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Lupe/IX

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Uma intrigante
IX


D. Maria Augusta Gordó de Zorraquinos, a nedia esposa do negociante guatemalteco, em raras occasiões conversava commigo.

De resto, pouco tempo lhe sobejava para outros misteres que não os de ataviar o rosto, reparando por meio de sabios artificios as deteriorações recalcitrantes da idade.

Manhans inteiras, levava-as a espremer cravos e extorquir pellos da cara, untando-a depois de pomadas cheirosas ou caiando-a de pó de arroz.

Merecia-lhe o cabello especial cuidado. Presumia, sem duvida, que, como a de Samsão, residia nas melenas a sua força.

Alisava-as repetidas vezes ao dia, arrancando-lhes intransigentemente os fios brancos e gastava horas a confabular com grampos, espelhos e pentes, imaginando combinações ineditas de cachos, caracóes, pastinhas, topetes, das quaes aguardava irresistiveis effeitos.

No mais, requebrava os olhos quando falava, tinha melifluidades beatas na voz, comprazendo-se com a narração de perfidias mansas, de crueldades hypocritas e frias. Unctuoso tudo nella; dir-se-hia que, em logar de sangue, rolava-lhe azeite nas veias.

Lupe azoinava-a de epigrammas; appellidou-a madre abbadessa; achava meios de lhe desmanchar o trabalhoso penteiado, e, descobrindo que nada a agoniava como qualquer allusão á sua obesidade incipiente, a cada momento a interpellava:

— Oh! D. Maria Augusta, indubitavelmente as auras marinhas dilatam os seus tecidos. Não calcula quanto já augmentou. Admira como os seus vestidos, de certo elasticos, conseguem ainda abrangel-a. Está hyperbolica, minha rica senhora, o que, aliás, multiplica os seus attractivos, pois todos elles se ampliaram. Mas, continuando assim, o seu digno marido, ao ter a gloria de revel-a, correrá o risco de não abarcar nos braços amanteticos sinão metade de sua cara metade, isto é, se Pythagoras não mente, apenas a sua quarta parte.

D. Maria Augusta Gordó de Zorraquinos repulsava estas chacótas com um silencio sobranceiro, dardejando obliquamente sobre a moça odientos olhares. Evitava, quanto podia, a mexicana. Dirigia-lhe sómente, pela manhan, ligeira inclinação de cabeça.

Mas Lupe fazia-se de desentendida, voltando á carga sempre que se lhe propiciava ensejo.

Na meza, a hespanhola palestrava baixinho, muito amavel, com o commissario de bordo, — americano de pés e mãos enormes, supinamente calvo e rubicundo. Abaixando-me eu, de uma feita, para levantar o guardanapo que cahira, pareceu-me entrever o sapatão do commissario idyllicamente pousado sobre uma das rechonchudas bases da hespanhola, sua vizinha. Não liguei importancia ao incidente, preoccupado de Lupe e outros assumptos.

Surprehendeu-me vivamente uma manhan o me chamar a gorda senhora para junto de si. Assumira um ar de confidencia; e foi pausada, com ademanes protectores, que assim me evangelisou:

— Não se póde negar que dom Alfonso é um guapo mancebo, bem educado e seguramente de excellente familia. Desculpe se offendo a sua modestia, mas possúo experiencia da vida e aquelles dotes logo se reconhecem. Dom Alfonso me inspira sympathia. Demais, costumo fazer bem sem olhar a quem. Por isso, espontanea e desinteressada, quero lhe prestar um serviço. Vou abrir-lhe os olhos... Mais tarde me agradecerá. Cuidado com a mexicana, dom Alfonso. Aquillo é gente mais traiçoeira que Judas. Está patente que as impudencias da joven desmiolada lhe transtornaram o coração. Não negue: — basta observar os olhos compridos que lhe lança, o modo immerecido como a acolhe, o açodamento com que a procura, desdenhando os mais. E ella o comprehendeu, a patifa, e vai usando das mil artimanhas do seu repertorio para o embahir. Colher proveitos positivos da ingenuidade alheia, eis o seu programma. Cautella, dom Alfonso. Nada de compromettimentos inuteis. Não dispenda tão fina cera com tão máo defunto. Agora, se pretende simplesmente divertir-se, o caso muda de figura. Está no seu direito e é proprio da feliz idade em que se acha. Mas, então, coragem, homem! Ponha á margem timidez e escrupulos injustificados. Não queira que, em vez de dom Alfonso (um bonito nome, — o de meu rei e senhor, a quem Deus guarde) o chamem de dom José, ridiculo não raro perante as mulheres. Nada de luxos n’uma praça aberta, onde entra quem quer. Trate-a como ella o merece. Caramba! Devia haver nos paquetes uma classe á parte para certa gente, afim de que damas immaculadas, como eu e Miss Jackson, não nos vissemos forçadas á convivencia de desgraçadas d’aquelle jaez. Parece que não acredita, dom Alfonso?... Noto-lhe geitos de protesto... Pois arrisque uma experiencia facillima... Passe, depois que apagarem as luzes, pelo camarote d’ella. Encontrará a porta entre-aberta. Penetre resoluto e abençoará as minhas caridosas indicações. Não será o primeiro, nem o ultimo. A cousa data de longe. Informe-se em S. Francisco...

E a castelhana deu-me familiar pancadinha no hombro, revirando as pupillas oleosas e arreganhando-se n’uma risada maligna.

Menos indignação que tristeza me produziram as insinuações de D. Maria Augusta. Repugnava-me admittir Lupe como a aventureira descripta. Sem embargo, as maneiras levianas d’ella, juntas ás informações de Mr. Randolph e ás que eu acabava de ouvir, projectavam-me no espirito sombras de duvida. E essa duvida me penalisava inexplicavelmente, como cruel desillusão.

Tentei a defeza de Lupe, negando sobretudo os sentimentos que a casquilha matronaça me attribuia. Mas falleciam-me elementos quanto á justificação d’aquella. Não havia ainda um mez que eu a conhecera, na promiscuidade de bordo. Onde buscar factos que rebatessem as accusações?...

Nem convinha patenteiar summo calor na advocacia, sob pena de corroborar as affirmativas concernentes ao estado de meu coração.

D. Maria Augusta abanava a cabeça, prazenteira, não se dignando contrariar meus argumentos tibios e confusos.

D’essa data em diante entrei a notar que o commandante, o commissario, os inglezes, o proprio engenheiro hollandez, Herr Pfeiffer, tão circumspecto e assiduamente entregue a calculos e leituras scientificas, derramavam sobre Lupe e sobre mim alternativos olhares carregados de malicia, gryphados, a revezes, de equivocos sorrisos.

D. Maria Augusta urdira, de certo, alguma calumniosa intriga.

Como reagir, esmagar a inverdade, impedir as inoffensivas, porem irritantes manifestações dos companheiros?...

E eu me affligia atrozmente, sem razão já se vê, pois nenhum aleive importava, afinal de contas, devendo, ao contrario, lisongear-me a vaidade, o imaginarem elles ligações amorosas entre um rapaz solteiro na minha situação e uma bonita viajante, de pouco austéras apparencias.

Felizmente, perto estava o porto de Acapulco, onde Lupe desembarcaria.

Agitavam-me de sorte estes pensamentos, que não me permittiam dormir. Onze horas bateram n’um relogio proximo, abafadas pelo ruido da helice.

Iam apagar-se todas as luzes do Colima, á excepção das regulamentares, deixadas em determinados pontos.

Insensivelmente, ergui-me do beliche e sahi descalço, pé ante pé. Urgia-me verificar a verdade das asserções da hespanhola contra Miss Hedges. Na hypothese negativa, desforçaria a innocencia. Na affirmativa... oh materia humana quanto és exigente e vil...

Eu ignorava o numero exacto do camarote de Lupe. Sabia que se achava collocado no meio de um pequeno corredor, para ambos os lados do qual outros abriam, em linha.

Dirigia-me cauteloso para ahi, quando ouvi passos furtivos atraz de mim.

Mal restou-me tempo de me dissimular. Pesado vulto masculino enfiou pelo dito corredor, encostou-se no centro d’este a uma porta que promptamente cedeu, e sumio-se.

Correram dentro um ferrolho.

Approximei-me então, guiado pelo rangido. Na minha frente e nas minhas costas, frouxamente allumiadas por uma lampada do salão contiguo, estendiam-se duas séries de portas fechadas, perfeitamente iguaes. Pareceu-me, comtudo, que o vulto penetrara na de numero 19.

Seria a do beliche de Lupe?

Não se calcula a superexcitação que desassocegou-me o resto da noite. Desencontradas idéas fervilhavam-me dolorosamente no espirito.

No almoço da manhan seguinte, Lupe apresentou-se fresca e jovial, como nunca.

Esquadrinhei-lhe ancioso as feições, e, com intima alegria, averiguei que as embebia, sob a vivacidade costumeira, serena expressão virginal.

Mas as exterioridades illudem. Suspeita horrivel continuava a me torturar.

Subimos ao tombadilho após a refeição e trocamos banalidades sobre o tempo, a marcha do Colima, as nossas respectivas condições sanitarias.

Abruptamente perguntei-lhe:

— Qual o numero de seu camarim?

A moça fitou-me admiradissima, recuando ligeiramente, como prestes a repellir uma injuria.

— Que tem com isso!?...

— Perdôe-me a indiscreção, Lupe. As superstições de Miss Jackson principiaram a actuar em meu animo. Quero comprar no primeiro porto um bilhete de loteria com aquelle algarismo. Trar-me-ha felicidade.

— Ah! que fantasia! — murmurou rindo. Duas duzias menos dois, eis ahi.

— 22?!... Quem occupa então o 19!

— Ao decimo-nono, fronteiro ao meu, cabe a honra de hospedar Sua Adiposidade a Senhora Dona Maria Augusta Gordó de Zorraquinos.

Pequena pausa. Em seguida, com estrondosa gargalhada:

— Mas para que diabo deseja assim informar-se arithmeticamente sobre o poleiro da pingue castelhana?! Ora essa! Será tambem com a intenção de alcançar a sorte grande? Ou premeditará acaso (e acertei... acertei...) fazer concurrencia ao commissario do navio?!...

E, com entonação galhofeiramente reprehensiva, no fundo da qual vibrava certa magoa:

— Oh! dom brazileiro! que cousa feia... que cousa feia... Nunca o supporia capaz de tanto. Leia um tratado de esthetica. Aquella posta de carne! Torne-se vegetaliano... Deixe-se d’isso, pelo amor de Deus!...

Mais tarde verifiquei que Lupe dormia no mesmo camarote que sua mãi. Em frente a esse, costumava permanecer aberto, depois de todos accommodados, o da hespanhola, que esperava o seu visinho de meza, — o rubro e alentado americano!