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Lucia (Machado de Assis, 1864)

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LUCIA.


(ALF. DE MUSSET. — 1860.)


Nós estavamos sós; era de noite;
Ella curvára a fronte, e a mão formosa,
        Na embriaguez da scisma,
Tenue deixava errar sobre o teclado;
5Era um murmurio; parecia a nota
De aura longinqua a resvalar nas balsas
E temendo accordar a ave no bosque;
Em torno respiravam as boninas
Das noites bellas as volupias mornas;
10Do parque os castanheiros e os carvalhos
Brando embalavam orvalhados ramos;

Ouviamos a noite; entre-fechada,
        A rasgada janella
Deixava entrar da primavera os balsamos;
15A varzea estava erma e o vento mudo;
Na embriaguez da scisma a sós estavamos,
        E tinhamos quinze annos!

        Lucia era loura e pallida;
Nunca o mais puro azul de um céu profundo
20Em olhos mais suaves reflectiu-se.
Eu me perdia na belleza della,
E aquelle amor com que eu a amava — e tanto! —
Era assim de um irmão o affecto casto,
Tanto pudor nessa creatura havia!

25Nem um som despertava em nossos labios;
Ella deixou as suas mãos nas minhas;
Tibia sombra dormia-lhe na fronte,
E a cada movimento — na minh'alma
Eu sentia, meu Deus, como fascinam
30Os dous signos de paz e de ventura:
        Mocidade da fronte
        E primavera d'alma.
A lua levantada em céu sem nuvens

Com uma onda de luz veio inundal-a;
35Ella viu sua imagem nos meus olhos,
Um riso de anjo desfolhou nos labios
        E murmurou um canto.

Filha da dôr, ó languida harmonia!
Lingua que o gênio para amor creára —
40E que, herdada do céu, nos deu a Italia!
Lingua do coração—onde alva idéa,
— Virgem medrosa da mais leve sombra, —
Passa envolta n'um véu e occulta aos olhos!
Que ouvirá, que dirá nos teus suspiros
45Nascidos do ar, que elle respira — o infante?
Vê-se um olhar, uma lagrima na face,
O resto é um mysterio ignoto ás turbas,
Como o do mar, da noite e das florestas!

Estavamos a sós e pensativos.
50Eu contemplava-a. Da canção saudosa
Como que em nós estremecia um éco.
Ella curvou a languida cabeça....
Pobre criança! — no teu seio acaso
Desdemona gemia? Tu choravas,

55E em tua boca consentias triste
Que eu depuzesse estremecido beijo;
Guardou-a a tua dôr ciosa e muda:
Assim, beijei-te descorada e fria,
Assim, depois tu resvallaste á campa;
60Foi, como a vida, tua morte um riso,
E a Deus voltaste no calor do berço.

Doces mysterios do singelo tecto
        Onde a innocencia habita;
Cantos, sonhos d'amor, gozos de infante,
65E tu, fascinação doce e invencivel,
Que á porta já de Margarida, — o Fausto
        Fez hesitar ainda,
Candura santa dos primeiros annos,
        Onde paraes agora?
70Paz á tua alma, pallida menina!
Ermo de vida, o piano em que tocavas
Já não accordará sob os teus dedos!