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Lupe/XVI

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Carta de Lupe
XVI


A missiva datada, mezes havia, de Acapulco, peregrinara extensamente antes de vir a mim.

Eis a traducção do seu teôr:


“Dom brazileiro, meu sempre lembrado amigo.

Não sei se será esforço baldado o dirigir-lhe eu estas linhas, pois só de incompletas indicações disponho a respeito de seu endereço. Mas não importa que a minha epistola se perca. Escrevo-a, á semelhança de quem solta machinalmente um grito de soccorro, no meio da afflicção, sem cuidar de que esse grito seja ouvido, ou se dissolva no ar. Tenho soffrido muito... muitissimo... Nunca suppuz que se podesse soffrer assim. Minha mãi morreu de desgostos. Meu tio foi fusilado, em seguida a um pronunciamento que aqui houve contra a administração. A familia d’elle dispersou-se; duas filhas, minhas primas, perderam-se. Hoje vivo só. Ganho escassamente o que comer cosendo e ensinando meninas. As costuras e discipulas não raro faltam, e atravesso trances bem duros n’esta triste cidade, de tão rude gente e tão aspero clima. Horrivel a quadra do pronunciamento. Estive presa, como suspeita; curti fome e máos tratos; ouvi, meu amigo, injurias atrozes de soldados ébrios. Aquella Lupe do Colima sumio-se. Subsiste apenas um espectro d’ella, velho, fenecido, acabado, de quem dom brazileiro sentiria dó, se o visse. O que me vale é a crença na santa religião que, mercê de Deus, me voltou vehementissima. O tempo que me sobeja do trabalho consagro-o á Egreja. Rezo de joelhos, horas e horas, o rozario nas mãos, jejúo, commungo, confesso-me quasi todos os dias, para que o Santissimo se compadeça d’esta desgraçada alma. Quantas vezes, meu amigo, me lembro de seu nome nas minhas ardentes orações! Assaltam-me, comtudo, de quando em quando, desfallecimentos crueis, verdadeiras instigações do inimigo. Recordo o meu passado de galas em S. Francisco, o meu luxo, a minha mocidade sacrificada, os meus encantos (apregoavam-n’os tanto outr’ora, que cheguei a acreditar n’elles), os meus encantos, deixe-me dizel-o, os meus encantos extinctos, os meus sonhos ludibriados, o meu coração innutilizado, o meu caracter e sentimentos desconhecidos... E então me revolto, e me desespero, e quasi enlouqueço de tanto padecer. Ah! se a sorte me proporcionasse conselhos e affecto de alguem que me comprehendesse e guiasse, quão proveitosa e feliz me correria a existencia, e com que carinhoso frenesi eu saberia adorar esse alguem! Perdoe estas expansões descabidas e ás quaes não me assiste direito para com usted. Tomei a penna, repito, sob a pressão de uma das taes crises. Aqui ninguem as entende nem as poderia serenar. Chamam-me doida. E não o ficarei na verdade? Como confiar na integridade da minha razão, tão ferozmente flagelada?... Vou deitar esta carta no correio, como o naufrago atira ás ondas uma garrafa contendo a noticia garatujada da sua agonia. Entretanto, uma palavra sua em resposta, dom brazileiro, me animaria e consolaria extraordinariamente. Vinda de tão longe, far-me-hia o effeito sobrehumano de voz celestial. Que é dos livros e vistas do Brazil que me prometteu? Quem sabe se m’os enviou e se extraviaram no caminho?! Acapulco é tão obscuro! Prefiro esta ultima hypothese, pois me dóe muito pensar que se tivesse esquecido de mim. Em todo caso, solicito nova remessa. Ser-lhe-ia penoso remetter-me tambem o seu retrato? Não olvide Lupe, dom brazileiro; não a olvide, supplico. Não queira que ella ao descrever o Brazil ás suas discipulas, depois de enumerar todas as bellas qualidades dos filhos d’aquella terra, qualidades de que póde dar testemunho, exclame pezarosa, por fim: — mas, desgraçadamente, caracterisa-os a mais negra ingratidão! Adeos, dom brazileiro, meu querido amigo, sempre lembrado por mim até á eternidade. Jesus misericordioso o proteja e lhe dê em felicidades o que em provações me tem dado a mim. Lembra-se de Miss Jackson?... Até um dia n’esta vida, ou em outra. Com todas as véras de meu ser, me assigno, chorando, sua humilde servidora agradecida — Lupe Hedges.

P. S. — Responda-me; sim?!...”

Respondi immediatamente, mandando as vistas e os livros pedidos.

Com sincera commoção, prodigalisei-lhe expressões de sympathia e conforto e narrei-lhe a minha vida desde que nos separaramos.

Não soube, porém, se a destinataria recebeu essa resposta e o envolucro que a acompanhava. Nunca mais tive a menor noticia de Lupe.

A principio, aguardava ancioso os paquetes estrangeiros, buscando impaciente communicações de Acapulco. Interessavam-me quaesquer informações sobre o Mexico e exasperava-me de que tão raras se publicassem no Brazil.

Mas, a pouco e pouco, imperceptivelmente, a imagem da mexicana foi regressando á penumbra da indifferença.

Empolgou-a, afinal, outra vez, o sorvedoiro do olvido.