Lupe/Prefacio

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Dos ensaios litterarios que ultimamente tenho dado a lume, foi Lupe o que suscitou mais vivas e contradictorias apreciações.

Criticos houve, tão exaggeradamente benevolos, que de primorosa qualificaram a singela narrativa, chegando ao extremo de emparelhal-a com Cinco Minutos de José de Alencar e Graziella de Lamartine.

Outros, em compensação, a acoimaram de romancete fraco e ephemero, onde a acção se arrasta enfadonhamente, com defeitos notaveis de forma e escandalosos erros de observação.

E, conforme os habitos da terra, depois de malsinar o livro, atiraram-se desapiedados contra o autor, chamando-lhe vaidoso, ignorante, humilhador da patria lingua e quejandas amenidades.

Em consciencia, reputo-me autorisado a repetir os versos da tragedia raciniana:

.... Je n’ai mérité
Ni cet excès d’honneur, ni cette indignité!

Lupe não passa de modesto episodio de viagem, despreoccupadamente contado, sem pretenção de especie alguma.

Achei prazer em escrevel-o, e, simplesmente por isso, o escrevi.

Publiquei-o com a inoffensiva esperança de transmittir a outros uma parte d’esse prazer.

E parece que não me illudi de todo nos meus intuitos, pois duas tiragens de Lupe, — mil exemplares cada uma, — a despeito da epocha turbada em que se expuzeram á venda, dentro de breves dias se esgotaram.

Entre os senões apontados pelos censores, confesso que varios se me afiguraram justos. Corrigi-os na presente edição e me esforçarei por não reincidir.

A alguns, porém, peço venia para offerecer ligeira contestação.

— Desagrada em vossas producções, — accusaram-me, — o tom intensamente pessoal que n’ellas impéra. Falais em demasia de vós mesmo. D’ahi a pécha de vaidoso que vos assacaram.

Como o orador romano, podem n’este ponto bradar os profligadores: habemus confitentem reum.

Sim; todo o meu empenho consiste exactamente em imprimir, nos meus trabalhos litterarios a mais funda feição individual possivel.

Segundo o meu ideial, — falso talvez, mas sincero, — tanto maior se revela o artista quanto mais singular a sua obra, isto é, quanto mais se destaca da dos outros, affirmando nitidamente, por meio de suas peculiaridades, o eu de quem a criou.

Ignoro o que seja arte impessoal.

Ponderou muito bem um amigo que accorreu em minha defesa: “n’um trabalho d’arte tudo trae a mão que o fez, o cerebro que o pensou, o coração que o sentio; o cunho do temperamento individual é condição essencialissima para sua vitalidade.”

De facto, mesmo os objectivistas e impassiveis, sem embargo de quaesquer artificios, assignala-os e distingue-os essa propria impassibilidade ou objectivismo.

Quando menos, eil-os particularisados no estylo, onde cada qual, máo grado seu, estampa o seu sello original.

Até na arte photographica, que se limita á reproducção automatica das apparencias, patenteia-se a personalidade do artista na distribuição dos grupos, na selecção das posições e dos objectos photographados, em mil traços, em summa, inconscientes e caracteristicos.

— Mas, — insistirão, — escolheis assumptos excessivamente intimos. Vossos escriptos são auto-biographias. A egomania vos domina.

Retorquirei, recorrendo á autoridade suprema de Victor Hugo.

Quanto á opção das materias, doutrinou elle, (cito de memoria) no prefacio das Orientaes:

“Não reconheço á critica o direito de interpellar o poéta acerca da sua phantasia e de o increpar porque adoptou um assumpto de preferencia a outro, utilisou-se de tal tinta, colheu n’aquella arvore, bebeu em determinada fonte. É bôa ou má a obra? Eis o dominio da critica. Não ha em poesia bons ou máos assumptos, mas bons ou máos poetas. Tudo é assumpto. O dominio da arte abrange tudo. Não pesquizeis o motivo que me levou a eleger tal argumento. Examinai o como trabalhei, e não o sobre que e o porque.”

No tocante ao pretenso abuso do pronome pessoal, apadrinhar-me-hei ainda com o grande mestre, que, no proemio das Contemplações, ensinou:

“Ninguem tem a honra de possuir uma vida que seja exclusivamente sua. A minha vida é a vossa; a vossa vida é a minha; vós viveis o que eu vivo; o destino é um só. Tomai este espelho e mirai-vos n’elle. Queixosos ha dos escriptores que dizem — eu. Falai de nós, — bradam esses. Por Deus! Quando falo de mim, falo de vós. Como não o sentis!? Ah! quão insensato és se julgas que eu não sou tu. Este livro contem tanto a individualidade do autor como á do leitor. Homo sum.

Não careço explicar que entre esta concepção da identidade humana e a do personalismo na arte nenhuma antinomia existe.

Somos todos fundamentalmente irmãos, com faculdades equivalentes, sujeitos em perfeita igualdade á acção de inflexiveis leis physicas e moraes. Mas, dentro da orbita da unidade generica, as individuações se manifestam, as aptidões variam.

Artista é o que sabe concretisar estethicamente os fructos da sua superna aptidão criadora.

Assim, em que peze aos meus illustres aristarchos, persistirei em guardar completa independencia com relação a themas e a pronomes, embora sobre mim attraia esse proposito abominaveis epithetos. Tomei, de ha muito, Job como meu mentor, em meio dos successos de nosso caro Brazil.

O meu estylo soffreu tambem duros reparos.

Arguiram-n’o de truncado, telegraphico, desigual, inçado de orações ellipticas.

Que fazer? Infelizmente, não se me depara por emquanto outro melhor.

Apezar de todas as suas mazellas, consigo com esse estylo externar o meu pensamento, tornando-me entendido da maioria dos leitores. Isso me basta. Valha-me a intenção de buscar maxima clareza e concisão seguindo a regra estylistica formulada por Spencer: — poupai o tempo e a attenção de quem vos lê.

N’esta quadra de palavriado torrencial, deve-se indulgencia aos que ambicionam furtar-se ao words! words! do principe dinamarquez.

Iriel, o finissimo chronista parisiense do Jornal do Commercio, occupando-se de Lupe com inexcedivel gentileza, que me penhorou e desvaneceu, observa, entretanto, que a protogonista se exprime n’uma linguagem emphatica e declamatoria.

— Ella não conversa, discursa, — diz o meu eminente confrade, — o que constitue nota discordante e desagradavel.

Mas na maneira empolada de se expressar residia um dos tics, naturaes ou affectados, da joven mexicana.

Muito de industria, mantive simelhante diapasão por parte d’ella nos dialogos relatados, para dar ideia fiel da minha heroina.

Concluindo este pequeno cavaco, cumpro o dever de manifestar varios agradecimentos.

Agradeço, em primeiro logar, ao publico fluminense a nimia generosidade com que tem acolhido os meus escriptos. Continuarei a trabalhar com crescente esmero e escrupulo, a fim de me mostrar digno de tamanho favor.

Agradeço á imprensa as noticias publicadas sobre esses escriptos.

Sou reconhecido ainda ás menos favoraveis, comtanto que haja bôa fé e polidez. Prefiro juizos severos, que emendam e estimulam, ao silencio calculado da má vontade, o qual, com offender, desanima.

Agradeço finalmente ao meu bom editor e amigo, Sr. Domingos de Magalhães, o verdadeiro carinho que dispensa a meus livros, julgando-os merecedores de luxuosos requintes typographicos.

As primeiras tiragens de Lupe, feitas em typo mingon na afamada casa Leuzinger, foram um mimo.

Não lhes fica somenos a actual, confiada á Typographia Aldina.

E, consoante velha usança:

Vale, amigo leitor!

Alto da Serra, (Petropolis) 1 de Agosto de 1894.

A. C.