Macunaíma/1928/IX

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IX

CARTA PRÁS ICAMIABAS

 
Ás mui queridas súbditas nossas, Senhoras Amazonas.
Trinta de Maio de Mil Novecentos e Vinte e Seis, em São Paulo.

Senhoras:

Não pouco vos surpreenderá, por certo, o enderêço e a literatura desta missiva. Cumpre-nos, entretanto, iniciar estas linhas de saudade e muito amor, com desagradavel nova. É bem verdade que na boa cidade de São Paulo — a maior do universo, no dizer de seus prolixos habitantes — não sois conhecidas por “icamiabas”, voz espúria, sinão que pelo apelativo de Amazonas; e de vós, se afirma, cavalgardes ginetes beligeros e virdes da Hélade clássica; e assim sois chamadas. Muito nos pesou a nós, Imperator vosso, tais dislates da erudição, porém heis de convir conosco que, assim, ficais mais heroicas e mais conspicuas, tocadas por essa plátina respeitavel da tradição e da pureza antiga.

Mas não devemos esperdiçarmos vosso tempo osso tempo fero, e muito menos conturbarmos vosso entendimento, com notícias de mau calibre; passemos pois, imediato, ao relato dos nossos feitos por cá.

Nem cinco sóis eram passados que de vós nos partíramos, quando a mais temerosa desdita pesou sobre Nós. Por uma bela noite dos idos de maio do ano translato, perdíamos a muiraquitã; que outrém grafara muraquitã, e, alguns doutos, ciosos de etimologias esdrúxulas, ortografam muyrakitan e até mesmo muraqué-itã, não sorriais! Haveis de saber que esse vocábulo, tão familiar ás vossas trompas de Eustáquio, é quasi desconhecido por aqui. Por estas paragens mui civis, os guerreiros chamam-se polícias, grilos, guardas-cívicas, boxistas, legalistas, mazorqueiros etc.; sendo que alguns desses termos são neologismos absurdos — bagaço nefando com que os desleixados e petimetres conspurcam o bom falar lusitano. Mas não nos sobra já vagar para discretearmos “sub tegmine fagi”, sobre a língua portuguesa, também chamada lusitana. O que vos interessará mais, por sem dúvida, é saberdes que os guerreiros de cá não buscam mavórticas damas para o enlace epitalámico; mas antes as preferem dóceis e facilmente trocáveis por pequeninas e voláteis folhas de papel a que o vulgo chamará dinheiro — o “curriculum vitae” da Civilização, a que hoje fazemos ponto de honra em pertencermos. Assim a palavra muiraquitã, que fere já os ouvidos latinos do vosso Imperador, é desconhecida dos guerreiros, e de todos em geral que por estas partes respiram. Apenas alguns “sujeitos de importáncia em virtude e letras”, como já dizia o bom velhinho e clássico frei Luís de Souza, citado pelo doutor Rui Barbosa, ainda sobre as muiraquitãs projectam as suas luzes, para aquilatá-las de medíocre valia, originárias da Ásia, e não de vossos dedos, violentos no polir.

Estávamos ainda abatido por termos perdido a nossa muiraquitã, em forma de sáurio, quando talvez por algum influxo metapsíquico, ou, qui lo sá, provocado por algum libido saùdoso, como explica o sábio tudesco, doutor Sigmund Freud (lede Froide), se nos deparou em sonho um arcanjo maravilhoso. Por ele soubemos que o talismã perdido, estava nas dilectas mãos do doutor Venceslau Pietro Pietra, súbdito do Vice-Reinado do Peru, e de origem francamente florentina, como os Cavalcântis de Pernambuco. E como o doutor demorasse na ilustre cidade anchietana, sem demora nos partimos para cá, em busca do velocino roubado. As nossas relações actuais com o doutor Venceslau são as mais lisonjeiras possíveis; e sem dúvida mui para breve recebereis a grata nova de que hemos reavido o talismã; e por ela vos pediremos alvíssaras.

Porque, súbditas dilectas, é incontestável que Nós, Imperator vosso, nos achamos em precária condição. O tesouro que d’aí trouxemos, foi-nos de mister convertê-lo na moeda corrente do país; e tal conversão muito nos há dificultado o mantenimento, devido ás oscilações do Cámbio e á baixa do cacau.

Sabereis mais que as donas de cá não se derribam á pauladas, nem brincam por brincar, gratuitamente, senão que á chuvas do vil metal, repuxos brasonados de champagne, e uns monstros comestíveis, a que, vulgarmente dão o nome de lagostas. E que monstros encantados, senhoras Amazonas!!! Duma carapaça polida e sobrosada, feita a modo de casco de nau, saem braços, tentáculos e cauda remígeros, de muitos feitios; de modo que o pesado engenho, deposto num prato de porcelana de Sêvres, se nos antoja qual velejante trirreme a bordeisjar água de Nilo, trazendo no bojo o corpo inestimável de Cleópatra.

Ponde tento na acentuação deste vocábulo, senhoras Amazonas, pois muito nos pesara não preferísseis conosco, essa pronúncia, condizente com a lição dos clássicos, á pronúncia Cleopátra, dicção mais moderna; e que alguns vocabulistas levianamente subscrevem, sem que se apercebam de que é ganga desprezível, que nos trazem, com o enxurro de França, os galiparlas de má morte.

Pois é com esse delicado monstro, vencedor dos mais delicados véus paladinos, que as donas de cá tombam nos leitos nupciais. Assim haveis de compreender de que alvíssaras falàmos; porque as lagostas são caríssimas, caríssimas súbditas, e algumas hemos nós adquiridas por sessenta contos e mais; o que, convertido em nossa moeda tradicional, alcança a vultosa soma de oitenta milhões de bagos de cacau… Bem podereis conceber, pois, quanto hemos já gasto; e que já estamos carecido do vil metal, para brincar com tais difíceis donas. Bem quiséramos impormos á nossa ardida chama uma abstinéncia, penosa embora, para vos pouparmos despesas; porêm que ánimo forte não cedera ante os encantos e galanteios de tão agradáveis pastoras!

Andam elas vestidas de rutilantes joias e panos finíssimos, que lhes acentuam o donaire do porte, e mal encobrem as graças, que, a de nenhuma outra cedem pelo formoso do torneado e pelo tom. São sempre alvíssimas as donas de cá; e tais e tantas habilidades demonstram no brincar, que enumerá-las, aqui, seria fastiento porventura; e, certamente, quebraria os mandamentos de discrição, que em relação de Imperator para súbditas se requer. Que beldades! Que elegáncia! Que cachet! Que dégagé flamífero, ignívomo, devorador!! Só pensamos nelas, muito embora não nos descuidemos, relapso, da nossa muiraquitã.

Nós, nos parece, ilustres Amazonas, que assaz ganharíeis em aprenderdes com elas, as condescendéncias, os brincos e passes do Amor. Deixaríeis então a vossa orgulhosa e solitária Lei, por mais amáveis mesteres, em que o Beijo sublima, as Volúpias encandecem, e se demonstra gloriosa, “urbi et orbe”, a subtil força do Odor di Fêmia, como escrevem os italianos.

E já que nos detivemos neste delicado assunto, não no abandonaremos sem mais alguns reparos, que vos poderão ser úteis. As donas de São Paulo, sobre serem mui formosas e sábias, não se contentam com os dons e exceléncia que a Natura lhe concedeu; assaz se preocupam elas de si mesmas; e não puderam acabarem consigo, que não mandassem vir de todas as partes do globo, tudo o que de mais sublimado e gentil acrisolou a ciéncia fescenina, digo, feminina das civilizações avitas. Assim é que chamaram mestras da velha Europa, e sobretudo de França, e com elas aprenderam a passarem o tempo de maneira bem diversa da vossa. Ora se alimpam, e gastam horas nesse delicado mester, ora encantam os convívios teatrais da sociedade, ora não fazem coisa alguma; e nesses trabalhos passam elas o dia tão entretecidas e afanosas que, em chegando a noute, mal lhes sobra vagar para brincarem e presto se entregam nos braços de Orfeu, como se diz. Mas heis de saber, senhoras minhas, que por cá dia e noute divergem singularmente do vosso horário belígero; o dia começa quando para vós é o pino dele, e a noute, quando estais no quarto sono vosso, que, por derradeiro, é o mais reparador.

Tudo isso as donas paulistanas aprenderam com as mestras de França; e mais o polimento das unhas e crescimento delas, bem como aliás “horresco referens”, das demais partes córneas dos seus companheiros legais. Deixai passe esta florida ironia!

E muito há que vos diga ainda sobre o jeito com que cortam as comas, de tal maneira gracioso e viril, que mais se assemelham elas a éfebos e Antínous, de perversa memória, que a matronas de tão directa progénie latina. Todavia, convireis conosco, no desacerto de longas tranças por cá, si atenderdes ao que mais atrás ficou dito; pois que os doutores de São Paulo não derribam as suas requestadas pela força, senão que a troco de oiro e de locustas, as ditas comas são de somenos; acrescendo ainda que assim se amainam os males, que tais comas acarretam, de serem moradia e pasto habitual de insectos mui daninhos, como entre vós se dá.

Pois não contentes de terem aprendido de França, as subtilezas e passes da galantaria á Luís XV, as donas paulistanas importam das regiões mais inhóspitas o que lhes acrescente ao sabor, tais como pezinhos nipónicos, rubis da índia, desenvolturas norte-americanas; e muitas outras sabedorias e tesoiros internacionais.

Já agora vos falaremos ainda, bem que por alto, dum nitente armento de senhoras, originárias da Polónia, que aqui demoram e imperam generosamente. São elas mui alentadas no porte e mais numerosas que as areias do mar oceano. Como vós, senhoras Amazonas, tais damas formam um gineceu; estando os homens que em suas casas delas habitam, reduzidos escravos e condenados ao vil ofício de servirem. E por isso não se lhes chamam homens, sinão que á voz espúria de garçons respondem; e são assaz polidos e silentes, e sempre do mesmo indumento gravebundo trajam.

Vivem essas damas encasteladas num mesmo local, a que chamam por cá de quarteirão, e mesmo de pensões ou “zona estragada”; sobrelevando notar que a derradeira destas expressões não caberia, por indina, nesta notícia sobre as coisas de São Paulo, não fora o nosso anseio de sermos exacto e conhecedor. Porém si, como vós, formam essas queridas senhoras um clan de mulheres, muito de vós se apartam no físico, no género de vida e nos ideais. Assim vos diremos que vivem á noute, e se não dão aos afazeres de Marte nem queimam o destro seio, mas a Mercúrio cortejam tão somente; e quanto aos seios, deixam-nos evolverem, á feição de gigantescos e flácidos pomos, que, si lhes não acrescentam ao donaire, servem para numerosos e árduos trabalhos de excelente virtude e prodigiosa excitação.

Ainda lhes difere o físico, tanto ou quanto monstruoso, bem que de amável monstruosidade, por terem elas o cérebro nas partes pudendas, e, como tão bem se diz em linguagem madrigalesca, o coração nas mãos.

Falam numerosas e mui rápidas línguas; são viajadas e educadíssimas; sempre todas obedientes por igual, embora ricamente díspares entre si, quais loiras, quais morenas, quais fossem maigres, quais rotundas; e de tal sorte abundantes no número e diversidade, que muito nos preocupa a razão, o serem todas e tantas, originais dum país somente. Acresce ainda que a todas se lhes dão o excitante, embora injusto, epíteto de “francesas”. A nossa desconfiança é que essas damas não se originaram todas da Polónia, porém que faltam á verdade, e são iberas, itálicas, germánicas, turcas, argentinas, peruanas, e de todas as outras partes férteis de um e outro hemisfério.

Muito estimaríamos que compartilhásseis da nossa desconfiança, senhoras Amazonas; e que convidasseis também algumas dessas damas para demorarem nas vossas terras e Império nosso, por que aprendais com elas um moderno e mais rendoso género de vida, que muito fará avultar os tesoiros do vosso Imperador. E mesmo, si não quiserdes largar mão da vossa solitária Lei, sempre a existéncia de algumas centenas dessas damas entre vós, muito nos facilitará o “modus in rebus”, quando for do nosso retorno ao Império do Mato Virgem, cujo este nome, aliás, proporíamos se mudasse para Império da Mata Virgem, mais condizente com a lição dos clássicos.

Todavia para terminar negócio tão principal, hemos por bem advertir-vos dum perigo que essa importação acarretara, si não aceitásseis alguns doutores possantes nos limites do Estado, enquanto dele estivermos apartado. Com serem essas damas mui fogosas e livres; bem pudera pesar-lhes em demasia o sequestro inconsequente em que viveis, e, por não perderem elas as sciéncias e segredos que lhes dão o pão, bem poderiam ir ao extremo de utilizarem-se das bestas-feras, dos bogios, dos tapires e dos solertes candirus. E muito mais ainda nos pesaria á consciéncia e sentimento nobre do dever, que vós, súbditas nossas, aprendásseis com elas certas abusões, tal como foi com as companheiras da gentil declamadora Safô na ilha rósea de Lesbos — vícios esses que não suportam crítica á luz das possibilidades humanas, e muito menos o escalpelo da rígida e sã moral.

Como vedes, assaz hemos aproveitado esta demora na ilustre terra bandeirante, e si não descuidàmos do nosso talismã, por certo que não poupàmos esforços nem vil metal, por aprendermos as coisas mais principais desta eviterna civilização latina, por que iniciemos, quando for do nosso retorno ao Mato Virgem, uma série de milhoramentos, que, muito nos facilitarão a existéncia, e mais espalhem nossa prosápia de nação culta entre as mais cultas do Universo. E por isso agora vos diremos algo sobre esta nobre cidade, pois que pretendemos construir uma igual nos vossos domínios e Império nosso.

É São Paulo construída sobre sete colinas, á feição tradicional de Roma, a cidade cesárea, “capita” da Latinidade de que provimos; e beija-lhe os pés a grácil e inquieta linfa do Tiêtê. As águas são magníficas, os ares tão amenos quanto os de Aquisgrana ou de Anverres, e a área tão a eles igual em salubridade e abundáncia, que bem se poderá afirmar, ao modo fino dos cronistas, que de três AAA se gera espontaneamente a fauna urbana.

Cidade é belíssima, e grato o seu convívio. Toda cortada de ruas habilmente estreitas e tomadas por estátuas e lampiões graciosíssimos e de rara escultura; tudo diminuindo com astúcia o espaço de forma tal, que nessas artérias não cabe a população. Assim se obtém o efeito dum grande acúmulo de gentes, cuja estimativa pode ser aumentada á vontade, o que é propício ás eleições que são invenção dos inimitáveis mineiros; ao mesmo tempo que os edis dispõem de largo assunto com que ganhem dias honrados e a admiração de todos, com surtos de eloquéncia do mais puro estilo e sublimado lavor.

As ditas artérias são todas recamadas de ricocheteantes papeizinhos e velívolas cascas de fruitos; e em principal duma finíssima poeira, e mui dançarina, em que se despargem diariamente mil e uma espécimens de vorazes macróbios, que dizimam a população. Por essa forma resolveram, os nossos maiores, o problema da circulação; pois que tais insectos devoram as mesquinhas vidas da ralé e impedem o acúmulo de desocupados e operários; e assim se conservam sempre as gentes em número igual. E não contentes com essa poeira ser erguida pelo andar dos pedestrianistas e por urrantes máquinas a que chamam “automóveis” e “eléctricos” (empregam alguns a palavra Bond, voz espúria, vinda certamente do inglês), contractaram os diligentes edis, uns antropoides, monstros hipocentáureos azulegos e monótonos, a que congloba o título de Limpeza Pública; que “per amica silencia lunae”, quando cessa o movimento e o pó descansa inócuo, saem das suas mansões, e, com os rabos girantes a modo de vassouras cilíndricas, puxadas por muares, soerguem do asfalto a poeira e tiram os insectos do sono, e os concitam á actividade com largos gestos e grita formidanda. Estes afazeres nocturnos são discretamente conduzidos por pequeninas luzes, dispostas de longe em longe, de maneira a permanecer quasi total a escuridade, não perturbem elas os trabalhos de malfeitores e ladrões.

A cópia destes se nos afigura realmente excessiva; e temos que são a única usança que não se coaduna com nosso temperamento, ordeiro e pacífico de seu natural. Porém, longe de nós qualquer reproche aos administradores de São Paulo, pois sabemos muito bem que aos valerosos paulistas, são aprazíveis tais malfeitores e suas artes. São os paulistas gente ardida e avalentoada, e muito afeita ás agruras da guerra. Vivem em combates singulares e colectivos, todos armados da cabeça aos pés; assim assaz numerosos são os distúrbios por cá, em que, não raro, tombam na arena da luta, centenas de milhares de heróis, chamados bandeirantes.

Pelo mesmo motivo São Paulo está dotada de mui aguerrida e vultuosa Polícia, que habita palácios brancos de custosa engenharia. A essa Polícia compete ainda equilibrar os excessos da riqueza pública, por se não desvalorizar o oiro incontável da Nação; e tal diligéncia emprega nesse afã, que, por todos os lados devora os dinheiros nacionais, quer em paradas e roupagens luzidas, quer em ginásticas da recomendável Eugénia, que inda não tivemos o prazer de conhecermos; quer finalmente atacando os incautos burgueses que regressam do seu teatro, do seu cinema, ou dão a sua volta de automóvel pelos vergéis amenos que circundam a capital. A essa Polícia ainda lhe compete divertir a classe das criadinhas paulistanas; e para seu lustre se diga que o faz com jornaleiro préstimo, em parques, construídos “ad hoc”, tais como o parque de Dom Pedro Segundo e o Jardim da Luz. E quando o numerário dessa Polícia avulta, são os seus homens enviados para as rechãs longínquas e menos férteis da pátria, para serem devorados por súcias de gigantes antropófagos, que infestam a nossa geografia, na inglória tarefa de ruir por terra Governos honestos; e de pleno gosto e assentimento geral da população, como se descrimina das urnas e dos ágapes governamentais. Esses mazorqueiros pegam nos polícias, assam-nos e comem-nos ao jeito alemão; e as ossadas caídas na terra maninha são excelente adubo de futuros cafezais.

Assim tão bem organizados vivem e prosperam os paulistas na mais perfeita ordem e progresso; e lhes não é escasso o tempo para construírem generosos hospitais, atraindo para cá todos os leprosos sul-americanos, mineiros, paraibanos, peruanos, bolivianos, chilenos, paraguaios, que, antes de ir morarem nesses lindíssimos leprosários, e serem servidos por donas de duvidosa e decadente beldade — sempre donas! — animam as estradas do Estado e as ruas da capital, em garridas comitivas equestres ou em maratonas soberbas que são o orgulho de nossa raça desportiva, em cujo conspeito pulsa o sangue das heroicas bigas e quadrigas latinas!

Porém, senhoras minhas! Inda tanto nos sobra, por este grandioso país, de doenças e insectos por cuidar!… Tudo vai num descalabro sem comedimento, e estamos corroídos pelo morbo e pelos miriápodes! Em breve seremos novamente uma colónia da Inglaterra ou da América do Norte!… Por isso e para eterna lembrança destes paulistas, que são a única gente útil do país, e por isso chamados de locomotivas, nos demos ao trabalho de metrificarmos um dístico, em que se encerram os segredos de tanta desgraça:


{{smaller|POUCA SAÚDE E MUITA SAÚVA,
OS MALES DO BRASIL SÃO.}} Este dístico é que houvemos por bem escrevermos no livro de Visitantes Ilustres do Instituto Butantã, quando foi da nossa visita a esse estabelecimento famoso na Europa. Moram os paulistanos em palácios alterosos de cinquenta, cem e mais andares, a que, nas épocas da procriação, invadem umas nuvens de mosquitos pernilongos, de vária espécie, muito ao gosto dos nativos, mordendo os homens e as senhoras com tanta propriedade nos seus distintivos, que não precisam eles e elas das cáusticas urtigas para as massagens de excitação, tal como entre selvícolas é de uso. Os pernilongos se encarregam dessa faina; e obram tais milagres que, nos bairros miseráveis, surge anualmente uma incontável multidão de rapazes e raparigas bulhentos, a que chamamos “italianinhos”; destinados a alimentarem as fábricas dos áureos potentados, e a servirem, escravos, o descanso aromático dos Cresos. Estes e outros multimilionários é que ergueram em torno da urbs as doze mil fábricas de seda, e no recesso dela os famosos Cafés maiores do mundo, todos de obra de talha em jacarandá folhado de oiro, com embutidos de salsas tartarugas. E o Palácio do Governo é todo de oiro, á feição dos da Rainha do Adriático; e, em carruagens de prata, forradas de peles finíssimas, o Presidente, que mantém muitas esposas, passeia, ao cair das tardes, sorrindo com vagar. De outras e muitas grandezas vos poderíamos ilustrar, senhoras Amazonas, não fora perlongar demasiado esta epístola; todavia, com afirmar-vos que esta é, por sem dúvida, a mais bela cidade terráquea, muito hemos feito em favor destes homens de prol. Mas cair-nos-íam as faces, si ocultáramos no siléncio, uma curiosidade original deste povo. Ora sabereis que a sua riqueza de expressão intelectual é tão prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra. Assim chegado a estas plagas hospitalares, nos demos ao trabalho de bem nos inteirarmos da etnologia da terra, e dentre muita surpresa e assombro que se nos deparou, por certo não foi das menores tal originalidade linguística. Nas conversas utilizam-se os paulistanos dum linguajar bárbaro e multifário, crasso de feição e impuro na vernaculidade, mas que não deixa de ter o seu sabor e força nas apóstrofes, e também nas vozes do brincar. Destas e daquelas nos inteiràmos, solícito; e nos será grata empresa vôlas ensinarmos aí chegado. Mas si de tal desprezível língua se utilizam na conversação os naturais desta terra, logo que tomam da pena, se despojam de tanta asperidade, e surge o Homem Latino, de Lineu, exprimindo-se numa outra linguagem, mui próxima da vergiliana, no dizer dum panegirista, meigo idioma, que, com imperecível galhardia, se intitula: língua de Camões! De tal originalidade e riqueza vos há-de ser grato ter sciéncia, e mais ainda vos espantareis com saberdes, que á grande e quasi total maioria, nem essas duas línguas bastam, senão que se enriquecem do mais lídimo italiano, por mais musical e gracioso, e que por todos os recantos da urbs é versado. De tudo nos inteiràmos satisfactoriamente, graças aos deuses; e muitas horas hemos ganho, discreteando sobre o z do termo Brazil e a questão do pronome “se”. Outrossim, hemos adquirido muitos livros bilíngues, chamados “burros”, e o dicionário Pequeno Larousse; e já estamos em condições de citarmos no original latino muitas frases célebres dos filósofos e os testículos da Bíblia. Enfim, senhoras Amazonas, heis de saber ainda que a estes progressos e luzida civilização, hão elevado esta grande cidade os seus maiores, também chamados de políticos. Com este apelativo se designa uma raça refinadíssima de doutores, tão desconhecidos de vós, que os diríeis monstros. Monstros são na verdade mas na grandiosidade incomparável da audácia, da sapiéncia, da honestidade e da moral; e embora algo com os homens se pareçam, originam-se eles dos reais uirauaçus e muito pouco têm de humanos. Obedecem todos a um imperador, chamado Papai Grande na gíria familiar, e que demora na oceánica cidade do Rio de Janeiro — a mais bela do mundo na opinião de todos os estrangeiros poetas, e que por meus olhos verifiquei. Finalmente, senhoras Amazonas e muito amadas súbditas, assaz hemos sofrido e curtido árduos e constantes pesares, depois que os deveres da nossa posição, nos apartaram do Império do Mato Virgem. Por cá tudo são delícias e venturas, porém nenhum gozo teremos e nenhum descanso, enquanto não rehouvermos o perdido talismã. Hemos por bem repetir entretanto que as nossas relações com o doutor Venceslau são as milhores possíveis; que as negociações estão entaboladas e perfeitamente encaminhadas; e bem poderíeis enviar de antemão as alvíssaras que enunciàmos atrás. Com pouco o vosso abstémio Imperador se contenta; si não puderdes enviar duzentas igaras cheias de bagos de cacau, mandai cem, ou mesmo cinquenta! Recebei a bênção do vosso Imperador e mais saúde e fraternidade. Acatai com respeito e obediéncia estas mal traçadas linhas; e, principalmente, não vos esqueçais das alvíssaras e das polonesas, de que muito hemos mister. Ci guarde a Vossas Excias.