antes de Goiana ser atacada pelo bando de Luís Soares, ele dissera a Cosme Cavalcanti: "Se entrardes na sala das mulheres, ficareis admirado do armamento que lá existe. Há mais de uma semana que não tinha eu no engenho outra ocupação, que fazer cartuchame. Na casa de João da Cunha só penetrará mascate depois que Damiana da Cunha houver exalado o último suspiro". Não fora isto uma bravata vã e ridícula, porque na manhã seguinte defendera heroicamente com as mucamas e escravos o sobrado onde se achava, atirando contra os assaltantes, exposta nos maiores perigos. [2]

— Por que motivo havia de querer ocultar-vos? Estará perdida toda a esperança? inquiriu D. Damiana.

— Que outra esperança me resta? respondeu-lhe o sargento-mor. Aqueles parentes e amigos que me ajudaram a dar um ensino aos inimigos em agosto do ano passado abandonaram-me. Vejo-me só. Tudo se mudou para pior. Nem negros, nem moradores, nem provisões de boca.

D. Damiana não se deu por vencida, A ausência do marido afigurava-se-lhe mais penosa que as perseguições ordenadas pelo governador. Enquanto pôde, impediu João da Cunha de resolver-se a deixar o engenho.

Chegou, porém, uma manhã decisiva. A tropa a que se referia o bispo, estava perto. Uma pobre mulher, amiga da família ameaçada, viera, atravessando florestas, trazer ao senhor de engenho esta triste nova.

— Se estás deliberado a deixar Goiana, iremos juntos - disse D. Damiana ao marido. Não quero ficar aqui. Os nossos inimigos insultar-me-iam se eu ficasse só. Não vão eles mostrando para quanto prestam com os desacatos que, por onde passam, têm para as famílias?

— Infelizmente não podeis, senhora - advertiu João da Cunha. A minha jornada há de ser árdua, por dentro de bosques, através de desertos medonhos e inóspitos. Ser-me-á preciso recorrer ao disfarce que não há de valer muito em vós, porque o disfarce nas mulheres por pouco tempo engana. Ser-me-á preciso estar só, para, se tiver de morrer, poder morrer só, e menos dura me ser a dor da morte. Mas nada temais. Ficam convosco os últimos escravos da nossa confiança: alguns deles carregaram-vos em seus braços quando éreis menina. Mandei vir para junto de vós Marcelina, essa santa e piedosa mulher. Lourenço, que deverá acompanhar-me, porque eu não confio em outrem para viagem de tanto risco, voltará a Bujari, e tereis nele um defensor que valerá por cem. Deus, com a sua vigilância, completará o amparo.

Confidenciava o senhor de engenho com a mulher naquele mesmo gabinete particular onde, pouco mais de um ano antes, por São João, reunira a principal nobreza da vila, e lhe propusera o ataque aos mascates do Recife. Então dera mostras de força pelas quais se pudera aferir quanto era superior àqueles em recursos, quer materiais, quer morais. Agora, era tudo diferente. Em lugar de atacar, tratava de fugir aos inimigos. Ao seu lado via somente a mulher, que, posto fosse resoluta, e rogasse participar da sua sorte, antes lhe inspirava incerteza que decisão. Em vez de rubra soberba, mostrava no gesto cauteloso, pálida resignação, em vez de arrogância, tinha nas palavras magoados tons.

D. Damiana sentou-se ao pé do marido, e pôs-lhe meigamente um braço sobre o ombro. Não lhe consentiu ele ficar assim mais que um instante e, levantando-se, disse:

— Partirei dentro de poucas horas. Irei tratar sem demora dos preparativos dessa jornada que o coração me anuncia ser a última.

D. Damiana encaminhou-se para dentro, levando lágrimas a banhar-lhe as faces, onde antes se acendiam, viçosas como a juventude, as rosas de felicidade agora murchas e quase extintas.

Notas do autor[editar]

  1. Vid. Matuto, pag. 446
  2. Vid. Matuto, pags. 362 e 398.