Lucíola/XX

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Às cinco horas da manhã estava de pé, vestindo-me para ir buscar Lúcia.

Na véspera ao despedir-se de mim ela me dissera:

— Amanhã mudo-me. Venha-me buscar ao romper do dia. Desejo... careco de entrar apoiada ao seu braço na casa onde vou viver a minha nova existência.

Achei-a pronta e esperando-me; os vestígios da comoção violenta que haviam produzido as amargas recordações, desapareciam sob a plácida serenidade que reslumbrava de sua alma e dava à sua beleza uma suave limpidez.

Partimos a pé, com a fresca da manhã; fizemos um dos mais belos passeios de que se pode gozar no Rio de Janeiro. A casa ainda estava fechada: o preto que a guardava veio abrir-nos o portão; corremos o jardim colhendo flores, enquanto se arejavam as salas para receber-nos. Os cômodos eram suficientes para duas pessoas; Lúcia devia morar com sua irmã, que ia sair do colégio.

Apesar da revelação da véspera, continuava a dar a Lúcia esse doce nome, que estava tão habituado a pronunciar. Uma vez porém ela olhou-me com uma expressão de mágoa:

— Paulo, disse-me com brandura, chama-me Maria!

Desde então quando eu pronunciava esse nome, sua alma tinha enlevos, e ela acompanhava o movimento de meus lábios estremecendo de gozo, como se todo o seu corpo sentisse uma doce carícia.

— Quando me chamas assim, Paulo, murmurava ela, parece-me que tu me embebes e me afagas num só e imenso beijo que me envolve toda

Também a partir daquele momento ela sentia um prazer indizível em articular o meu nome, que seus lábios às vezes desfolhavam num sorriso, e outras debulhavam lentamente, letra por letra, como um favo de mel, que estilassem gota a gota. Nunca Lúcia (quero chamá-la assim ainda, porque foi esse o primeiro nome que amei, e que ainda amo) nunca Lúcia deixara o tratamento cerimonioso que me dava, mesmo no mais intimo das nossas relações. Nesse dia porém, de repente, sem vexame e sem o menor esforço, começou a atuar-me.

Almoçamos, como os pastores de Teócrito, frutas, pão e leite cru: ainda não havia preparos de cozinha, nem fogo. Por volta de onze horas do dia chegou a criada, com uma menina de doze anos, linda e mimosa como um anjinho de Rafael. Era o retrato de Lúcia, com a única diferença de ter uns longes de louro cinzento nos cabelos anelados. Ana já conhecia a irmã e a amava ignorando os laços de sangue que existiam entre ambas; mas o instinto de seu coração fizera adivinhar à pobre órfã um amor quase materno na afeição ardente e apaixonada que lhe votava Lúcia.

As seis horas da tarde deixei as duas irmãs já definitivamente instaladas no seu modesto retiro.

Continuei a visitá-las todos os dias, mas ao cair do dia. Fora Lúcia quem regulara estas visitas.

— Tens agora o teu escritório, e eu preciso trabalhar para viver; além disso quero ensinar a Ana o pouco que sei. Não podemos estar todo o dia juntos. Vem ver-me à tarde, à hora da ave-maria. Passaremos as noites no jardim, ou passeando. No domingo porém jantarás sempre comigo; se não vieres, sei que não terei fome.

Quando a noite estava bonita, íamos os três até a Caixa-d'água, ou até os Dois Irmãos, gozar da frescura das árvores e da água corrente. Lúcia reclinava-se ao meu braço, e eu dava a outra mão livre a Ana. Assim caminhávamos, quase sempre mudos e silenciosos, contemplando a beleza das cenas que se desenrolavam aos nossos olhos, ou absorvidos em nossos pensamentos íntimos. Quando Ana soltava a minha mão para correr diante de nós com a inquieta travessura de sua idade, Lúcia erguia-se na ponta dos pés, e suspirava-me ao ouvido alguma palavra terna, alguma doce confidência de sua alma.

— Sou feliz! dizia-me uma noite, muito feliz! Deus se compadeceu de mim dando-me essa força de vontade que me faz separar de minha vida o tempo que não vivi. Ele me aparece como um sonho, como uma nuvem sombria que se vai sumindo.

Outras noites nos sentávamos sobre as pedras do caminho, e eu, respondendo às perguntas de Ana, falava-lhe da natureza, das flores, das árvores, das estrelas, com o entusiasmo e a poesia que as belas criações de Deus despertam em nossa alma.

— Fala ainda! balbuciava Lúcia ao meu ouvido, quando me calava. Fala! É tão bom ouvir-te.

Era unicamente aos domingos que eu tinha um momento de estar só com Lúcia. Então ela tomava-me a cabeça que escondia no seio com um anelo de ternura; fechava-me os olhos, e eu sentia os seus lábios roçarem o meu rosto, tão de leve como as tranças de seus cabelos; por fim olhava-me, ora sorrindo, ora séria e absorvida nos seus pensamentos.

— Isto não pode durar muito! É impossível! murmurava como se respondesse a uma reflexão íntima.

— Por que razão, Maria?

— Por quê? Porque não se goza da bem-aventurança na terra.

A exceção desses raros instantes, sua irmã não nos deixava, e em presença dela Lúcia não me permitia uma carícia, por mais inocente que fosse. O dia se passava ouvindo Ana tocar, vendo-a brincar, e brincando com ela. Éramos três crianças; e delas talvez a mais moça fosse a que mais juízo tivesse naqueles alegres folguedos.

Uma tarde, havia poucos instantes que eu tinha chegado, quando Lúcia tomou-me pela mão, e levou-me ao seu toucador.

— Não entendo de negócios, me disse abrindo uma gaveta; e não sei pedir senão a ti. Toma; é a escritura de compra desta casa, que pertence a Ana: há de ser preciso pagar décima. Tira do dinheiro destes vales; do resto comprarás apólices em nome dela.

Examinei os papéis que Lúcia me dera; representavam um valor de mais de cinqüenta contos de réis; dez no prédio, o resto em dinheiro.

— E tu com que ficas? Longe de mim censurar a tua generosidade, minha boa Maria; mas não é justo que te sujeite, a passar privações.

— Eu também tenho a minha fortuna! disse-me sorrindo. Mostrou-me uma carteira, que eu lhe tinha dado.

— Queres ver? Olha! Foste tu que ma deste, Paulo! Guardei-a para o tempo em que fosse digna dela. Quando eu te agradecia então, nem suspeitavas que te agradecia pelo futuro, por este tempo em que não me peja, ao contrário tenho orgulho, de viver por ti e para ti.

A carteira continha pequenos maços de notas, com o algarismo e uma data escrita no rótulo.

— Não sei o que quer dizer isto!

— Não te lembras, quando ias à gavetinha do meu toucador? Aí está o que me davas, dia por dia. Compreendes agora ?

— Mas isto é uma bagatela; não é uma fortuna!

— Chega-me; demais, eu trabalho, e quando alguma vez precisar, não terei vergonha de pedir-te. Verás.

— O que me parece de eqüidade é dividires esta soma com tua irmã, e guardares o resto. Ela pode casar, seguir seu marido. . . Quem sabe o que sucederá?

— Tudo quanto quiseres, Paulo, menos isso. Não tenho outra vontade que não seja a tua, mas estou certa que me hás de compreender e consentir. O que me custou tantas angústias, e tantas humilhações, não me pode pertencer, não. Só uma coisa justifica essa fortuna, é o motivo santo por que me vendi para adquiri-la. Ana pode gozar dela sem remorso e sem vexame, porque não saberá donde lhe vem; a mim amargaria o pão amassado com tanto fel! Não achas que eu tenho razão?

— Maria, meu anjo, não fales nisso mais nunca! Faze o que quiseres; eu aprovo tudo.

— Deixa-me acabar. Agora só vivo, e só quero viver do que me deste; porque a minha coragem, o meu trabalho, tudo é inspiração tua. O dinheiro pois que ganhar com minhas mãos, ainda me vem de ti! Não possuo hoje um objeto, a coisa mais insignificante, que tenha outra origem. É talvez uma superstição; mas quero conservá-la.

Ao despedir-me nessa noite Lúcia, como para dar-me uma prova da sua sinceridade, disse-me:

— Paulo, traze-me amanhã quando vieres uma caixinha sortida de linhas e agulhas.

Era uma ninharia; mas era a primeira coisa de valor pecuniário que ela me pedia.

Essa vida calma e tranqüila, remanso de uma existência tão agitada, durava cerca de um mês. Nada perturbava a serenidade de Lúcia. Parecia realmente que sua alma cândida, muito tempo adormecida na crisálida, acordara por fim, e continuara a mocidade interrompida por um longo e profundo letargo. Lúcia tinha então 19 anos; mas o seu coração puro e virgem tinha apenas a idade do botão de rosa na manhã do dia em que deve florescer, ou a idade do casulo quando a ninfa vai fendê-lo, desfraldando as tenras asas.

Como as aves de arribação, que tornando ao ninho abandonado, trazem ainda nas asas o aroma das árvores exóticas em que pousaram nas remotas regiões, Lúcia conservava do mundo a elegância e a distinção que se tinham por assim dizer impresso e gravado na sua pessoa. Fora disto, ninguém diria que essa maca vivera algum tempo numa sociedade livre. As suas idéias tinham a ingenuidade dos quinze anos; e às vezes ela me parecia mais infantil, mais inocente do que Ana com toda a sua pureza e ignorância.

Talvez a senhora julgue isso impossível; mas é a verdade. Se não fosse a originalidade dessa fase de uma vida que em quatro meses passara aos meus olhos por tão profunda revolução, não teria nada que lhe contar, e não valeria a pena revolver o rescaldo de minhas reminiscências.

Quis pintar-lhe o que vi: a incubação de uma alma violentamente comprimida por uma terrível catástrofe; a vegetação de um corpo vivendo apenas pela força da matéria e do instinto; a revelação súbita da sensibilidade embotada pelos choques violentos que partiram o estame de uma infância feliz; a floração tardia do coração confrangido pelo escárnio e pelo desprezo; finalmente a energia e o vigor do espírito que surgia, soldando por misteriosa coesão os elos partidos da vida moral e continuando no futuro a adolescência truncada.

Quantas vezes absorto na admiração que me causava esse fenômeno, não acompanhava com um olhar pasmo e surpreso os movimentos de Lúcia brincando com a irmã, e criança como ela na expansão da beleza que eu vira radiar no mundo com todas as graças e encantos da mulher! Quantas vezes desesperado pela naturalidade do seu gesto e pela ingênua simplicidade de suas palavras, que excluíam a mais leve suspeita de afetação, não pensava comigo: «Esta mulher ou é um demônio de malícia, ou um anjo que passou pelo mundo sem roçar as suas asas brancas!»

Se ela surpreendia o meu olhar perscrutador, sorria, e caminhando para mim, movia lentamente a cabeça:

— Não compreendes, Paulo? Também eu não compreendo. Quem me fez menina assim ?. . . Devo-te parecer ridícula. Eu, que desejo ter para Ana a gravidade de mãe, torno"-me mais travessa do que ela, Mas que queres? É preciso que eu brinque... como as cigarras hão de cantar daqui a um ano quando acordarem!

O jardim da casa de Lúcia era dividido, por um gradil de madeira, da chácara vizinha. Isso a desgostara desde o primeiro dia; e era sua intenção fazer passar um muro que ocultasse às vistas estranhas o seu modesto retiro; um sentimento de delicadeza retardara só a realização desse projeto. As moças daquela chácara tinham pouco depois de sua mudança procurado entreter relações de vizinhança; e quase todas as tardes vinham conversar com Ana.

Lúcia quis logo impedir essa amizade, mas não teve animo de privar sua irmã de tão inocente distração; contentou-se de sua parte em se esquivar aos avanços das vizinhas, retribuindo com polidez as suas saudações. As instâncias porém foram tão repetidas e tão amáveis, que, apesar de sua modesta reserva, Lúcia não pôde deixar algumas vezes de responder às palavras que lhe dirigiam. Demais, elas tinham achado o caminho de seu coração; com uma liberdade censurável começaram a pedir-lhe pequenos favores: hoje era a muda de uma flor, amanhã o molde de um vestido, depois o desenho de um bordado. Lúcia, que não aceitava coisa alguma do mundo, não sabia recusar um serviço.

Uma tarde ela estava conversando comigo, quando Ana veio pedir-lhe em nome da mais moça das vizinhas, sua predileta, que lhe fosse ensinar um ponto de crochê.

— Tu não sabes, Ana?

— Mas não sei como tu, maninha.

Lúcia aproximou-se do gradil; tomou das mãos da moça o fio e a agulha e teceu com agilidade e destreza uma carreira de malhas, acompanhando o movimento rápido de seus dedos afilados com as explicações precisas. Como isto não bastasse tirou do braço uma pulseira de contas tecida por ela e deu-a para servir de modelo.

Nessa ocasião adiantavam-se por entre as árvores as outras mocas acompanhadas de um homem, cujo rosto não pude ver logo por entre a folhagem. Lúcia, atenta aos esforços que fazia sua discípula para acertar, não reparou nessa circunstância.

O grupo parou a alguma distancia; eu reconheci o Couto no momento em que se adiantava com um movimento de espanto. Corri para fazer Lúcia retirar-se antes de vê-lo; mas estava distante, e quando cheguei, já a mais velha das moças se tinha aproximado, e arrancando a pulseira das mãos de sua irmã, atirou-a por cima da grade:

— Não toques em coisa que pertença a esta mulher! É uma perdida!

Lúcia tinha erguido a cabeça no primeiro instante de surpresa; nada porém perturbava a serenidade e quietude de seu rosto iluminado por uma doce altivez; circulou com um olhar límpido os atores desta cena, como se lhes pedisse a explicação do desagradável incidente; e tomando Ana pela mão e passando o braço pelo meu, afastou-se com uma dignidade meiga e nobre.

Contudo pensei que esse sossego era aparente, e que sua alma devia ter sido traspassada por aquele ultraje. Ela respondeu à interrogação muda do meu olhar murmurando-me ao ouvido para que sua irmã não a ouvisse:

— Elas não sabem, como tu, que eu tenho outra virgindade, a virgindade do coração! Perdoa-lhes, Paulo.

E o sorriso, que banhou estas palavras como de uma luz divina, parecia abrir o céu aos arroubos de sua alma.

XXI

Era um domingo.

O novo ano tinha começado. A bonança que sucedera às grandes chuvas trouxera um dos sorrisos de primavera, como costumam desabrochar no Rio de Janeiro entre as fortes trovoadas do estio. As árvores cobriam-se da nova folhagem de um verde tenro; o campo aveludava a macia pelúcia da relva, e as frutas dos cajueiros se douravam aos raios do sol.

Uma brisa ligeira, ainda impregnada das evaporações das águas, refrescava a atmosfera Os lábios aspiravam com delícias o sabor desses puros bafejos, que lavavam os pulmões fatigados de uma respiração árida e miasmática. Os olhos se recreavam na festa campestre e matutina da natureza fluminense, da qual as belezas de todos os climas são convivas.

Subia a passo curto e repousado a ladeira de Santa Teresa, calculando a hora de minha chegada pelo despertar de Lúcia; o meu pensamento porém abria as asas, e precedendo-me, ia saudar a minha doce e terna amiga.

Havia oito dias que Lúcia não andava boa. A fresca e vivace expansão de saúde desaparecera sob uma langue morbidez que a desfalecia; o seu sorriso, sempre angélico, tinha uns laivos melancólicos, que me penavam. Às vezes a surpreendia fitando em mim um olhar ardente e longo; então ela voltava o rosto de confusa, enrubescendo. Tudo isto me inquietava; atribuindo a sua mudança a algum pesar oculto, a tinha interrogado, suplicando-lhe que me confiasse as mágoas que a afligiam.

— Não digas isso, Paulo! respondia com um tom de queixa. Posso ter pesares junto de ti? É uma ligeira indisposição; há de passar.

De bem longe avistei Lúcia que me esperava e me fez um aceno de impaciência; apressei o passo para alcançar o portão do jardim. Ela estendeu-me as mãos ambas risonha e atraindo-me, reclinou-se sobre o meu peito com um gracioso abandono. Sentamo-nos nos degraus da pequena escada de pedra, e informei-me de sua saúde.

— Já estou boa. Não vês?

Realmente as rosas de suas faces viçavam; era cintilante o brilho que desferia a sua pupila negra. Pelos lábios úmidos lentejava a onda perene de um sorriso, que orvalhava-lhe o semblante de luz e graça.

— Ainda bem! Já me habituaste a só achar bonito aquilo que vejo através do teu mimoso sorriso. Agora é que eu começo a gozar desta linda manhã.

Trocamos ainda algumas palavras.

De repente Lúcia atirou-se a mim. Com uma arrebatada veemência esmagou na minha boca os lábios túrgidos, como se os prurisse fome de beijos que a devorava. Mas desprendeu-se logo dos meus braços, e fugiu veloz' ardendo em rubor, sorvendo num soluço o seu último beijo.

Fugiu, e ao passar fechou a porta que comunicava com o interior.

Contrariado por este obstáculo, consolei a minha impaciência com o sabor a esperança que se insinuara no meu coração. A fúria amorosa dos primeiros tempos, recalcada por uma força misteriosa, despertava. Outra vez a febre voluptuosa nos arrebataria para abrir-nos a mansão do prazer e dos mágicos deleites.

A minha esperança afagava-me tanto mais risonha, quanto desde o momento cruel em que vira Lúcia quase morta nos meus braços, nunca mais a ponta mimosa do seu lábio roçara sequer pelo meu, ávido de carícias. O seu beijo quase de irmã apenas de longe em longe bafejava-me a fronte; e isso mesmo depois de ter-me cerrado as pálpebras com a mão, para que eu não visse arder o lacre de suas faces.

A porta abriu-se enfim.

Lúcia apareceu trazendo a irmã pela mão. Sua fisionomia e atitude reslumbravam já a casta serenidade, que obrigava quantos a cercavam agora, a uma doce e terna veneração. Procurei debalde, sob essa calma aparência, um vestígio das emoções recentes; a tranqüilidade vinha do intimo, exalava dos seios d'alma, e difundia-se brandamente por toda a sua pessoa. Julgaria que nada tinha passado, se as lágrimas já estanques não houvessem empanado a habitual limpidez de seu olhar.

Ana adiantou-se para mim, e dando-me a mão como costumava, apresentou rubescente a fronte pura e angélica. Admirado não sabia o que fizesse, quando por cima da loura cabeça da menina vi o gesto imperativo de Lúcia. Toquei com os lábios a raiz daqueles cabelos sedosos que ondulavam com o sopro de minha respiração. Ana teve um estremecimento intimo; e banhou-se na onda de púrpura que descendo-lhe da fronte, derramou-se pelas espáduas, roseando a branca escumilha.

— É assim que se deve dizer adeus quando se quer bem! exclamou Lúcia abraçando a irmã.

Partimos para a missa, como de costume. Lúcia e a irmã com os braços enlaçados, eu a alguma distância, passando por desconhecidos que seguiam o mesmo caminho. Mas de longe mesmo, um olhar rápido trocado a furto, um gesto imperceptível, nos aproximava um do outro no meio da multidão.

Ambas trajavam de preto, com véus espessos; elas sentiam quanto é tocante o uso de só penetrar na casa de Deus ocultando a beleza sob a gala triste e grave, que prepara o espírito para o santo recolho.

De volta da missa, tomaram de novo as suas alvas roupas de cassa, e vieram sentar-se junto de mim; porém Lúcia que costumava ficar entre nós, trocou o lugar com a irmã. Toda a nossa vida era tão igual, e sucedia-se com tal regularidade, que essa circunstância não me podia escapar.

Apesar da separação, em que não tinha de todo perdido a minha fagueira esperança, aproveitava o momento em que a menina voltava o rosto, para suplicar Lúcia com um gesto; ela respondeu com um olhar de tão fria severidade que gelou-me

— Ana, vai mandar deitar o almoço. Paulo hoje acordou muito cedo!

Acompanhou com os olhos a irmã até que ela desapareceu no fundo do corredor; e voltou-se para mim séria e recolhida:

— Foi uma loucura! Esqueçamos esse momento, Paulo.

— Se tivesses verdadeira afeição a teu amigo, Maria, não o tratarias com tanta severidade!

— Paulo! Paulo... Tu bem sabes que com esta palavra me farias cometer crimes, se crimes fossem necessários para te provar que eu só vivo da vida que me dás, e me podes tirar com um sopro. Não sou eu criatura tua? Não renasci pela luz que derramaste em minha alma? Não és meu senhor, meu artista, meu pai e meu criador?

Fez-me um gesto para que não a interrompesse.

— Tu podes me fazer voltar à treva de que me arrancaste; podes estancar as fontes de minha existência que manam de tua alma; e não me hás de ouvir uma só queixa. A dor, como a alegria, serão sempre benditas, porque virão de ti. Mas, Paulo, a súplica do humilde não ofende. Deus a permite e exalça. Não me retires a graça e a bênção que me deste! Salva-me, Paulo! Salva-me de ti. Salva-me de mim mesma!...

Deixou-se cair a meus pés, e sua voz espedaçou-se num grito pungente:

— De mim que não terei forças para resistir, se a tua coragem me não exaltar.

Ergui-a, fazendo-a sentar nos meus joelhos. Ela deixou-se atrair, com meiga confiança. Seu instinto sutil lhe dizia que não devia temer naquele momento; adivinhava o respeito e a unção de que minha alma a envolvia, santificando-a.

— Maria, minha amiga, sossega! Se for preciso, eu terei força por nós ambos. Perdoa-me, porque te ofendi; não soube resistir. Não sucederá mais nunca, eu te prometo! Recobra o teu sorriso celeste, que me purifica!

Lúcia sorriu; nesse sorriso banhou-se minha alma e eu a senti melhor e mais pura.

— Tu és bom, como Deus, que me deu a ti, Paulo, para não esperdiçar as sobras de tua alma. Tu deves ler dentro de mim, e compreender o que eu não sei dizer, o que não sei nem mesmo pensar. A vida como tu ma fizeste é a bem-aventurança, porque vivo já no céu. Entre nós ambos nada existe; tu me absorves em ti, somos um: em torno de nós só Deus que nos protege, que nos une, e envolve-nos com um único de seus olhares. Tu, Paulo, tu podes tocar a terra sem quebrar essa coesso de nossas almas; porque sou uma coisa tua, uma porção de teu ser; porque te pertenço e te sigo fatalmente; porque na terra, como no céu, longe ou perto, vivo de tua vida. Mas tua Maria, o reflexo de tua luz e a flor de tua seiva, se ela caísse no pó, se desprenderia de ti para sempre. . . Como aqueles a quem o Senhor abandona na hora extrema! Compreendes, Paulo, compreendes !

Respondi apenas com o olhar; a voz me falecia, tanto aquelas palavras tocantes de Lúcia me comoviam.

— Se estivesses junto de mim durante aquela eternidade de vinte dias em que me deixaste só com a minha consciência, verias que martírio foi o meu, quando eu queria erguer-me do abismo para abrigar-me e esconder-me em ti; mas sentia a tua própria mão que me repelia e precipitava de novo! Verias também no meu rosto quanto horror me causava a só idéia de que eu talvez trouxesse já nas entranhas o verme que me devia roer as vísceras. Que importa que esse verme fosse gerado do teu e do meu sangue? Ele me arrancaria uma porção deste espírito que é teu, e criara uma vida nova nesta carne que já morreu, e não pode ressuscitar para sentimento algum!

Ana veio chamar-nos para almoçar.

Saindo da mesa, dávamos habitualmente algumas voltas pelo jardim: elas colhendo flores para os vasos, eu fumando o meu charuto. Às dez horas pouco mais ou menos entrávamos. Lúcia levava-nos então para o seu toucador bem pobre e bem modesto, mas ainda assim encantador, como tudo que essa mulher tocava com as pontas de seus dedos de fada ou bafejava com o seu hálito celeste.

Então Lúcia ocupava-se em anelar os cabelos louros da irmã e a toucá-la com tanto esmero como se a preparasse para alguma festa esplêndida; essa festa era a nossa intimidade, que Ana alegrava com o seu sorriso e inocência Depois de ter posto a irmã tão bonita, quanto ela caprichava em tornar-se simples, fazia-me admirar aquela formosura infantil e gozava do prazer que nos fazia sentir. Durante o seu trabalho, eu lia para ambas alguma página de literatura, ou falava sobre um tema agradável.

Nesse dia porém a ordem de nossa comum existência fôra perturbada. Lúcia chamou-me para ajudá-la a pentear a irmã: fez-me sentar ao lado; deu-me a segurar um após outro os lindos anéis que se enroscavam entre os seus dedos; e rindo e folgando afagava-me o rosto com a nuvem desses cabelos finos e sutis, e obrigava-me a beijar as pontas. O que ela exigiria de mim que eu não fizesse para vê-la feliz do seu desejo satisfeito ?

As duas horas costumava eu sair e fazer um passeio pelo encanamento. Esse caminho estava tão cheio da imagem de Lúcia, que deixando-a em casa um momento, parecia-me que ela me acompanhava, que eu sentia a pressão do seu braço no meu e a frescura embalsamada do seu hálito na minha face; ao mais leve estremecimento das folhas supunha ouvir o rugir da seda de seu vestido. Trazia do meu passeio alguma flor silvestre, uma borboleta, qualquer coisa, colhida em sua intenção para dizer-lhe que me lembrara dela: eram relíquias para o seu coração.

Quando cheguei, Lúcia estava só no jardim, debaixo de uma espessa e sombria latada de maracujás, tão absorvida em sua meditação que não me percebeu.

— Onde andava este pensamento tão longe de mim? disse-lhe sentando-me ao lado.

Sobressaltou-se, e abanou a cabeça sorrindo:

— Longe de ti?... Estava fazendo projetos para a nossa felicidade.

— Já não é ela uma realidade, Maria?

— E por isso, porque eu sei o que ela vale, receio que não dure sempre. Tu vives num mundo, Paulo, onde há condições que serás obrigado a aceitar, cedo ou tarde; um dia sentirás a necessidade de criar uma família, e gozar das afeições domésticas.

— Não me casarei nunca!

— Agradeço-te essa palavra; mas recuso o sacrifício. Se a tua bondade por mim não te cegasse neste momento, me darias razão. Há sentimentos e gozos que ainda não sentiste, e só uma esposa casta e pura te pode dar. Por mim te havias de privar de tão santas afeições, como são o amor conjugal e o amor paterno ?

— Assim, eram estes os projetos que fazias sobre a nossa felicidade? repliquei com um sorriso amargo. Se essa necessidade de que falas é tão forte que ninguém se pode esquivar a ela, o que eu contesto, nunca pensei que fosses tu que a lembrasse.

— Escuta-me primeiro, Paulo, meu amigo; depois pune-me, se eu merecer, mas não retires de mim o teu olhar. Pensas que essa idéia de que um dia me poderás abandonar por uma mulher a quem deverás consagrar toda a tua vida, não me tortura? Se assim fosse, por que me preocuparia com isto? É porque temo essa desgraça, que refletia no meio único de evitá-la.

— E esse meio?. . . Qual é ele? Dize-me.

— Ana! respondeu Lúcia timidamente.

Não compreendi.

— Poderias escolher uma noiva rica, de alta posição, porém não acharás alma tão pura, nem mais casto amor.

— Queres casar-me com Ana ? Com tua irmã, Maria ?

— Quero uni-la ao santo consórcio de nossas almas. Formaremos uma só família; os filhos que ela te der, serão meus filhos também; as carícias que lhe fizeres, eu as receberei na pessoa dela. Seremos duas para amar-te; uma só para o teu amor. Ela será tua esposa; eu completarei todas as outras afeições de que careces, serei tua irmã, tua filha, tua mãe!

— E podes dispor assim dos sentimentos de Ana?

— Era preciso que ela não vivesse comigo, para deixar de amar-te! Já te ama. Não sabes então que o meu pensamento e a minha alegria têm sido formar aquela alma pelo molde da minha?

— Tudo isto é um sonho teu, minha amiga! Vivamos com a realidade; e deixemos vir um futuro que pertence a Deus.

— Por que este sonho não se realizaria, querendo tu? Seria a consagração da minha felicidade. Sim; não há sacrifício de minha parte. Ana te daria os castos prazeres que não posso dar-te; e recebendo-os dela, ainda os receberias de mim. Que podia eu mais desejar neste mundo? Que vida mais doce do que viver da ventura de ambos? Ana se parece comigo; amarias nela minha imagem purificada, beijarias nela os meus lábios virgens; e minha alma entre a sua boca e tua gozaria dos beijos de ambos. Que suprema delícia...

Lúcia calou-se de súbito, empalidecendo. Toda a sua pessoa assumiu-se, tomando a expressão vaga e extática de quem é absorvido por um recolho íntimo: figurava uma pessoa escutando-se viver interiormente. Até que ergueu-se espavorida; soltou um gemido pungente levando a mão ao regaço, e caiu fulminada em meus braços.

O abalo interior que sofrera esse corpo delicado fora tão forte, que a cintura do vestido se despedaçara.

Conduzi Lúcia ao seu leito, e só depois de cruéis angústias tive o consolo de vê-la recobrar os sentidos, mas para cair logo numa prostração, em que apesar dos meus rogos e instâncias, só a ouvia murmurar surdamente estas palavras incompreensíveis:

— Eu adivinhava que ele me levaria consigo!

— Ele quem, minha boa Maria?

— O teu, o nosso filho! respondeu-me ela.

— Como! Julgas ?. . .

— Senti há pouco o seu primeiro e o seu último movimento!

— Um filho! Mas é um novo laço e mais forte que nos prende um ao outro. Serás mãe, minha querida Maria? Terás mais esse doce sentimento da maternidade para encher-te o coração; terás mais uma criatura com quem repartir a riqueza inexaurível de tua alma!

— Cala-te, Paulo! Ele morreu! disse-me com a voz surda. E fui eu que o matei!

— Para que te afliges assim! Nosso filho vive, há de viver! Não sentiste há pouco o seu primeiro movimento.

Nisto chegou o médico a quem tinha escrito imediatamente, e que depois de examinar o estado de Lúcia, declarou que não inspirava receio. Ela estava ameaçada de um aborto, resultado do choque violento que sofrera, quando conheceu que se achava grávida. O doutor, um dos mais hábeis parteiros da corte, procurou desvanecer os receios de Lúcia, assegurando-lhe que seu filho vivia, e nada ainda fazia recear pela sua vida.

Apenas o médico saiu, ela olhou-me tristemente:

— Era o primeiro! Mas o tato das entranhas maternas, sejam elas virgens ainda, não engana. Nosso filho, Paulo, o teu, porque ele era mais teu do que meu, já não existe.

À noite declarou-se a febre; uma febre intensa que a fez delirar. Foi então que conheci quanto eu vivia no seu pensamento: ela não disse no delírio uma só palavra que não se referisse a mim e a alguma circunstância de nossa vida mútua, desde o primeiro dia em que nos encontramos.

Pela manhã, depois de um sono curto e agitado, achei-a mais tranqüila:

— Tu me prometes, Paulo, casar com Ana!

— Não tratemos disso agora, minha amiga! Quando ficares boa, tudo o que tu quiseres eu farei para a tua felicidade.

— Mas essa promessa me daria tanto agora!

Escuta, Maria, esse casamento nos tornaria infelizes a ti, à tua irmã, e a mim que não poderia amá-la, mesmo por causa dessa semelhança! Tu viverias sempre entre mim e ela!

— Pois bem, promete-me que se ela não for tua mulher, lhe servirás de pai.

— Juro-te!

Beijou-me as mãos:

— Ela vai ter tanta necessidade de um pai!

Os acessos de febre repetiram-se durante três dias, e sempre mais graves. Uma tarde em que o médico apresentou a Lúcia um remédio:

— Para que é isso? perguntou ela com brandura.

— Para aliviá-la do seu incomodo. Logo que lançar o aborto, ficará inteiramente boa.

— Lançar!... Expelir meu filho de mim?

E o copo que Lúcia sustentava na mão trêmula, impelido com violência, voou pelo aposento e espedaçou-se de encontro à parede.

— Iremos juntos'... murmurou descaindo inerte sobre as almofadas do leito. Sua mãe lhe servirá de túmulo.

De joelhos à cabeceira eu suplicava-lhe que bebesse o remédio que a devia salvar.

— Queres acompanhar teu filho, Maria, e abandonar-me só neste mundo. Vive por mim!

— Se eu pudesse viver, haveria forças que me separassem de ti? Haveria sacrifício que eu não fizesse para comprar mais alguns dias da minha felicidade? Mas Deus não quis. Sinto que a vida me foge!

A instâncias minhas bebeu finalmente o remédio, que nenhum efeito produziu. A febre lavrava com intensidade; eu já não tinha esperanças.

— O remédio de que eu preciso é o da religião. Quero confessar-me, Paulo.

Lúcia tomou os sacramentos com uma resignação angélica; e abraçando a irmã, disse-lhe:

— Perdes uma irmã, Ana; fica-te um pai. Ama-o por ele, por ti e por mim

O dia se passou na cruel agonia que só compreendem aqueles que ajoelhados à borda de um leito viram finar-se gradualmente uma vida querida.

Quebrado de fadiga e vencido por uma vigília de tantas noites, tinha insensivelmente adormecido, sentado como estava à beira da cama, com os lábios sobre a mão gelada de Lúcia e a testa apoiada no recosto do leito. O sono foi curto, povoado de sonhos horríveis; acordei sobressaltado e achei-me reclinado sobre o peito de Lúcia, que se sentara de encontro às almofadas para suster minha cabeça ao colo, como faria uma terna mãe com seu filho.

Mesmo adormecido ela me sorria, me falava, e cobria-me de beijos:

— Se soubesses que gozo supremo é para mim beijar-te neste momento! Agora que o corpo já está morto e a carne álgida, não sente nem a dor nem o prazer, é a minha alma só que te beija, que se une à tua e se desprende parcela por parcela para se embeber em teu seio.

E seus lábios ávidos devoravam-me o rosto de carícias. bebendo o pranto que corria abundante de meus olhos:

— Se alguma coisa me pudesse salvar ainda, seria esse bálsamo celeste, meu amigo!

Eu soluçava como uma criança.

— Beija-me também, Paulo. Beija-me como beijarás um dia tua noiva! Oh! agora posso te confessar sem receio. Nesta hora não se mente. Eu te amei desde o momento em que te vi ! Eu te amei por séculos nestes poucos dias que passamos juntos na terra. Agora que a minha vida se conta por instantes, amo-te em cada momento por uma existência inteira. Amo-te ao mesmo tempo com todas as afeições que se pode ter neste mundo. Vou te amar enfim por toda a eternidade.

A voz desfaleceu completamente, de extenuada que ela ficara por esse enérgico esforço. Eu chorava de bruços sobre o travesseiro, e as suas palavras suspiravam docemente em minha alma, como as dulias dos anjos devem ressoar aos espíritos celestes.

— Nunca te disse que te amava, Paulo!

— Mas eu sabia, e era feliz!

— Tu me purificaste ungindo-me com os teus lábios. Tu me santificaste com o teu primeiro olhar! Nesse momento Deus sorriu e o consórcio de nossas almas se fez no seio do Criador. Fui tua esposa no céu ! E contudo essa palavra divina do amor, minha boca não a devia profanar, enquanto viva. Ela será meu último suspiro.

Lúcia pediu-me que abrisse a janela: era noite já; do leito víamos uma zona de azul na qual brilhava límpida e serena a estrela da tarde. Um sorriso pálido desfolhou-se ainda nos lábios sem cores: sublime êxtase iluminou a suave transparência de seu rosto. A beleza imaterial dos anjos deve ter aquela divina limpidez.

— Recebe-me... Paulo!...

Terminei ontem este manuscrito, que lhe envio ainda úmido de minhas lágrimas.

Relendo-o, admirei como tivera a coragem de alguma vez, no correr desta história, deixar a minha pena rir e brincar, quando o meu coração estava ainda cheio da saudade, que sepultou-se nele para sempre.

É porque, repassando na memória essa melhor porção de minha vida, alheio-me tanto do presente que revivo hora por hora aqueles dias de ventura, como de primeiro os vivo, ignorando o futuro, e entregue todo às emoções que sentia outrora. Quando eu gracejava, Lúcia estava ainda ao meu lado; ainda eu era feliz da minha lembrada felicidade.

Há seis anos que ela me deixou; mas eu recebi a sua alma, que me acompanhará eternamente. Tenho-a tão viva e presente no meu coração, como se ainda a visse reclinar-se meiga para mim. Há dias no ano e horas no dia que ela sagrou com a sua memória, e lhe pertencem exclusivamente. Onde quer que eu esteja, a sua alma me reclama e atrai; é forçoso então que ela viva em mim. Há também lugares e objetos onde vagam seus espíritos; não os posso ver sem que o seu amor me envolva como uma luz celeste.

Ana casou-se há dois anos. Vive feliz com seu marido, que a ama como ela merece. É um anjo de bondade; e a juventude realçando-lhe as graças infantis, aumentou a sua semelhança com a irmã; porém falta-lhe aquela irradiação intima de fogo divino. Almas como as de Lúcia, Deus não as dá duas vezes à mesma família, nem as cria aos pares, mas isoladas como os grandes astros destinados a esclarecer uma esfera.

Cumpri a vontade de minha Lúcia; tenho servido de pai a essa menina; com a sua felicidade paguei um óbolo de minha gratidão à doce amiga que tanto amou-me.

Estas páginas foram escritas unicamente para a senhora. Vazei nelas toda a minha alma para lhe transmitir um perfume da mulher sublime, que passou na minha vida como sonho fugace. Creio que não o consegui; por isso fecho aqui alguns fios da trança de cabelos, que cortei no momento de dizer o último adeus à sua imagem querida.

Há nos cabelos da pessoa que se ama não sei que fluido misterioso, que comunica com o nosso espírito. A senhora há de amar Lúcia, tenho a certeza; talvez pois aquela relíquia, ainda impregnada de seiva e fragrância da criatura angélica, lhe revele o que eu não pude exprimir.