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Mãe (José de Alencar)/III

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Em casa de JORGE. A mesma sala.

CENA PRIMEIRA

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JORGE e JOANA

JORGE - O doutor não veio?...

JOANA - Depois que nhonhô saiu?... Não!

JORGE - Já não sei o que faça!

JOANA - Nhonhô não achou o dinheiro de que precisa?

JORGE - Qual!... Fui ao doutor, não estava... Deixei-lhe uma carta. Procurei um homem que me costumava emprestar às vezes... Exige penhor... Que posso eu dar?... Só tenho esta mobília!

JOANA - Mas a casa há de ficar sem trastes?

JORGE - Que remédio, Joana!... Prometeu vir daqui a pouco avaliar... Quanto poderão valer essas cadeiras?... Uma bagatela... cem mil-réis?

JOANA - Valem muito mais!...

JORGE - O meu relógio deu-me apenas cinqüenta!

JOANA - Nhonhô foi empenhar o seu relógio?...

JORGE - Que havia de fazer?

JOANA - Jesus!... Que pena!... Mas Sr. doutor já há de ter recebido a carta... Não deve tardar por aí.

JORGE - É a minha única esperança.

JOANA - Enquanto ele não chega, venha jantar, nhonhô; são mais de três horas.

JORGE - Não quero jantar agora, Joana... Estou fatigado... inquieto... Depois.

JOANA - Almoçou tão pouco!

JORGE - Almocei como de costume. Não tenho disposição.

JOANA - Nhonhô não se agasta se eu lhe perguntar uma coisa?...

JORGE - Podes perguntar.

JOANA - Não é só para saber, não... É que talvez Joana possa remediar... Esse dinheiro de que nhonhô precisa para que é?

JORGE - Se o segredo me pertencesse, eu to diria.

JOANA - Ah! É um segredo... Mas precisa mesmo?...

JORGE - Daria metade da minha vida para obtê-lo.

JOANA - Pois então, nhonhô, fique descansado! Tudo se há de arranjar.

JORGE - Como, Joana?... Por que meio?

CENA II

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Os mesmos e DR. LIMA

JORGE - Ah! É o doutor...

JOANA - Ele mesmo!...

DR. LIMA - Apenas recebi a sua carta, meti-me num tílburi e aqui estou. Que temos?

JORGE - Creia, doutor, que só uma circunstância extraordinária me obrigaria a recorrer à sua amizade.

DR. LIMA - Nada de preâmbulos, meu amigo. Eu o conheço. Em que lhe posso servir?

JORGE - Preciso, doutor...

DR. LIMA - De quê? Não se vexe!

JORGE - Talvez repare...

DR. LIMA - Precisa de dinheiro... Não é?

JORGE - É verdade.

DR. LIMA - De quanto?

JORGE - De quinhentos mil-réis... Reconheço que é uma quantia avultada.

DR. LIMA - Até aí chegam as minhas forças. Amanhã lhos trarei.

JORGE - Amanhã?

DR. LIMA - Apenas tire o meu fato da alfândega.

JOANA - Ora, bravo... Está tudo arranjado. Eu bem sabia que meu senhor Dr. Lima era um amigo de mão cheia.

JORGE - Mas eu preciso para hoje às quatro horas sem falta.

DR. LIMA - Eis o que é impossível. Três e dez... A alfândega está fechada... os meus papéis estão na mala... A ninguém conheço... Entretanto vou tentar.

JORGE - Inda mais incômodo!... Com efeito, o senhor deve fazer bem triste idéia de mim!

DR. LIMA - Jorge!... Não me ofenda!

JORGE - Parece que o estava esperando para importuná-lo... Mas quando souber o motivo me desculpará.

DR. LIMA - Não quero que mo declare; sei que é honroso, e isto basta-me.

JORGE - Muito obrigado!

DR. LIMA - Não percamos tempo. Se não estiver aqui às quatro horas, é que nada consegui.

CENA III

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JORGE e JOANA

JORGE - Está acabado!... Morrerei também!

JOANA - Nhonhô! Não diga isso!... Há de ter esse dinheiro.

JORGE A última esperança foi-se!

JOANA - Ainda não, nhonhô! Não é de quinhentos mil-réis que precisa?

JORGE - Onde irei eu achá-los?

JOANA - Mas... sua mulata assim mesmo velha, ainda vale mais do que isso.

JORGE - Que queres dizer, Joana?

JOANA - Nhonhô não me deu este papel?... Eu não careço dele!

JORGE - A tua carta!... Estás louca?

JOANA - Ouça, nhonhô...

JORGE - Não quero ouvir nada.

JOANA - Mas nhonhô prometeu dar esse dinheiro.

JORGE - Prometi.

JOANA - Então! Há de faltar à sua palavra... E falar em morrer...

JORGE - Queres que para evitar um mal, cometa um crime?... Que roube a liberdade que te dei?...

JOANA - Nhonhô não rouba nada!... Eu é que não quero... Não pedi!...

JORGE - Que importa?... O que dei não me pertence.

JOANA - Pois eu não aceito! Veja...

JORGE - Que vais fazer?

JOANA - Nhonhô não há de obrigar... Não sou forra!... Não quero ser!... Não quero!... Sou escrava de meu senhor!... E ele não há de padecer necessidades!... Tinha que ver agora uma mulher em casa sem fazer nada, sem prestar para coisa alguma... E meu nhonhô triste e agoniado.

JORGE - Não recebo o teu sacrifício. É escusado. Depois, de que me serviria isto?

JOANA - Mas vem cá, nhonhô... Vm. não disse esta manhã que há muito tempo me queria forrar?

JORGE - E disse a verdade.

JOANA - Quem duvida?... Mas não forrou porque tinha pedido um dinheiro emprestado com... Não sei como se chama.

JORGE - Com hipoteca?

JOANA - Isso mesmo!... Pois que custa nhonhô pedir outra vez esse dinheiro emprestado?

JORGE - Tu já não és minha escrava.

JOANA - O que sou eu então!... Nhonhô não me quer mais... Não presto para nada... Paciência!

JORGE - Estás forra.

JOANA - Mas eu rasguei o papel.

JORGE - É indiferente. Eu o escrevi.

JOANA - Que tinha que fizesse isto? Amanhã, Sr. Dr. Lima trazia o dinheiro, e estava tudo direito.

JORGE - Vê quem está batendo. Deve ser o Peixoto.

JOANA - Mas então, nhonhô?

JORGE - Abre a porta.

CENA 1V

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Os mesmos e ELISA

JOANA - Iaiá D. Elisa!

ELISA - Sr. Jorge. (JOANA afasta-se.)

JORGE - Nada obtive ainda, Elisa.

ELISA - Meu Deus!... Ele já me perguntou pelo vidro!... Eu lhe respondi... Nem sei o que lhe respondi!... São mais de três horas...

JORGE - Não desespere, Elisa! Ainda temos tempo. Vá fazer-lhe companhia. Não o deixe.

ELISA - Oh! se as minhas lágrimas o salvassem!

JORGE - Em último caso, se nada conseguir, irei ter com ele... Não o deixarei realizar o projeto que medita.

ELISA - Mas ficará desonrado... Acusado de falsificador, será demitido... Cuida que resistirá?

JORGE - Procuremos salvar-lhe a honra... Se não for possível, de duas desgraças a menor... a que ainda pode ser reparada!

ELISA - Conto com o senhor!... Não nos abandone, Sr. Jorge.

JORGE - Vá descansada! Talvez mais cedo do que pensa eu possa levar-lhe uma boa notícia!... Se houver alguma coisa de novo, venha me dizer!.

JOANA - Que tem iaiá que está tão triste?

ELISA - Logo te direi, Joana.

JOANA - Sua mulata de nada serve, mas...

ELISA - Sei quanto és boa! Porém não me podes valer.

JOANA - Quem sabe, iaiá?

CENA V

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JORGE e JOANA

JORGE - Joana!... Aceito o sacrifício que me fazes!.

JOANA - Qual sacrifício!... Isso é o que nhonhô devia ter feito logo. Já estava livre de cuidados.

JORGE - Não o aceitaria nunca se não fosse para o fim que é... Para salvar a vida de um homem... de um pai!

JOANA - Do Sr. Gomes?

JORGE - Sim, do pai de Elisa.

JOANA - Por isso é que iaiá está com os olhos vermelhos de chorar!... Pois nhonhô sabia e recusava!...

JORGE - Nem imaginas quanto me custa!... Há muito tempo não tenho uma tão grande satisfação como a que senti hoje dando-te a liberdade, Joana! Nunca o dinheiro ganho pelo trabalho honesto me inspirou tão nobre e tão justo orgulho!... E destruir agora a minha obra!... Ah! Elisa não sabe que fel me fazer tragar as suas lágrimas!

JOANA - Está bom, nhonhô, não esteja triste!'... Tudo vai se arranjar... daqui a uma semana, se tanto, que festa não há de haver nesta casa!

JORGE - Se eu já tiver restituído o que hoje confias de mim com tanta generosidade. Antes disso juro que não gastarei senão o que for absolutamente necessário para viver.

JOANA - E por que agora nhonhô há de se privar do que precisar?

JORGE - O devedor que assim não procede, rouba ao seu credor. E se houve dívida sagrada no mundo é esta que vou contrair contigo.

JOANA - Não, vejo nada de maior.

JORGE - Aumentas o sacrifício, diminuindo-lhe o valor.

JOANA - Nhonhô hoje não está bom, não! Tão cheio de partes!...

JORGE - Será o doutor?

CENA VI

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Os mesmos e PEIXOTO

PEIXOTO - Com licença!

JORGE - Ah!... Faz obséquio de sentar-se?

PEIXOTO - Tardei um pouco. Tive que fazer.

JOANA - É o homem dos trastes, nhonhô?

JORGE - E o doutor nada!

JOANA - Não achou.

PEIXOTO - Vamos a isso! Falou-me na sua mobília. É esta?

JORGE - Sim, senhor. Tenho também alguns trastes na varanda.

PEIXOTO - Jacarandá... Mais de meio uso.

JOANA - Quase nova, meu senhor...

PEIXOTO - Tem alguns dois anos de serviço.

JOANA - Jesus!... Nem dois meses!

PEIXOTO - Então foi comprada em leilão. Não há que fiar agora. Imaginem trastes velhos por novos... Lixa e verniz... Não custa.

JORGE - Mas quanto dá o senhor?

PEIXOTO - Por isto que aqui está... Último preço oitenta mil-réis. Não vale mais.

JORGE - Oitenta só?

PEIXOTO - Só. E não é pouco.

JOANA - Ora, meu senhor! Mais do que isto custou o sofá.

PEIXOTO - Pode ser. Não dou mais.

JORGE - E pela minha cama?... É de mogno maciço.

PEIXOTO - Vejamos. (Entra na alcova.)

JOANA - Mas nhonhô há de ficar sem a sua cama? Isso não tem jeito nenhum.

JORGE - Comprarei outra depois.

JOANA - Melhor é fazer o que lhe disse, nhonhô.

JORGE - Deixa ver... Talvez não seja preciso.

PEIXOTO - A cama e a mobília da sala... Fica tudo por cento e vinte mil-réis. Tem mais alguma coisa?

JOANA - Tem, sim, meu senhor!... Tem esta escrava! Quanto acha Vm. que ela vale?

PEIXOTO - Ah! Isto é outro caso!... (A JORGE) Quer renovar a hipoteca sobre ela?

JOANA - Quer... Ele quer... Pois já não disse?...

PEIXOTO - Não ouvi! Então fica sem efeito o negócio dos trastes?

JOANA - Fica, meu senhor!... Não é, nhonhô?

JORGE - Não sei.

PEIXOTO - Em que ficamos?

JOANA - Devem ser quatro horas!

JORGE - Quatro horas!?... Que decide, senhor?

PEIXOTO - Sobre a mulata?

JORGE - Sim!

PEIXOTO - Dou-lhe sobre ela trezentos mil-réis.

JORGE - Como, senhor?!... Não lhe estava hipotecada por seiscentos mil-réis que acabei de pagar hoje?

PEIXOTO - Foi em outro tempo! Hoje está velha.

JOANA - Eu velha, meu senhor!... Mal tenho trinta e sete anos... Depois não sou qualquer mulatinha como essas preguiçosas que não entendem de outra coisa senão de estar na janela!... Eu sei pentear e vestir uma moça que faz gosto. Melhor do que muita mucama de fama.

PEIXOTO - Não tenho filhas.

JOANA - Mas eu também sei coser, lavar, engomar. Que pensa meu senhor?... Onde me vê, não é por me gabar... Dou conta do arranjo de uma casa... Varro, arrumo tudo, cozinho, ponho a mesa; e ainda me fica tempo para fazer as minhas costuras, remendar os panos de prato, arcar as panelas... Pergunte a nhonhô!

JORGE - Joana, eu te peço!

JOANA - Olhe, meu senhor! Dê quinhentos mil-réis, que não se há de arrepender!... Dê sem susto, porque o mais tarde, o mais tarde, amanhã meu nhonhô vai lhe pagar.

PEIXOTO - Não posso. Tu não estás segura...

JOANA - Eu não preciso, meu senhor!... Prometo a Vm. que não morro!... Não é capaz!... Tenho vida para cem anos. Vm. não conhece esta mulata, não. Seguro... Isto é para a gente de hoje!...

JORGE - Escuta, Joana.

JOANA - Nhonhô espere... Então Vm. não dá os quinhentos mil-réis?

PEIXOTO - Veremos: veremos! Conforme as condições que teu senhor aceitar.

JOANA - Logo vi que Vm. havia de chegar... Porque olhe!... Também por menos, estava bem livre!... - O que é, nhonhô?

JORGE (a meia voz) - Deixa-nos a sós Quero tratar com este homem.

JOANA - E que tem que eu esteja aqui, nhonhô?

JORGE - Em tua presença nunca poderei.

JOANA - Pois eu vou. Não se arrependa, nhonhô. D. Iaiá Elisa está esperando... Coitadinha!...

CENA VII

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JORGE e PEIXOTO

PEIXOTO - Está disposto a efetuar o negócio?

JORGE - Por quinhentos mil-réis dados imediatamente.

PEIXOTO - Já vejo que nada fazemos.

JORGE - O senhor supõe que estou, como certas pessoas com quem trata, procurando rodeios para tirar-lhe a maior soma possível. Engana-se.

PEIXOTO - Não suponho tal.

JORGE - Tenho urgente necessidade de quinhentos mil-réis, hoje, dentro de meia hora. Desde que não é possível obter esta quantia, o negócio não me convém. E não sei, Sr. Peixoto, se deva agradecer-lhe.

PEIXOTO - Então precisa de quinhentos mil-réis?

JORGE - Justos.

PEIXOTO - Pois não seja esta a dificuldade. Dou-lhe esse dinheiro sobre a escrava.

JORGE - Já?

PEIXOTO - Não o trago aqui, mas vou buscá-lo... num instante... Isto é, eu ainda não examinei a peça... mas podemos terminar isto.

JORGE - Que é preciso fazer?... Ir a um tabelião...

PEIXOTO - Levaria muito tempo. Distribuir a escritura... pagar selo... Nem amanhã se concluiria.

JORGE - Mas eu preciso hoje.

PEIXOTO - Há meio de remediar tudo. Faça um penhor!

JORGE - Para que o senhor a leve?

PEIXOTO - Um simples escrito, e está o negócio arranjado.

JORGE - Isso de maneira alguma! Pensei que era o contrato que já fizemos! Joana hipotecada ao senhor, mas sempre em minha casa!.

PEIXOTO - Deste modo nem é possível, nem eu lhe daria os quinhentos mil-réis. Devo lucrar os serviços.

JORGE - Por algumas horas... Pois amanhã...

PEIXOTO - Lá isso não sei... Pode ser por meses.

JORGE - Não tenho ânimo de separá-la de mim, de tirá-la de casa!

PEIXOTO - Pois resolva-se!... Vou ao escritório buscar o dinheiro. Daqui a cinco minutos venho saber a resposta.

JORGE - É escusado... Para que se incomodar?

PEIXOTO - Tenho um negócio para estas bandas. Até já.

CENA VIII

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JORGE e JOANA

JOANA - Arranjou-se tudo, nhonhô! Não foi?

JORGE - Não fiz nada; estou na mesma.

JOANA - O homem teimou em não dar os quinhentos mil-réis?

JORGE - Dava: mas com uma condição que não quis... que não devia aceitar.

JOANA - Qual, nhonhô?

JORGE - Não entendes de negócio. Tanto faz dizer-te como não.

JOANA - É verdade que Joana não estudou como os homens que vão à escola! Mas... Nhonhô não faça pouco... Eu sei muita coisa. Pode ser que lembre uma idéia boa.

JORGE - Não fazemos nada, Joana. O melhor é resignar-me.

JOANA - Então nhonhô deixa morrer o pai de iaiá D. Elisa?

JORGE - Ele há de atender-me!... É impossível que um homem razoável persista em fazer semelhante loucura.

JOANA - Mas Vm. prometeu a iaiá... E quando ela vier que lhe há de responder?

JORGE - O quê?... Que esta vida não vale as lágrimas que custa!

JOANA - Nhonhô!... Não se lembre disso!

JORGE - Que hei de fazer, Joana?

JOANA - Se não tivesse deixado o homem sair.

JORGE - Ele ficou de voltar para saber a resposta.

JOANA - Que resposta?

JORGE - Da condição que me propôs... Queria que te desse em penhor.

JOANA - Que eu fosse para a casa dele?

JORGE - Bem vês que não devia aceitar!

JOANA - Nhonhô precisa do dinheiro... Aceite!... Mas é por hoje só, não é?

JORGE - Unicamente!... Amanhã, apenas o doutor chegasse, iria te buscar.

JOANA - Pois então!... Uma tarde depressa se passa!... Nhonhô não faltará ao que prometeu.

JORGE - Elisa vai agradecer-me o que só deverá a til Assim é este mundo.

JOANA - Eu não faço nada por iaiá D. Elisa... É por meu senhor...

JORGE - O Peixoto está se demorando! Se não voltar!

JOANA - Eu vou chamá-lo.

JORGE - Espera!... Às vezes tenho vontade que ele não venha.

JOANA - Ah! se o Sr. doutor aparece por aí!

JORGE - Não ouves subir?

JOANA - Vou ver.

CENA IX

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Os mesmos e PEIXOTO

PEIXOTO - Já sei que resolveu-se?

JORGE - As circunstâncias me forçaram.

PEIXOTO - Ora bem! Fechemos o negócio. Vem cá, mulata.

JOANA - Meu senhor!

PEIXOTO - Deixa lá ver os pés!

JOANA - Meu senhor está desconfiado comigo! Eu não tenho doença!... Se nunca senti me doer a cabeça, até hoje, graças a Deus!

PEIXOTO - Tá, tá, tá, cantigas!... Vamos!... Não te faças de boa!

JOANA - Ninguém ainda me tratou assim, meu senhor!

PEIXOTO - Anda lá!... Mostra os dentes!

JOANA - Todos sãos!

PEIXOTO - É o que esta gente tem que mete inveja! Se fosse possível trocar!... E não tens marca?

JORGE - Senhor! Acabe com isto!... Não posso mais ver semelhante cena.

PEIXÓTO - Quem dá o seu dinheiro, Sr. Jorge, deve saber o que compra... Se não lhe agrada...

JORGE - Está no seu direito; quem lhe contesta?... Mas terminemos com isto de uma vez.

PEIXOTO - Não desejo outra coisa. Então tens as tais marcas, hein?...

JOANA - Fui mucama de minha senhora moça, que me tratava como sua irmã dela. Saí para o poder de nhonhô, que até hoje nunca me disse "Joana, estou zangado contigo!"

PEIXOTO - Tens um bom senhor, já vejo!

JORGE - Perdoa, Joana, o por que te fiz passar!

JOANA - Não foi nada, nhonhô.

PEIXOTO - Muito bem! Aqui está o papel.

JORGE - O senhor enganou-se!... Seiscentos mil-réis?

PEIXOTO - É difícil enganar-me. São mesmo seiscentos mil-réis.

JORGE - Mas eu pedi-lhe quinhentos mil-réis.

PEIXOTO - Justo! É o que há de receber. Os cem são de juros.

JORGE - Por um dia?... Pois amanhã...

PEIXOTO - Não empresto por um dia! Se quiser pagar amanhã, nada tenho com isso.

JORGE - Mas receberá.

PEIXOTO - Certamente!

JORGE - E ganhará em um só dia 20%.

PEIXOTO - São os riscos do negócio... Posso esperar anos sem receber.

JORGE - Nesse caso os serviços.

PEIXOTO - Ainda não sei quais são. Demais, tenho alimentação, vestuário, botica, médico, etc.

JORGE - Enfim!... Já não é tempo de recuar. (Vai à mesa assinar o papel.)

JOANA - Meu senhor, não cuide que vou lhe fazer despesas. Como um quase nada...

PEIXOTO - Que interesse tens tu no negócio! Parece que estás morrendo por te ver livre de teu senhor.

JOANA - Está ouvindo, nhonhô?

JORGE - Mas, senhor!... Isto é um papel de venda.

JOANA - De venda?!... Nhonhô me vender!

PEIXOTO. - Questão de palavras!... Não vê que tem a condição de retro?

JORGE - O senhor falou-me em penhor... Venda! Nunca teria consentido.

PEIXOTO - É uma e a mesma coisa. No penhor, se o senhor não me pagar, a escrava é minha. Na venda a retro ela volta ao seu poder, logo que me pague.

JORGE - Em todo o caso prefiro o penhor.

PEIXOTO - Meu caro senhor, tenho tido todas as condescendências possíveis; mas V. Sa. não está habituado a tratar certos negócios, de modo que nunca chegaremos a um acordo.

JORGE - Porque o senhor não diz francamente o que exige.

PEIXOTO - Essa é boa! Quer mais franqueza?... É aceitar ou largar! Não obrigo!

JOANA - Mas se nhonhô lhe pagar amanhã, fica meu senhor outra vez?

PEIXOTO - Que dúvida!... Tem um mês para pagar! JOANA - Então, nhonhô... Vem dar no mesmo.

JORGE - Não!... não posso assinar semelhante papel! PEIXOTO - Bem! o dito por não dito!... Outra vez fará o obséquio de não me incomodar. Perdi com o senhor a manhã inteira... sem o menor proveito. (ELISA aparece.)

CENA X

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Os mesmos e ELISA

JORGE - Ah! (assina) Tome, senhor. O dinheiro? (Corre a Elisa.)

PEIXOTO - Ei-lo. - Oh! Quem é esta moça?

JOANA - É a filha do Sr. Gomes.

PEIXOTO - Hum!... Percebo!

JORGE - Não se importe que a vejam aqui! Se a caluniarem, eu farei calar o infame!

ELISA - Nem sei já o que faço!...

JORGE (a PEIXOTO) - O dinheiro?

PEIXOTO - Aqui o tem. Faça o favor de contar.

ELISA - Este homem!...

JORGE - Que tem?

ELISA - É o que ameaçou meu pai!

JORGE - Devia ter adivinhado!

ELISA - Vendo-o entrar, julguei que já vinha... Fiquei fora de mim... Subi! Há que tempo estou ali sem ânimo de entrar.

JORGE - Finalmente seu pai está salvo! Tome, Elisa!...

ELISA - Oh! não, Sr. Jorge!

JORGE - Tem vergonha de aceitá-los da mão de seu marido?...

ELISA - Não era melhor que o senhor mesmo entregasse a meu pai?

JORGÉ - Ele aceitaria mais facilmente de sua filha!

ELISA - Mas eu é que não posso!... Não devo...

JORGE - Espere!... (A PEIXOTO) O senhor tem eu seu poder uma letra do Sr. Gomes?

PEIXOTO - Uma letra de quinhentos mil-réis? Sim, meu senhor!

JORGE - Está paga! Dê-me esta letra!

PEIXOTO - Então era esta a necessidade urgente? (Dá a letra.) Muito podem uns bonitos olhos!

JORGE - Insolente!... Respeite nesta senhora minha mulher.

PEIXOTO - Perdão! Não sabia.

JORGE - (a ELISA) - Agora não deve ter escrúpulos. É um papel sem valor.

ELISA - Sem valor, Jorge!... Vale a honra e a vida de meu pai; vale a nossa felicidade.

JORGE - Vá depressa sossegar seu pai... Ah! Agradeça a Joana, Elisa.

ELISA - Por quê? Ela também se interessou por mim?

JORGE - Depois lhe direi porquê.

JOANA Eu só peço a Deus que faça meu nhonhô e iaiá D. Elisa muito, muito felizes!

(Durante a cena seguinte vêem-se JORGE e ELISA na porta.)

CENA XI

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PEIXOTO e JOANA

PEIXOTO - Não tens alguma roupa?... Ou é só a do corpo?

JOANA - Tenho muita roupa, graças a Deus; é o que não me falta. Nhonhô me dá mais do que eu preciso.

PEIXOTO - Pois então vai arrumar a trouxa. E anda com isso.

JOANA - Por uma noite?... Nhonhô amanhã vai me buscar.

PEIXOTO - Todos eles dizem o mesmo... Amanhã, amanhã... e o tal amanhã dura um ano.

JOANA - Que diz, meu senhor?... Um ano!... Oh! meu nhonhô não é como esses. Vm. há de ver... Ele quer bem à sua mulata.

PEIXOTO - Vamos. Despacha-te. Vai sempre ver a roupa. Não digas que te engano.

JOANA - Não, meu senhor. Se eu ficar lá, o que Deus não há de permitir, não... eu virei buscar os meus trapinhos. Agora!... Se eu os levasse... Era como se não tivesse mais de voltar para o poder de meu nhonhô!... E Joana não poderia!

PEIXOTO - Bem! Eu cá mandarei.

CENA XII

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Os mesmos e JORGE

JORGE - Desculpe se os fiz esperar.

PEIXOTO - Não manda mais nada ao seu serviço?

JORGE - Tenho apenas uma súplica a fazer-lhe.

PEIXOTO - Que diremos?

JORGE - Durante o tempo que esta... que Joana vai estar em sua casa.

PEIXOTO - Que é minha escrava, quer o senhor dizer.

JORGE - Peço-lhe que a trate com doçura. Está habituada a viver comigo, mais como uma companheira do que...

PEIXOTO - Escusa pedir-me isto. Sou bom senhor. O caso é saberem levar-me. Anda, mulata! Vamos.

JOANA - Já?!... Me deixe dizer adeus a meu nhonhô.

PEIXOTO - Pois dize lá o teu adeus... E nada de choramingas.

JOANA - Meu nhonhô, adeus! Sua escrava vai-se embora!

JORGE - Joana!

JOANA - Não chore, nhonhô. É por hoje só. Não é?

JORGE - Eu te juro.

JOANA - Oh! Se não fosse, nhonhô me deixava ir?

JORGE - Decerto que não!

JOANA - Mas se o Sr. doutor não vier amanhã?

JORGE - Se ele faltar, meu Deus!

JOANA - Não há de faltar, não. Sr. doutor é homem de palavra...

JORGE - E quando por qualquer acaso sucedesse... Ainda tenho forças para trabalhar.

JOANA - Oh! meu nhonhô! Não é por mim que tenho medo de ficar lá. Deus é testemunha... Mas quem há de tratar de meu nhonhô quando sua Joana não estiver aqui?... Quem há de preparar tudo para que não lhe falte nada? E se nhonhô cair doente?!... Meu Jesus!... Que dor de coração só de pensar nisso!

JORGE - Consola-te, Joana. Algumas horas depressa se passam.

JOANA - É assim mesmo, nhonhô... Mas que saudades que Joana vai ter... Ela que nunca saiu de junto de seu senhor... nem um dia... Que nunca se deitou sem lhe tomar a bênção! Nhonhô também há de ter saudades de sua escrava?...

JORGE - Perguntas, Joana.

JOANA - Oh! Eu sei que nhonhô há de ter!... Mas não fique triste, não.

JORGE - Joana, não me faças perder a coragem... Deste modo não terei ânimo.

JOANA - Está bom, nhonhô. Olhe: Joana não chora mais! Está se rindo. Amanhã ela estará aqui outra vez, servindo seu nhonhô... E iaiá D. Elisa, Sr. Gomes... todos contentes!

PEIXOTO - Se continuamos assim, não saio daqui hoje! É uma choradeira que nunca mais se acaba.

JORGE - Não zombe destas lágrimas, senhor! Joana me criou! Nunca nos separamos. É toda a minha família! Ela e um amigo que tive hoje a felicidade de ver. Amor de mãe que não conheci, amor de irmã que não tive, tudo concentrei nela!

PEIXOTO - Mas é preciso que terminemos com isto.

JORGE - É justo... Joana! Adeus! Até amanhã!

JOANA - Até amanhã!... Sim, meu nhonhô!... Mas se eu lhe pedisse...

JORGE - O quê? Dize...

JOANA - Não... Para quê... Incomodar o nhonhô?

JORGE - Pode... O quê?

JOANA - Nhonhô à tardinha... Quando se recolhesses... Podia passar...

JORGE - Compreendo... Eu irei ver-te, minha boa Joana.

JOANA - Que alegria que Joana terá!

PEIXOTO - Não posso mais. Psiu! Mulata! segue-me!

JORGE - Não lhe fale assim!

PEIXOTO - Ora, essa! É minha escrava. Posso fazer dela o que quiser.

JORGE - Usurário!... Não me obrigue a fazer uma loucura!

JOANA - Nhonhô, não se altere.... Vamos, meu senhor. Estou pronta.

PEIXOTO - Passa! Anda...

JOANA - Nhonhô!... Lembre-se de sua escrava.

JORGE - Meu Deus!