Macunaíma/1928/VIII
VIII
VEI, A SOL
Macunaíma ia seguindo e topou com a árvore Volomã bem alta. Num galho estava um pitiguari que, nem bem enxergou o herói, se desgoelou cantando — “Olha no caminho quem vem! Olha no caminho quem vem!” Macunaíma olhou pra cima com intenção de agradecer mas Volomã estava cheinha de fruta. O herói vinha dando horas de tanta fome e a barriga dele empacou espiando aquelas sapotas sapotilhas sapotis bacuris abricôs mucajás miritis guabijus melancias ariticuns, todas essas frutas.
— Volomã, me dá uma fruta, Macunaíma pediu.
O pau não quis dar. Então o herói gritou duas vezes:
— Boiôiô, boiôiô! quizama quizu!
Caíram todas as frutas e ele comeu bem. Volomã ficou com ódio. Pegou o herói pelos pés e atirou-o pra além da baía de Guanabara numa ilhota deserta, habitada antigamente pela ninfa Alamoa que veio com os holandeses. Macunaíma pendia tanto de fadiga que pegou no sono durante o pulo. Caiu dormindo embaixo duma palmeirinha guairô muito aromada onde um urubu estava encarapitado.
Ora o pássaro careceu de fazer necessidade, fez e o herói ficou escorrendo sujeira de urubu. Já era de-madrugadinha e o tempo estava inteiramente frio. Macunaíma acordou tremendo, todo enlambuzado. Assim mesmo examinou bem a pedra mirim da ilhota pra ver si não havia alguma cova com dinheiro enterrado. Não havia não. Nem a correntinha encantada de prata que indica pro escolhido, tesouro de holandês. Havia só as formigas jaquitaguas ruivinhas.
Então passou Caiuanogue, a estrela-da-manhã. Macunaíma já meio enjoado de tanto viver pediu pra ela que o carregasse pro céu. Caiuanogue foi se chegando porém o herói fedia muito.
— Vá tomar banho! ela fez. E foi-se embora.
Assim nasceu a expressão “Vá tomar banho!” que os brasileiros empregam se referindo a certos imigrantes europeus.
Vinha passando Capei, a Lua. Macunaíma gritou pra ela:
— Sua bênção, dindinha Lua!
— Uhúm... que ela secundou.
Então ele pediu pra Lua que o carregasse pra ilha de Marajó. Capei veio chegando porém Macunaíma estava mesmo fedendo por demais.
— Vá tomar banho! ela fez. E foi-se embora.
E a expressão se fixou definitivamente.
Macunaíma gritou pra Capei que pelo menos desse um foguinho pra ele aquecer.
— Peça no vizinho! ela fez apontando pra Sol que já vinha lá no longe remando pelo paraná guaçu. E foi-se embora.
Macunaíma tremia que mais tremia e o urubu sempre fazendo necessidade em riba dele. Era por causa da pedra ser muito pequetitinha. Vei vinha chegando vermelha e toda molhada de suor. E Vei era a Sol. Foi muito bom pra Macunaíma porque lá em casa ele sempre dera presentinhos de bolo de aipim pra Sol lamber secando.
Vei tomou Macunaíma na jangada que tinha uma vela cor de ferrugem pintada com muruci e fez as três filhas limparem o herói, catarem os carrapatos e examinarem si as unhas dele estavam limpas. E Macunaíma ficou alinhado outra vez. Porém por causa dela estar velha vermelha e tão suando o herói não maliciava que a coroca era mesmo a Sol, a boa da Sol poncho dos pobres. Por isso pediu pra ela que chamasse Vei com seu calor porque ele estava lavadinho bem mas tremendo de tanto frio. Vei era a Sol mesmo e andava matinando fazer Macunaíma genro dela. Só que ainda não podia aquentar ninguém não, porque era cedo por demais, não tinha força. Pra distrair a espera assobiou dum jeito e as três filhas dela fizeram muitos cafunés e cosquinhas no corpo todo do herói.
Ele dava risadas chatas, se espremendo de cócegas e gostando muito. Quando elas paravam pedia mais estorcendo já de antegozo. Vei pôs reparo na sem-vergonhice do herói, teve raiva. Foi ficando sem vontade de tirar fogo do corpo e esquentar ninguém. Então as cunhatãs agarraram na mãe, amarraram bem ela e Macunaíma dando muitos munhecaços na barriga da bruaca saiu que saiu um fogaréu por detrás e todos se aquentaram.
Principiou um calorão que tomou a jangada, se alastrou nas águas e doirou a face limpa do ar. Macunaíma deitado na jangada lagarteava numa quebreira azul. E o silêncio alargando tudo...
— Ai... que preguiça...
O herói suspirou. Se ouvia o murmurejo da onda, só. Veio um enfaro feliz subindo pelo corpo de Macunaíma, era bom... A cunhatã mais moça batia o urucungo que a mãe trouxera da África. Era vasto o paraná e não tinha uma nuvem na gupiara elevada do céu. Macunaíma cruzou as munhecas no alto por detrás fazendo um cabeceiro com as mãos e, enquanto a filha da luz mais velha afastava os mosquitos borrachudos em quantidade, a terceira chinoca com as pontas das tranças fazia estremecer de gosto a barriga do herói. E era se rindo em plena felicidade, parando pra gozar de estrofe em estrofe que ele cantava assim:
Quando eu morrer não me chores,
Deixo a vida sem sodade;
— Mandu sarará,
Tive por pai o desterro,
Por mãe a infelicidade,
— Mandu sarará...
Papai chegou e me disse:
— Não hás de ter um amor!
— Mandu sarará,
Mamãe veio e me botou
Um colar feito de dor,
— Mandu sarará...
Que o tatu prepare a cova
Dos seus dentes desdentados,
— Mandu sarará...
Para o mais desinfeliz
De todos os desgraçados,
— Mandu sarará...
Era bom... O corpo dele relumeava de ouro cinzando nos cristaizinhos do sal e por causa do cheiro da maresia, por causa do remo pachorrento de Vei, e com a barriga assim mexemexendo com cosquinhas de mulher, ah!... Macunaíma gozou do nosso gozo, ah!... “Puxavante! que filha duma... de gostosura, gente!” exclamou. E cerrando os olhos malandros, com a boca rindo num riso moleque safado de vida boa, o herói gostou gostou e adormeceu.
Quando a jacumã de Vei não embalou mais o sono dele Macunaíma acordou. Lá no longe se percebia mais que tudo um arranha-céu cor-de-rosa. A jangada estava abicada na caiçara da maloca sublime do Rio de Janeiro.
Ali mesmo na beira d’água tinha um cerradão comprido cheinho da árvore pau-brasil e com palácios de cor nos dois lados. E o cerradão era a avenida Rio Branco. Aí que mora Vei a Sol com suas três filhas de luz. Vei queria que Macunaíma ficasse genro dela porque afinal das contas ele era um herói e tinha dado tanto bolo de aipim pra ela chupar secando, falou:
— Meu genro: você carece de casar com uma das minhas filhas. O dote que dou pra ti é Oropa França e Bahia. Mas porém você tem de ser fiel e não andar assim brincando com as outras cunhãs por aí.
Macunaíma agradeceu e prometeu que sim jurando pela memória da mãe dele. Então Vei saiu com as três filhas pra fazer o dia no cerradão, ordenando mais uma vez que Macunaíma não saísse da jangada pra não andar brincando com as outras cunhãs por aí. Macunaíma tornou a prometer, jurando outra vez pela mãe.
Nem bem Vei com as três filhas entraram no cerradão que Macunaíma ficou cheio de vontade de ir brincar com uma cunhã. Acendeu um cigarro e a vontade foi subindo. Lá por debaixo das árvores passavam muitas cunhãs cunhé cunhé se mexemexendo com talento e formosura.
— Pois que fogo devore tudo! Macunaíma exclamou. Não sou frouxo agora pra mulher me fazer mal!
E uma luz vasta brilhou no cérebro dele. Se ergueu na jangada e com os braços oscilando por cima da pátria decretou solene:
— POUCA SAÚDE E MUITA SAÚVA, OS MALES DO BRASIL SÃO!
Pulou da jangada no sufragante, foi fazer continência diante da imagem de Santo Antônio que era capitão de regimento e depois deu em cima de todas as cunhãs por aí. Logo topou com uma que fora varina lá na terrinha do compadre chegadinho-chegadinho e inda cheirava no-mais! um fartum bem de peixe. Macunaíma piscou pra ela e os dois vieram na jangada brincar. Fizeram. Bastante eles brincaram. Agora estão se rindo um pro outro.
Quando Vei com suas três filhas chegaram do dia e era a boca-da-noite as moças que vinham na frente encontraram Macunaíma e a portuguesa brincando mais. Então as três filhas de luz se zangaram:
— Então é assim que se faz, herói! Pois nossa mãe Vei não falou pra você não sair da jangada e não ir brincar com as outras cunhãs por aí?!
— Estava muito tristinho! o herói fez.
— Não tem que tristinho nem mané tristinho, herói! Agora que você vai tomar um pito de nossa mãe Vei!
E viraram muito zangadas pra velha:
— Veja, nossa mãe Vei, o que vosso genro fez! Nem bem a gente foi no cerradão que ele escapuliu, deu em cima duma boa, trouxe ela na vossa jangada e brincaram até mais não! Agora estão se rindo um pro outro!
Então a Sol se queimou e ralhou assim:
— Ara ara ara, meus cuidados! Pois não falei pra você não dar em cima de nenhuma cunhã não!... Falei sim! E inda por cima você brinca com ela na jangada minha e agora estão se rindo um pro outro!
— Estava muito tristinho! Macunaíma repetiu.
— Pois si você tivesse me obedecido casava com uma das minhas filhas e havia de ser sempre moço e bonitão. Agora você fica pouco tempo moço talqualmente os outros homens e depois vai ficando mocetudo e sem graça nenhuma.
Macunaíma sentiu vontade de chorar. Suspirou:
— Si eu subesse...
— O “si eu subesse” é santo que nunca não valeu pra ninguém, meus cuidados! Você o que é mas é muito safadinho, isso sim! Não te dou mais nenhuma das minhas três filhas não!
Daí Macunaíma pisou nos calos também:
— Pois nem eu queria nenhuma das três, sabe! Três, diabo fez!
Então Vei com as três filhas foram pedir pouso num hotel e deixaram Macunaíma dormir com a portuga na jangada.
Quando foi ali pela hora antes da madrugada, veio a Sol com as moças pra darem o passeio na baía e encontraram Macunaíma com a portuguesa inda pegados no sono. Vei acordou os dois e fez presente da pedra Vató pra Macunaíma. E a pedra Vató dá fogo quando a gente quer. E lá se foi a Sol com as três filhas de luz.
Macunaíma inda passou esse dia brincando com a varina pela cidade. Quando foi de-noite eles estavam dormindo num banco do Flamengo quando chegou uma assombração medonha. Era Mianiquê-Teibê que vinha pra engolir o herói. Respirava com os dedos, escutava pelo umbigo e tinha os olhos no lugar das mamicas. A boca era duas bocas e estavam escondidas na dobra interior dos dedos dos pés. Macunaíma acordou com o cheiro da assombração e jogou no viado Flamengo fora. Então Mianiquê-Teibê comeu a varina e se foi.
No outro dia Macunaíma não achou mais graça na capital da República. Trocou a pedra Vató por um retrato no jornal e voltou pra taba do igarapé Tietê.