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Lupe/XVII

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Pobre señorita!
XVII


Nove annos rolaram. Copia immensa de factos, arrastou-os o tempo em sua correnteza irrepressivel.

Já quasi um decennio depois da minha excursão aos Estados-Unidos.... um decennio! — o periodo da guerra de Troya, o dobro do da campanha do Paraguay!

Quão diversas das de então as preoccupações actuaes! Que largo montão de sedimentos, — detritos de jubilos, decepções, projectos, experiencias, vicissitudes de toda casta, — me depositou sobre a reminiscencia d’aquella phase o fluxo constante da vida!....

Durante o prazo alludido, haviam-se-me acrescido a familia e os encargos; eu emprehendera outras viagens longinquas; supportara embates de revolução; curtira amarguras de exilio.

E cada dia recúam para limbos mais indistinctos as scenas da primavera juvenil.

Á medida que galgo a montanha, se relanceio para baixo saudosos olhos, mais e mais duvidosamente distinguo os contornos do sopé, no fundo de um abysmo, povoado de brumas. É a lei ineluctavel, e quiçá providencial, do existir.

Sem embrago ha uma semana, no curso de trabalhos encetados, pouco tendentes a divagações imaginarias, reproduziu-se-me, repentinamente, o extranho phenomeno evocativo occorrido por occasião da carta de Lupe.

Revi-a, a joven mexicana, pela segunda vez tão nitidamente como da primeira, n’uma reflorescencia magica de recordações.

Mas circundaram agora a figura resurgida reverberações tumulares. Exhalou-se d’ella a emanação melancholica de algo definitivamente extincto. Gracioso phantasma, repassou-me de indizivel fluido sobrenatural.

Lupe morreu! Uma voz intima m’o affirma irrecusavelmente. Tenho tanta certeza do seu fallecimento como se lhe houvesse cerrado piedoso os olhos travessos, cruzado sobre o seu peito as suas mãos fidalgas e atirado sobre o seu corpo donairoso a derradeira pá de cal.

Pobre Lupe, estrella cadente que debuxou rapida linha de luz mysteriosa no horizonte da minha mocidade, — galante esphynge pousada á beira da minha remota estrada percorrida!

Que eras tu? Alma corrompida ou pura? Corpo maculado, ou de virgem? Victima apenas de pernicioso meio? Flôr venenosa do mal?!

Pude simplesmente apprehender que foste uma perseguida do destino.

Deixa-me fixar depressa no papel os teus traços fugitivos, n’estas paginas escriptas a correr.

Amanhã será tarde. Tudo passa, tudo acaba. Quanto mais as saudades que inspiras, leviana señorita?!...

Eil-as, enfeixadas aqui, essas saudades, fragil tributo de um estrangeiro, que tenuemente entreviste e chamavas amigo...

Coitadas! Boiam á tona do esquecimento, como petalas de rosa cahidas de célere batel sobre vagalhões de alto mar.