Lupe/X

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Noche triste.
X


Haviamos passado pelas ilhas Carmen e Margherita, parando no cabo de S. Lucas. Demoramo-nos um dia em Mazatlan, máo porto e regular cidade, sem nenhum caracteristico relevante. Costeamos Manzanilla. Mais 48 horas e ancorariamos em Acapulco, ponto terminal da viagem de Lupe.

Esta, á medida que proseguiamos, afigurava-se-me melancholica.

Na vespera da chegada, ao anoitecer, achei-a sósinha no tombadilho, recostada taciturna na chaise-longue.

Tomei assento igual, ao lado d’ella, como em a noite da partida, e perguntei solicito qual a causa do seu desusado pesar.

— Que quer, dom brazileiro?... sômos todos sujeitos a crises mais ou menos graves. Sabe a historia de Fernan Cortez, o legendario conquistador do Mexico. Alma de tão rija tempera, energia mais inflexivel difficilmente se hão de reproduzir na historia. Sublimes, epicas as suas façanhas; sobrehumanas as suas faculdades de resistencia e aggressão. Pois o proprio Cortez desanimou. Na noite fatal de 1 de Julho de 1520, expulso com os seus da capital revoltada, batido, fugindo, vendo mortos ou feridos os seus mais possantes camaradas, o heróe deixou-se cahir á beira da estrada, junto a um cypreste, que ainda hoje existe, e ahi abandonou-se á morte, duvidoso da sua estrella, renunciando ao porvir. A arvore funebre conserva o nome com que a tradicção a sagrou, — cypreste da noite triste, pois por noche triste é conhecido aquelle episodio de nossos annaes. Quem não encontra na vida uma ou muitas noches tristes?... Hoje, dom brazileiro, é a minha.

— Mas Cortez levantou-se, reconstituio-se, venceu...

— Cortez era Cortez. E contava, demais, com um elemento decisivo de victoria.

— Qual?...

— Malitzin, ou Marina, a formosa india, filha do Cacique de Painallas, sem a qual talvez naufragasse o temerario emprehendimento do conquistador; Malitzin, a providencia do exercito de Cortez, a sua interprete, sentinella infatigavel, conselheira segura, embaixatriz eloquente e astuta, o principal instrumento da quéda de Montezuma; Malitzin, que Cortez amava e que adorava frenetica o estrangeiro Cortez...

Houve demorado silencio. Depois, — a voz carinhosa e meiga, qual até então nunca lhe ouvira, voz ungida de lagrimas represas, — Lupe continuou:

— Fique no Mexico, dom brazileiro. Desembarque amanhan em nossa companhia; consagre algum tempo ao estudo dos costumes e natureza do meu paiz. Não se arrependerá, asseguro. Não me disse que viaja para aprender?... Pois, permanecendo ali, aprenderá muito... Oh! infelizmente eu não sei descrever a minha patria como usted, dom brazileiro, descreveu a sua, — descripção que eu jámais esquecerei e me fez amar o Brazil a ponto de sonhar percorrel-o, á semelhança de quem perlustra scismando a região das chimeras e das maravilhas... Mas fique no Mexico e reconhecerá que a minha terra instiga tambem inspirações ao poeta, interesse ao sabio, indeleveis lembranças ao peregrino. Medrou, entre nós, em éras longinquas, estranha e magnifica civilisação. Vestigios de monumentos soberbos attestam ainda agora o seu esplendor. Sobre os palacios immensos dos velhos imperadores aztécas, desfraldavam-se largas bandeiras niveas, franjadas de ouro. Ouro, prata, pedrarias, thesouros estupendos era tudo no interior, onde dominavam pomposas etiquetas de metter inveja ás orientaes. E que arte divina no preparo das pedras ricas! Cortez apoderou-se de cinco enormes esmeraldas, cujo inaudito trabalho assombrou os artistas europeus de seu tempo. Representavam uma rosa, uma trombeta de caça, um peixe com olhos de diamante, uma campainha tendo por badalo uma perola, e uma taça, gravada de religiosos disticos. Aurea cadeia, espantosamente cinzelada, concatenava-as. A imperatriz Izabel, esposa de Carlos V, quiz possuir esse primor; e o monarcha propôz compral-o por fabuloza quantia. Mas Cortez brindou com elle sua noiva, D. Juana de Zunia, filha dos duques de Bejar. Mais tarde, levando a Argel as famosas esmeraldas, o conquistador naufragou e perdeu-as no lodo da praia.

Terriveis, dom brazileiro, as divindades adoradas n’aquella civilisação. Do altar de Huitzilopochtli, deus da guerra, gottejava perenne o sangue dos holocaustos. Assignalava-se a coroação de cada soberano por sacrificios monstruosos. Sustentavam-se guerras sagradas com o intuito exclusivo de apanhar victimas. Nos alicerces dos templos, ladeiados de pyramides de craneos, punha-se uma mistura de ouro em pó, aljofres, plantas magicas e sangue humano. Quando nascia uma creança, o pai a apertava até que ella gemia de dôr, e então murmurava: — vieste ao mundo para soffrer; soffre, pois oh! meu filho! — E acreditavam na metempsychóse; marcavam a giz o caminho percorrido por um enterro, a fim de que a alma do defunto soubesse volver para se reencarnar em algum recemnascido; conjuravam os astros; liam a sorte, atravez fragmentos de crystal... Depois, viéram os hespanhóes, a gente de razon, a conquista, o aniquilamento dos indios. Os descendentes d’estes, porém, ainda hoje acreditam que o deus redemptor, Qualtzalcoath, dorme no fundo de uma caverna, á espera do despertar de sua raça. A monarchia aztéca soube expirar stoicamente. Rutilam, apoz ella, traços heroicos nos nossos annaes. Luctas homericas sustentamol-as contra a dominação estrangeira e as classes privilegiadas. Benemeritos da humanidade o cura Hidalgo e Morelos, iniciadores da nossa independencia. Agostinho Iturbide, outro heroe d’essa independencia, fizemol-o, em pouco mais de um anno, generalissimo, acclamamol-o dictador, cingimos-lhe a fronte do diadema imperial e o banimos e fuzilamos, como desleal á Patria. Novo imperador, imposto pela França, batida em Puebla, fuzilamol-o tambem. E foi uma epopeia de denodo e patriotismo, digna da America indomável, a campanha victoriosa de Juarez! Temos padecido, como nenhum outro povo, os horrores da olygarchia militar. O general Sant’Anna empolgou o poder seis vezes por meio de revoluções, governou vinte e tres annos quasi sempre dictatorialmente e adoptou o titulo de Alteza Serenissima. Os constantes sobresaltos e perigos em que vive a população tornaram-n’a intrepida, inaccessivel á fraqueza, idonea para inverosimeis ousadias, fanatica pela liberdade. Hospitaleira, além d’isso, doce, polida, apresentando typos de formosura esculptural. Mulheres da plebe, ajoelhadas nos templos, o busto immovel, o olhar fixo, o peito alto, dão a impressão cabalistica das esphynges egypcias. E que amorosas essas nossas mulheres, dom brazileiro!... Que destemidas, quando necessario! Maria Quintana, uma freira, combateu valorosamente na guerra da emancipação. Catalina Erazo, — a celebre monja alferes que aos 19 annos fugio do convento e se disfarçou de homem, levando até aos 28 incrivel vida de aventuras, duellos e campanhas, conquistando no exercito por actos de bravura o posto que lhe motivou o apellido, merecendo do papa autorisação para usar vestuario masculino, e acabando christãmente, recolhida, ainda em plena mocidade, ao claustro d’onde se escapára, — Catalina Erazo, nasceu em Hespanha, mas educou-se e praticou no Mexico as suas façanhas lendarias. Accordes os historiadores em testemunharem a benefica influencia femenina nos fastos nacionaes. O general Prim casou-se com uma mexicana. Bazaine igualmente. Condemnado e envilecido pelos seus compatriotas, que o acoimavam de traidor, o infeliz defensor de Metz só encontrou allivio ao seu infortunio na dedicação inalteravel da valente esposa, graças á qual evadio-se da fortaleza de Sainte Marguerite, em Cannes, onde jazia encarcerado. O amor das mexicanas não o destróem o tempo e o espaço. Se confiam a alguem o coração, não o reclamam mais nunca. Demore-se em minha terra, dom brazileiro. Conhecerá ali as manifestações mais grandiosas da natureza, os volcões. Um d’elles, o Popocatepetl, arroja-se, cingido de neve, a uma excelsitude de cerca de seis mil metros. A erupção de outro, o Orizaba, durou vinte annos. De um terreno perfeitamente plano levantou-se terceiro, o Jorullo, no correr de uma só noite a mil e duzentos metros de altura, cercado de duas mil boccas que expellem fumo! N’uma só noite, ouça bem, ergueu-se n’uma planicie lisa esse formidavel volcão. Curiosissimo, não acha?! E ha sentimentos que brotam de analoga maneira em corações virgens... Oh! não siga para diante amanhã, dom brazileiro. Não parta, meu amigo. Que lhe custa sacrificar alguns dias? No Mexico descobrirá largos materiaes para seus estudos, dilatará os seus conhecimentos, retemperará a sua experiencia, enriquecerá su’alma de novas affeicções. E será abençoado, querido, feliz... Pordioseros chamam-se em nossas cidades os mendigos, porque supplicam esmola, por Dios, — em nome de Deus. Considere em mim uma inditosa pordiosera, digna de dó e de todos repellida. Por piedade não parta amanhã; não me abandone; ampare-me, salve-me, soccorra-me, perdoe-me, — que eu não sei mais o que digo, nem o que sinto, nem o que vai ser de mim...

E poz-se a soluçar, a face occulta nas mãos.

Quedei acabrunhado diante de explosão tão inesperada. Não me occorria uma só palavra em resposta. Que significava aquillo? Algum accesso hysterico?...

Simplesmente absurdo o que ella me propunha. Como interromper a minha viagem, esquecer a familia, descer e deter-me n’um obscuro porto, alheio do meu itinerario, em zona diametralmente opposta á do Brazil, e isso unicamente para satisfazer o subitaneo capricho de uma quasi desconhecida, sobre cuja reputação tantas ambiguidades pairavam?!

Se eu a attendesse, quantas complicações e contrariedades não poderiam derivar d’esse passo irreflectido?!...

Decorreram alguns minutos penosissimos. Lupe sempre a soluçar.

Mas, vendo que eu nada dizia, levantou-se altiva, passando dedos convulsos pela fronte, como quem expelle incommoda visão.

E deixou-me só, em face do eterno mysterio do firmamento e do mar.