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Mãe (José de Alencar)/II

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Em casa de JORGE. Sala simples, mas elegante.

CENA PRIMEIRA

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JOANA e VICENTE

VICENTE - Como vai isto por cá?

JOANA - Oh! Bilro!... Vamos indo, como Deus é servido!

VICENTE - Há saúde e patacos, é o que se quer.

JOANA - Saúde não falta, não, Bilro! No mais vai-se vivendo, como se pode.

VICENTE - Olhe, Sra. Joana... Há muito que estou para lhe pedir uma coisa.

JOANA - Sra. Joana!... Estás doido, Bilro?

VICENTE - Não, mas é que... Sim... Bem vê que tenho hoje uma posição... E este modo de chamar a gente de Bilro...

JOANA (rindo) - Ah! ah! ah!... Então porque és pedestre, ou meirinho... Não sei o quê!

VICENTE - Menos isso!... Oficial de justiça!

JOANA - Pois que seja... Oficial da justiça, ou da injustiça... Porque és isto, julgas que ficas desonrado se eu te chamar de Bilro?... Ora, não vejam só este meu senhor! Que figurão!... V. Sa. faz obséquio... ou V. Exa.?... Queira ter a bondade... Por quem é... Sr. Vicente...

VICENTE - Romão... Romão...

JOANA - Sr. Vicente Romão. Queira desculpar!... sem mais aquela.

VICENTE - Está zombando.

JOANA - ~ Não é assim que deve tratá-lo?

VICENTE - Toma o recado na escada... Eu por mim não me importava; mas falam.

JOANA - Pois olha! Cá comigo está se ninando!... Eu te conheci assim tamaninho, já era rapariga, mucama de minha senhora moça, que Deus tem, e foi sempre Bilro para lá, tia Joana para cá. Se quiseres há de ser o mesmo... senão, passar bem. Ninguém há de morrer por isso.

VICENTE - Mas, Joana...

JOANA - Tia Joana!

VICENTE - Está bom, para fazer-lhe a vontade... Tia Joana! Não era melhor que a gente se tratasse como os outros?...

JOANA - Não sei se é melhor, se não... Quando te vir hei de chimpar-te com o Bilro na venta.

VICENTE - Não tem graça nenhuma.

JOANA - Se te parecer, não responde: é o mesmo.

VICENTE - Em teima ninguém lhe ganha!... Não vê que é preciso a gente dar-se a respeito.

JOANA - Dá-te a respeito lá com as outras. Comigo estás bem aviado.

VICENTE - Pois é isto que eu quero! Não me entendeu... Diante dos outros a senhora... a tia Joana que lhe custa me chamar de Vicente?

JOANA - Diante dos outros?... Pois sim! Mas olha que é Vicente só!

VICENTE - Vicente Romão... É mais cheio.

JOANA - Uma figa!... Nem Romão, nem senhor! Vicente.

VICENTE - Enfim! Era melhor o nome todo... Não quer! Que se lhe há de fazer!

JOANA - Então não perguntas por nhonhô Jorge?

VICENTE - Ia perguntar; mas Vm....

JOANA - Vm.... Hein... Bilro...

VICENTE - Você me atrapalhou, tia Joana. Como está ele, o Sr. Jorge? Está bom?

JOANA - Bom e crescido que faz gosto... Se tu o vires!

VICENTE - Não há quinze dias que estive com ele.

JOANA - Pois faz sua diferença!. .. Todos os dias parece que fica mais alto e mais sério... Eu acho ele tão bonito, meu Deus!

VICENTE - Pudera não! Você o criou!

JOANA - E tu não achas?

VICENTE- Eu não! E é preciso que diga.

JOANA - Já lhe saiu todo o buço.

VICENTE - Também ele já anda rastejando pelos vinte e um.

JOANA - Completou hoje, Bilro.

VICENTE - É verdade. - Ora tia Joana! Já estamos ficando velhos. Inda me parece. que foi outro dia que você dava de mamar a ele.

JOANA - Como me lembra!... Eu tinha dezessete anos, e tu eras um pirralho de oito. Vinhas bulir com ele no meu colo; e como eras muito travesso, nós te começamos a chamar de Bilro. Nunca estavas quieto!

VICENTE - E aquela vez que um sujeito fez-me por força levar-lhe um recado... Quando a gente é criança faz cada uma!

JOANA - Doeu-te o puxão de orelha que te dei?

VICENTE - Oh! se doeu!... Também nunca mais!

JOANA - E perdias teu tempo!

VICENTE - Lá isso eu sempre disse... Nunca houve mulatinha que se desse mais a respeito do que tia Joana. Pois em casa punham a boca em todos; mas dela não tinham que mexericar.

JOANA - Não fala mais nisso, Bilro. A gente tem vontade de chorar.

VICENTE - É mesmo, tia Joana. Bom tempo! Sr. doutor só fazia ralhar. Tirante disso, era bom amo.

JOANA - Tens tido notícias dele?

VICENTE - Depois que foi viajar, nunca mais soube por onde anda.

JOANA - E a comadre Rosa que ele vendeu a um homem da Rua da Alfândega?

VICENTE - Essa morreu... O André está cocheiro na praça.

JOANA - Cada um para sua banda.

VICENTE - Vou indo também para a minha. Adeus, tia Joana.

JOANA - Agora até quando?

VICENTE - Não sei! Hoje como tive que fazer por aqui, então disse cá com os meus botões: - Deixa-me ver a tia Joana. - Já vi... Estão batendo.

JOANA - Vê quem é.

VICENTE - Pode entrar.

CENA II

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Os mesmos e DR. LIMA

DR. LIMA - Ainda se lembram aqui do amigo velho?

JOANA - Ah! Meu senhor Dr. Lima. Há que anos!...

VICENTE - Sr. doutor!...

DR. LIMA - Esqueceste que parti para Europa.

JOANA - Não esqueci, não... meu senhor. Ainda há pouco estava falando nisso.

DR. LIMA - Cheguei hoje pelo paquete. Acabo de desembarcar. Que de Jorge?

JOANA - Saiu. Que alegria ele vai ter!... Mas como meu senhor acertou com a casa?

DR. LIMA - Custou-me!... Já andei por ai à matroca. Na Rua do Conde é que me ensinaram.

VICENTE - O vizinho de defronte?

DR. LIMA - Justamente! Mas eu estou reconhecendo esta figura...

JOANA - O ciganinho, pajem de meu senhor...

DR. LIMA - Ah! O grande Bilro!

VICENTE - Vicente Romão, Sr. doutor.

DR. LIMA - Como vais?... Que fazes?... Estás mais bem comportado?

JOANA - É oficial de justiça.

DR. LIMA - Escolheste um bom emprego, Bilro.

VICENTE - Vicente Romão, Sr. doutor. Mas então V. Sa. acha?

DR. LIMA - O que, homem?...

VICENTE - Bom o meu emprego?

DR. LIMA - Decerto! Precisavas viver bem com a justiça.

VICENTE - Peço vista para embargos, Sr. doutor; não tenho culpas no cartório.

DR. LIMA - Bem mostras que és do ofício!

VICENTE, (à Joana.) - É preciso perder esse mau costume de chamar a gente de ciganinho. Ouviu?!

JOANA - Ai!... Começas outra vez com as tuas empáfias. VICENTE - Que embirrância!...

DR. LIMA - Que é isso lá? Assim é que festejam a minha chegada?

JOANA - É Bilro que...

VICENTE - Não é nada, Sr. doutor; V. Sa. me dê as suas ordens.

DR. LIMA - Vai me ver. Estou no Hotel da Europa.

VICENTE - Obrigado, Sr. doutor. Até mais ver, tia Joana.

CENA III

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DR. LIMA e JOANA

JOANA - Meu senhor não quer descansar?...

DR. LIMA - Recosto-me aqui mesmo, neste sofá.

JOANA - Já almoçou, meu senhor? Aí tem café e leite.

DR. LIMA - Ainda conservo os meus antigos hábitos. Às oito horas já estava almoçado.

JOANA - Quem sabe se meu senhor não quer tomar o seu banho?

DR. LIMA - Não! Vem cá. Senta-te aí.

JOANA - Eu converso mesmo de pé com meu senhor.

DR. LIMA - Como vai teu filho?... Já está um homem?

JOANA - Meu senhor!... Eu lhe peço de joelhos... Não diga este nome!

DR. LIMA - Pelo que vejo o mistério dura ainda!

JOANA - E há de durar sempre! Meu senhor me prometeu.

DR. LIMA - Prometi.

JOANA - Meu senhor jurou!

DR. LIMA - É verdade! Mas julgava que na minha ausência tudo se havia de se revelar.

JOANA - Ele não sabe nada, e eu peço todos os dias a Deus que não lhe deixe nem suspeitar.

DR. LIMA - Assim tu ainda passas por sua escrava?

JOANA - Não passo, não! Sou escrava dele.

DR. LIMA - Mas Joana! Isto não é possível!

JOANA - Meu senhor... Eu já lhe disse!... E não cuide que por ter esta cor não hei de cumprir... No dia em que ele souber que eu sou... que eu sou... Nesse dia Joana vai rezar ao céu por seu nhonhô.

DR. LIMA - E por que razão hás de fazer uma tal loucura?

JOANA - Por quê?... Desde que nasceu ainda está para ser a primeira vez que se zangue comigo. E Vm. quer que se envergonhe... Que me aborreça talvez!... Meu Deus! Matai-me antes que eu veja essa desgraça!

DR. LIMA - És tu a culpada?

JOANA - Não sei, meu senhor, não sei. Às vezes penso... Quando fazem vinte e um anos eu senti o primeiro movimento dele... de meu...

DR. LIMA - De teu filho. Fala! Que receio é esse?... Estamos sós.

JOANA - Vm. não sabe que medo tenho de dizer este nome!... Até à noite quando rezo por ele baixinho... não me atrevo... Ele pode ouvir... Eu posso me acostumar...

DR. LIMA - Mas dizias?

JOANA - Ah! Quando senti o primeiro movimento que ele fez no meu seio, tive uma alegria grande, como nunca pensei que uma escrava pudesse ter. Depois uma dor que só tornarei a ter se ele souber. Pois meu filho havia de ser escravo como eu? Eu havia de lhe dar a vida para que um dia quisesse mal à sua mãe? Deu-me vontade de morrer para que ele não nascesse... Mas isso era possível?... Não, Joana devia viver!

DR. LIMA - Foi então que Soares te comprou...

JOANA - Ele me queria tanto bem! Deu por mim tudo quanto tinha... Dois contos de réis! Eu fui para sua casa. Aí meu nhonhô nasceu, e foi logo batizado como filho dele, sem que ninguém soubesse quem era sua mãe.

DR. LIMA - Desgraçadamente morreu poucos dias depois... Se eu soubesse então!...

JOANA - Mas meu senhor não sabia nada. Fui eu que lhe confessei...

DR. LIMA - Porque já tinha suspeitado...

JOANA - E por isso só. Vm. era capaz de afirmar? Não! Quem lhe contou fui eu, com a condição de não dizer nunca!...

DR. LIMA - Pois bem, Joana! Não direi uma palavra. Continuarás a ser escrava de teu filho. Será para ele a dor mais cruel quando souber...

JOANA - Nunca!... Quem vai lhe dizer?... Além de Vm. e de mim, só Deus sabe este segredo. Enquanto meu senhor estava fora eu vivia descansada...

DR. LIMA - E tinhas razão... Presente, vendo-te ao lado de Jorge, não respondo por mim.

JOANA Meu senhor, Vm. teve sua mãe... Lembre-se que dor a pobre havia de sentir se seu filho tivesse vergonha dela!... Não o faça desgraçado! E por causa de quem?... De mim que morreria por ele.

DR. LIMA - Bem; prometo-lhe que hei de ter coragem! Virei raras vezes aqui. Evitarei o mais que puder... com receio de me trair.

JOANA - É melhor. Até Vm. se habituar.

DR. LIMA - Nunca me habituarei!.... Tu não sabes como eu te admiro, Joana; e como dói-me no coração ver esse martírio sublime a que te condenas.

JOANA - Eu vivo tão feliz, meu senhor!

DR. LIMA - Mas que necessidade tinhas de ser escrava ainda? Não podias estar forra?

JOANA - Eu, meu senhor?... Como?

DR. LIMA - Com o dinheiro que tiravas do teu trabalho, e gastavas na educação de teu filho.

JOANA - Nunca pensei nisso, meu senhor!... Demais, forra, podiam-me deitar fora de casa, e eu não estaria mais junto dele. A escrava não se despede.

DR. LIMA - Mas... Estremeço só com esta idéia!

JOANA - Qual, meu senhor?

DR. LIMA - Supõe que... te vendiam.

JOANA - Joana morreria; porém ao menos deixaria a ele aquilo que custasse... sempre era alguma coisa... Para um moço pobre!

DR. LIMA - E eu hei de estar condenado a ouvir Jorge agradecer-me a sua educação que ele deve unicamente a ti; a chamar-me seu segundo pai, ignorando que sua...

JOANA - Mais baixo!... Não se zangue, meu senhor!

DR. LIMA - Sabes que mais! Vou-me embora. Voltarei logo para abraçar Jorge, e não pisarei mais aqui. É uma tortura!

JOANA - Adeus, meu senhor! Não se agaste comigo.

DR. LIMA - Não. Quem sabe se tu não tens razão!

JOANA - Deus dê muita felicidade a meu senhor Dr. Lima.

(Abre a porta.)

CENA IV

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Os mesmos e JORGE

JOANA - Ah!

DR. LIMA - É ele?

JOANA - Nhonhô não conhece, não!... Sr. Dr. Lima!

DR. LIMA - Jorge!

JORGE - Ah! doutor! Quando chegou?

DR. LIMA - Hoje mesmo. É a minha primeira visita.

JORGE - E devia ser pelo bem que lhe queremos, eu e Joana. Venha sentar-se.

DR. LIMA - Está um homem!

JOANA - Não é, meu senhor doutor?... E um moço bonito! Hi! Faz andar à roda a cahecinha dessas moças todas.

JORGE - Se lhe der ouvidos, doutor, é um não acabar de elogios!... Mas há cinco anos que está ausente!

JOANA - Há de fazer pela Páscoa.

DR. LIMA - É verdade. Deixei-o quase criança... Tinha dezesseis anos. Acabou os seus estudos naturalmente!

JORGE - Ainda não.

JOANA - É o melhor estudante. Não sou eu que digo!... São os mestres dele.

DR. LIMA - Sempre foi... Que profissão escolheu?

JORGE - Segui o seu conselho... Estudo medicina; estou no 5o ano.

DR. LIMA - E de fortuna... Como vamos?

JORGE - O necessário. As minhas lições..

DR. LIMA - Ah! Dá lições? De quê?

JORGE - De música e de francês.

DR. LIMA - Lembro-me que tinha muita disposição para o piano. Cultivou essa arte?

JOANA - Toca que faz gosto!... Vm. há de ouvir.

DR. LIMA - Sem dúvida. E quanto lhe rendem as lições?

JORGE - Uns cem mil-réis por mês.

DR. LIMA - É pouco.

JORGE - Faço também algumas traduções que deixam às vezes um extraordinário. Joana por seu lado ganha...

JOANA - Quase nada, nhonhô! Já estou velha. Não coso mais de noite.

JORGE - Nem eu quero. Foi de passares as noites sobre costura que ias perdendo a vista.

DR. LIMA - Faz bem em tratá-la com amizade, Jorge. É uma boa...

JOANA - Sou uma escrava como as outras.

JORGE - És uma amiga como poucas se encontram.

JOANA - Ora, nhonhô!...

JORGE - Sabe, doutor! Creio que foi Deus que o enviou a esta casa.

DR. LIMA - Por que razão, Jorge?

JORGE - Eu lhe digo... Vem cá, Joana!... Mais perto!... Quero contar-te uma história.

JOANA - Mas... Eu vou dar uma vista d'olhos lá dentro.

JORGE - Espera. (Toma-lhe a mão.)

JOANA - Que é isso, nhonhô? Já se viu... Que modos?

JORGE - Olhe, doutor! Estou no meio de minha família. Meu segundo pai, minha segunda mãe! Não conheci os outros.

DR. LIMA - Jorge, meu amigo!

JOANA - Para que falar nestas coisas num dia de se estar alegre... Meu senhor doutor chegou... Nhonhô faz anos.

DR. LIMA - É verdade!... É hoje 3 de fevereiro...

JORGE - Escolhi justamente este dia para pagar-te uma dívida. Quem foi testemunha da dedicação, doutor, verá o reconhecimento.

JOANA - Nhonhô, me dê licença!

JORGE - Toma, Joana. Eu escrevi-a esta manhã lembrando-me de minha mãe.

DR. LIMA - Muito bem, Jorge. Deus o inspirou!

JOANA - Mas o quê... Que papel é este, nhonhô?

DR. LIMA - É a tua carta de liberdade, Joana!

JOANA - Não quero! Não preciso!

JORGE - Não é tua carta de liberdade, não, minha boa Joana; porque eu nunca te considerei minha escrava. É apenas um título para que não te envergonhes mais nunca da afeição que me tens.

JOANA - Mas eu não deixarei a meu nhonhô?

JORGE - A menos que tu não o exijas.

JOANA - Eu!... Que lembrança!

DR. LIMA - Não faz idéia do quanto me comove esta cena.

JORGE - As nossas almas se compreendem, doutor. Guarda, Joana, este papel...

JOANA - Por que nhonhô mesmo não guarda?

JORGE - De modo algum. Ele te pertence, manda-o registrar em um tabelião.

DR. LIMA - É prudente.

JORGE - Há muito tempo, doutor, que tencionava realizar este pensamento. Mas tinha tomado algum dinheiro com hipoteca...

DR. LIMA - Com hipoteca.!... Sobre Joana?

JOANA - Que mal fazia?

JORGE - Conheço que fui imprudente, mas a necessidade urgia.

DR. LIMA - Não o censuro, Jorge! O senhor não sabia...

JORGE - O que, doutor?

DR. LIMA - Não sabia... Quanto esses empréstimos são perigosos!...

JORGE - Felizmente já não sou devedor... Nem ao homem que me emprestou... Nem à minha consciência que me ordenava desse a Joana essa pequena prova da estima que lhe tenho. Resta-me ainda uma divida... Divida de amizade e gratidão que nunca poderei pagar.

DR. LIMA - A ela!... Por certo que nunca!

JOANA - A meu senhor!... A mim não. (Batem.)

CENA V

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Os mesmos e GOMES

JOANA - Sr. Gomes!

JORGE - Tenha a bondade de entrar.

GOMES - Desculpe se o incomodo, meu vizinho!

JORGE - Ao contrário, dá-me muito prazer... Por que não se senta?

DR. LIMA (a JOANA) - Agora podes ficar tranqüila! Terei forças de calar-me.

JOANA - Meu senhor... Não toque nisto... agora.

DR. LIMA - Que tem?... Não nos ouvem.

JOANA - Fale mais baixo!... Pelo amor de Deus!

JORGE (a GOMES) - Hoje me pareceu incomodado?

GOMES - Estou bom!

JORGE - Mas ainda o acho pálido.

GOMES - Não é nada!

JORGE - Ainda bem! Quero apresentar-lhe a um amigo que chegou-nos hoje de repente... Devo-lhe mais que a existência, devo-lhe a educação.

GOMES - Como?... Perdão! estava distraído!... Que dizia?

JORGE - Que desejava apresentar-lhe um amigo.

GOMES - Ah! Com muito gosto.

JORGE - Dr. Lima!... O senhor estimará fazer o conhecimento de uma pessoa que todos respeitam pela sua honradez... O Sr. Gomes... Empregado público.

DR. LIMA - Estimo muito!... Um médico pobre, sem clínica, que esteve cinco anos fora do seu país, de pouco presta, mas pode contar...

GOMES - Obrigado, Sr. doutor. (A JORGE) Porém eu desejava falar-lhe em particular.

JORGE - Por que não disse?...

DR. LIMA - Neste caso eu me retiro.

GOMES - Não é preciso! Não! Eu voltarei depois.

JORGE - Para que ter esse trabalho?... O doutor pode entrar um momento.

DR. LIMA - Decerto! Vou ver a casa. Anda, Joana. Vem mostrar-me os teus arranjos.

CENA VI

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GOMES e JORGE

GOMES - Não incomode seu amigo. Voltarei depois.

JORGE - Ora, Sr. Gomes, não é incômodo. Estou à sua disposição.

GOMES - É verdade que o negócio de que lhe pretendia falar é urgente... mas...

JORGE - Pois então, não há necessidade de adiá-lo. GOMES - Talvez o senhor estranhe... O passo é impróprio, eu conheço...

JORGE - Fale com franqueza.

GOMES - Não! Temo abusar... Agradeço-lhe a sua atenção... Outra vez conversaremos. Hoje mesmo... Logo mais.

JORGE - O Sr. Gomes tem alguma coisa que o inquieta; creia que se estiver. nas minhas mãos servi-lo...

GOMES - É engano seu!... Não tenho nada.

JORGE - Talvez algum embaraço... Sim! Isto não depende de nós... Pode acontecer a qualquer... De repente precisamos de algum... dinheiro...

GOMES - Sr. Jorge! Não vim pedir-lhe dinheiro emprestado! Não é meu costume.

JORGE - Perdão, Sr. Gomes! Não tive intenção de ofendê-lo. Estimo-o e respeito-o muito...

GOMES - Faço justiça às suas intenções... Mas creia... Se me visse reduzido a essas circunstâncias preferiria morrer de fome a tirar esmolas.

JORGE - A palavra é dura! Recorrer a um amigo não é mendigar.

GOMES - Não; mas pedir quando não se pode e não se espera pagar... é mais que mendigar.... É abusar da confiança; é roubar. Bem vê que não seria capaz.

JORGE - Mas o Sr. Gomes não está nessas circunstâncias.

GOMES - Não devo tomar-lhe o tempo com os meus negócios. O objeto sobre que desejava falar-lhe... é muito diferente.

JORGE - Pois eu o escuto.

GOMES - Não! Preciso refletir ainda.

JORGE - Mas não poderei saber?...

GOMES - É escusado... Permita-me!

JORGE - Como quiser.

GOMES - Passe bem!

CENA VII

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JORGE, DR. LIMA e JOANA

DR. LIMA - Já foi o seu amigo?

JORGE - Já, doutor.

DR. LIMA - Examinou-o bem?... Ele tem alguma coisa. Não está no seu estado normal.

JORGE - Assim me pareceu.

DR. LIMA - Aconselhe-lhe que se trate.

JORGE - Hei de procurá-lo daqui a pouco. É nosso vizinho; mora no primeiro andar... Julgo que tem sofrido desarranjos nos seus negócios.

JOANA - Iaiá D. Elisa me disse, nhonhô, que ele sempre foi assim triste.

DR. ~ - Quem é iaiá D. Elisa?

JOANA - É a filha do Sr. Gomes.

DR. LIMA - Bonita?

JOANA Como nhonhô! Parece que nasceram um para o outro.

DR. LIMA - Ah! Temos romance?

JORGE - Qual, doutor!... São idéias de Joana.

DR. LIMA - Havemos de conversar a este respeito. Corri a casa. Está bem acomodado.... Tem o que é preciso para um moço solteiro.

JOANA - Oh! Ainda falta muita coisa! Mas há de vir com o tempo.

DR. LIMA - E graças aos teus cuidados. Mas não te esqueças, Joana! Vai aprontar o quarto do doutor.

JOANA - Sr. doutor fica morando aqui?

JORGE - Então!

DR. LIMA - Já tomei um quarto no Hotel da Europa.

JORGE - Como, doutor?... Não esperava.

DR. LIMA - Desculpe, meu amigo! Tenho os meus hábitos. Já estou velho. Não quero nem incomodá-lo, nem incomodar-me.

JORGE - Ao menos há de jantar conosco...

DR. LIMA - Hoje não é possível.

JORGE - Ora! Não o deixo sair. Lembre-se que dia é hoje.

DR. LIMA - Já me disse. É o dia de seus anos.

JORGE - E o da sua chegada!... Mas pertence também a Joana.

DR. LIMA - É verdade.

JORGE (a JOANA) - Vai! Olha que o doutor chega da Europa onde se cozinha perfeitamente. Hás de deitar três talheres.

JOANA - Nhonhô espera mais alguém?

JORGE - Quantos somos nós?

JOANA - Nhonhô!... Logo não vê!... Joana sentar-se na mesa com seu senhor!... Credo!

JORGE - Já te disse, Joana!... Aqui não há nem senhor, nem escrava... Se me tornas a falar assim, ralho contigo.

JOANA - Será a primeira vez.

JORGE - E quem terá a culpa?... Anda! Quem desembarca precisa jantar cedo.

DR. LIMA - Mas, decididamente, Jorge, não posso.

JORGE - Sério, doutor?

DR. LIMA - Se lhe recuso isto, é que tenho motivo forte.

JORGE - Neste caso não insisto. (Escreve.)

DR. LIMA - Outro dia! Breve... Hoje deitarás apenas dois talheres, Joana; um para Jorge e outro para ti.

JOANA - Não lembre mais isto, meu senhor!

JORGE - Não acha que deve ser assim?

DR. LIMA - Decerto. (Baixo a JOANA) Senão, fico.

JOANA - Está bom... Será como Vm. quiser.

DR. LIMA - E no jantar hão de beber duas saúdes.

JORGE - À sua, doutor.

DR. LIMA - À minha sim, mas em primeiro lugar à de sua mãe.

JORGE - E à de Joana.

DR. LIMA - Também!

JORGE - Joana, escuta. Permite, doutor?

DR. LIMA - Pois não!

JORGE - Leve esta carta a D. Elisa.

JOANA - A iaiá?... Dê cá, nhonhô.

JORGE Não!... Melhor é que eu não lhe escreva.

JOANA - Que tem isso agora?

JORGE - Ela pode ofender-se!... Desce e procura saber que tem, seu pai.

JOANA - Sim, nhonhô!... Vou já.

JORGE - Não te demores!

JOANA - Meu senhor doutor ainda fica?

DR. LIMA - Não. Também vou.

JORGE - Espere um momento.

JOANA - Sr. doutor tem que fazer, nhonhô.

JORGE - Vai, Joana.

DR. LIMA - Adeus. Basta de maçada.

CENA VIII

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DR. LIMA e JORGE

JORGE - Que pressa é essa, doutor? Sente-se.

DR. LIMA - Teremos muitas ocasiões de conversar.

JORGE - Sem dúvida; mas estou impaciente por saber de sua boca o nome de minha mãe.

DR. LIMA - De... sua mãe?

JORGE - Sim, doutor.

DR. LIMA Também eu o ignoro, Jorge.

JORGE - Mas, doutor, eu fui criado em sua casa. Devo-lhe a educação..

DR. LIMA Pela última vez lhe digo, Jorge... Nada me deve... Nada absolutamente!

JORGE - Ora, doutor!...

DR. LIMA - Dou-lhe minha palavra, e sabe que nunca a dou debalde.

JORGE - Creio, doutor.

DR. LIMA - Pois dou-lhe minha palavra que nunca despendi um real com a sua educação... Quando o quisesse, não podia... Sou pobre!

JORGE - Mas então quem pagava as despesas que eu fazia?

DR. LIMA - Sua mãe.

JORGE - E a ocultam de mim!

DR. LIMA - Não a conheci... Escute, Jorge. Todo o segredo do seu nascimento é este.

JORGE - Fale, doutor.

DR. LIMA - Uma noite fui chamado a toda a pressa para ver meu amigo Soares...

JORGE - Meu pai!

DR. LIMA - Quando cheguei, seu pai já estava moribundo. Apenas me viu, estendeu-me a mão, balbuciando estas palavras: "Meu filho... sua mãe..." E expirou.

JORGE - E nada mais?

DR. LIMA - Nada mais. Trouxe-o para minha casa, onde Joana o criou.

JORGE - Joana; a única herança de meu pai!

DR. LIMA - A única!... É verdade.

JORGE - Também ela ignora!... Mas doutor, não me disse como esses suprimentos se faziam.

DR. LIMA - De uma maneira muito simples. Quando o senhor precisava de roupa, livros ou qualquer objeto, vinham trazê-lo à casa.

JORGE - Quem?

DR. LIMA - Caixeiros... alfaiates...

JORGE - E nunca lhe disseram?

DR. LIMA - Se eles não sabiam?

JORGE - Assim estou condenado a ignorar sempre o nome de minha mãe.

DR. LIMA - Não se ocupe com isto!... Algum dia, quando menos esperar, há de saber. Continue a portar-se como homem de bem, e deixe o mais à Providência.

JORGE - Mas é triste, doutor.

DR. LIMA - Quem sabe?... Quantas vezes esse mistério não é uma felicidade.

JORGE - Não o percebo.

DR. LIMA - Quantas vezes a revelação não perturba as relações de pessoas que se estimam, e não acarreta sobre elas o opróbrio e a desonra...

JORGE - É possível?... Sacrificar-se o filho ao egoísmo.

DR. LIMA - Não acuse, Jorge.

JORGE - Tem razão, doutor.

DR. LIMA - Já se viram pais que se ocultaram para não envergonhar os filhos do seu nascimento.

JORGE - Não diga isto, doutor!... Um filho nunca se pode envergonhar de seu pai!

DR. LIMA - Mas suponha que ele teve a desgraça de sofrer uma condenação... Que tornou-se indigno...

JORGE - Nem assim! Não há motivo que justifique semelhante ingratidão.

DR. LIMA - Nem um?...

JORGE - Nem um, doutor! Se pois é essa a razão... -

DR. LIMA - Que lembrança!... Foi apenas uma suposição... Já lhe disse quanto sabia.

JORGE - Dá-me a sua palavra?

DR. LIMA - Jorge, não se esteja a afligir com estas coisas, que no fim de contas nenhuma influência têm sobre a vida... Adeus. É tarde.

JORGE - Estou convencido agora de que sabe mais do que disse.

DR. LIMA - Engana-se.

JORGE - Por que não me dá a sua palavra?

DR. LIMA - Não vale a pena.

CENA IX

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Os mesmos e JOANA

JOANA - Ainda está aqui, meu senhor?

DR. LIMA - Esperava que chegasses.

JORGE - Então, Joana?

JOANA - Já fui, nhonhô.

DR. LIMA - Meu amigo, o senhor tem que conversar com Joana. Deixo-o. Até amanhã.

JORGE - Até amanhã, doutor. Hei de procurá-lo.

DR. LIMA - Já lhe disse onde estou... Hotel...

JORGE - Da Europa.

DR. LIMA - Justo! Mas não sei se ficarei lá. É caro para os pobres.

JOANA - Ora, meu senhor andou viajando.

DR. LIMA - É o que tu pensas!... Gasta-se por lá metade do que é necessário para viver aqui modestamente.

JORGE - Reflita no que lhe disse. Faz mal em ocultar-me.

DR. LIMA - Não pense mais nisso.

CENA X

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JORGE e JOANA


JOANA - O que é que o Sr. doutor não quer dizer a nhonhô?

JORGE - Uma coisa que não te interessa.

JOANA - Nhonhô não quer que Joana saiba seus segredos... Não pergunto mais.

JORGE - Não é por isso.

JOANA - Deve ser assim mesmo, nhonhô... Quem é esta pobre mulata para que Vm. lhe conte sua vida!

JORGE - Está bom, Joana! Eu te digo... Perguntei ao doutor quem era minha mãe.

JOANA - Ah! E ele?...

JORGE - Respondeu o mesmo que tu. Mas que soubeste de Elisa?

JOANA - De iaiá D. Elisa...

JORGE - Já não te lembras?

JOANA - Lembro, lembro, nhonhô!... Ela está muito triste; porém não quis dizer porquê.

JORGE - E seu pai?

JOANA - Sr. Gomes saiu. Iaiá perguntou se Vm. estava em casa... Talvez ela queira falar com nhonhô.

JORGE - Vou vê-la.

JOANA - Vá, nhonhô. Como ela há de ficar contente! JORGE - Estás com as tuas idéias.

JOANA - Pois então, nhonhô!... Aonde é que se viu um parzinho mais igual.

JORGE - Achas que sim?

JOANA - E não sou eu só!... Quando nhonhô descer, cerra a porta. Eu vou enxaguar uma roupa lá dentro, pode alguém entrar.

CENA XI

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JORGE e ELTSA

JORGE - Elisa!

ELISA - Não me leve a mal, Sr. Jorge.

JORGE - O que, Elisa?

ELISA - Este passo que dei... Se soubesse!

JORGE - Conte-me!... Que sucedeu a seu pai?

ELISA - Uma desgraça!... Ele não esteve aqui?

JORGE - Há pouco... bastante perturbado... E não me disse o motivo por que me procurava.

ELISA - Faltou-lhe a coragem... Meu pobre pai!

JORGE - O que foi?... A que vinha ele?

ELISA - Vinha... Vinha pedir-lhe emprestado... Oh! como lhe custou!

JORGE - Mas... por que repeliu o oferecimento que lhe fiz...

ELISA - Teve vergonha de aceitá-lo... E, entretanto, era para salvar a sua vida!...

JORGE - A vida de seu pai! Como, meu Deus!... Elisa! explique-me o que se passa...

ELISA - Estou tão aflita... Nem posso falar... Desculpe, Sr. Jorge!...

JORGE - Descanse um pouco!

ELISA - Não! desço já. Não devo me demorar aqui!

JORGE - Tem receio... Não está em sua casa? Esqueceu-se!

ELISA - Se não tivesse tanta confiança no senhor, subiria aqui?... morreria antes. Veria morrer meu pai! Mas não teria ânimo...

JORGE - Diga-me... O que houve?

ELISA - Meu pai vendeu tudo quanto tinha para pagar as suas dívidas...

JORGE - Sossegue! Não lhe faltará o necessário.

ELISA - Oh! se fosse isto!... Eu posso trabalhar... Mas uma coisa horrível, uma calúnia... Dizem que meu pai falsificou uma letra!

JORGE - Ah!

ELISA - Meu pai, o homem mais honrado...

JORGE - Incapaz de semelhante ação.

ELISA - Teme ser condenado... Diz que não pode resistir à vergonha... Quer matar-se!

JORGE - Que loucura!

ELISA - Mas ele o fará! Olhe!

JORGE - O que é isto, Elisa?

ELISA - Veneno, Sr. Jorge... Veneno que meu pai trazia consigo, porque há muitos dias essa idéia o persegue.

JORGE - Dê-me este vidro. Eu falarei a seu pai.

ELISA - Não lhe fale, não!... Ele se irritaria... sem mudar de tenção. Já supliquei de joelhos!

JORGE - Então confessou-lhe.

ELISA - Tudo... E disse-me que se não tivesse força para lutar contra a desgraça, ainda aí ficaria bastante... para mim!

JORGE - Cale-se, Elisa.

ELISA - "É a única herança de teu pai" - me disse ele chorando.

JORGE - Está louco!...

ELISA -- Não, Sr. Jorge! Ele tem razão! Devemos morrer juntos!

JORGE - Havemos de viver juntos, Elisa. Porque juro que salvarei seu pai. Mas preciso vê-lo.

ELISA - Não lhe diga que lhe contei...

JORGE - Como saberei as circunstâncias do fato que lhe imputam?

ELISA - Ele mesmo nada sabe... senão que um homem O procurou há pouco e ameaçou-o de entregar a letra falsificada à polícia, se lhe não pagasse hoje às cinco horas da tarde!

JORGE - Em quanto monta essa letra?

ELISA - Em 500$OOO.

JORGE - E paga ela, seu pai está salvo?

ELISA - Da desonra... e da morte... sim!

JORGE - Não tenho agora essa quantia... Mas prometo arranjá-la, Elisa.

ELISA - Não, não consinto, Sr. Jorge! Não era isso que lhe vinha pedir...

JORGE - Qualquer estranho o faria para salvar a vida de seu

ELISA - Eu não lhe devia ter dito!... Mas a idéia de ver morrer meu pai!

JORGE - Elisa!... Repila essa idéia!... Confie em Deus!

ELISA - Em Deus e no senhor!... Quem tenho eu mais na terra, além de meu pai?

JORGE - Preciso sair... Daqui a uma hora voltarei! Hei de salvá-lo!

ELISA - Vou com essa esperança!...

CENA XII

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JORGE e JOANA


JORGE - Quinhentos mil-réis!...

JOANA - O que é, nhonhô?

JORGE - Deixa-me!...

JOANA - Meu Deus!... Perdão!... Que lhe fiz eu, nhonhô?

JORGE - Nada.

JOANA - Contaram-lhe alguma coisa!... Não acredite!...

JORGE - Em que?

JOANA - Não acredite no que lhe disseram.

JORGE - E tu sabes o que me disseram?

JOANA - Não!... não sei... Mas não é verdade!... Eu lhe juro, nhonhô.

JORGE - Não te entendo, Joana! Perdeste a cabeça?

JOANA - Mas... Que tem nhonhô então?

JORGE - Estou desesperado!

JOANA - Por quê?

JORGE - Preciso de dinheiro... e não sei como hei de obtê-lo. (Sai.)

JOANA - Ah!