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Macunaíma/1928/XIV

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XIV

A PIOLHENTA DO JIGUÊ

 

No outro dia por causa da machucadura Macunaíma amanheceu com uma grosseira pelo corpo todo. Foram ver e era a erisipa, doença comprida. Os manos trataram dele bem e traziam diariamente pra casa todos êsses remédios pra erisipela que os vizinhos e conhecidos e desconhecidos, todos êsses brasileiros aconselhavam. O heroi passou uma semana de cama. De-noite sonhava sempre com embarcações e a dona da pensão quando vinha de-manhã por amor de saber como ia o heroi dizia sempre que embarcação significava na certa viagem por mar. Depois saía deixando sobre a cama do enfermo o Estado de São Paulo. E o Estado de São Paulo era um jornal. Então Macunaíma gastava o dia lendo todos êsses anuncios de remedios pra erisipa. E eram muitos anuncios!

No fim da semana o heroi já estava descascando bem e foi na cidade buscar sarna pra se coçar. Andou banzando banzando, e muito fatigado por causa da fraqueza parou no parque do Anhangabaú. Chegara bem debaixo do monumento a Carlos Gomes que fôra um musico muito célebre e agora era uma estrelinha do céu. O ruido da fonte murmurejando na tardinha dava pro heroi a visagem das aguas do mar. Macunaíma sentou no parapeito da fonte e assuntou os baguais marinhos de bronze chorando agua. E lá na escureza da gruta por detrás da tropilha presenciou uma luz. Fixou mais e distinguiu uma embarcação muito linda que vinha boiando sobre as águas. “É uma vigilenga” murmurou. Porêm a nau vinha chegando cada vez maior. “É um gaiola” murmurou. Porêm o gaiola vinha chegando tão grande tão! que o herói deu um salto sarapantado e gritou na boca-da-noite ecoada “É um vaticano!” O navio já vinha bem visivel por detrás dos baguais de bronze. Tinha o corte da velocidade no casco de prata e os mastros inclinados pra trás estavam cheios de bandeiras que o vento da correria imprensava entre as laminas de ar. O grito chamara os choferes da esplanada e todos curioseavam o gesto parado do heroi e seguiam o risco do olhar dele batendo na fonte escura.

— Que foi, heroi?

— Olha lá!… Olha o vaticano macota que vem vindo sobre as aguas imensas do mar!

— Adonde!

— Por detrás do cavalo de estibordo!

Então todos viram por detrás do cavalo de estibordo o navio chegando. Já estava bem perto e ia passar entre o cavalo e a parede de pedra, já estava na boca da gruta. E era um navio guassú.

— Não é vaticano não! é o tranzatlantico fazendo viagem por mar! gritou um chofêr japonês que já fizera muita viagem por mar. E era um tranzatlantico enorme. Vinha iluminado, relampeava todo de oiro e prata embandeirado e festeiro. Os oculos das cabinas eram colares no casco e nos cinco deques empoleirados corria música entre a gentama dançando mexida no cururú. A choferada comentava:

— É do Loide!

— Não, é da Hamburgo!

— Vá saindo! ’tou percebendo! então! É il piróscafo Conte Verde em vez!

E era o piróscafo Conte Verde sim. E era a Mãi Dagua que vinha bancando piróscafo pra atentar o herói.

— Gente! adeus, gente! Vou prá Europa que é milhor! Vou em busca de Venceslau Pietro Pietra que é o gigante Piaimã comedor de gente! que o heroi discursava.

E toda a choferada abraçava Macunaíma se despedindo. O vapor estava ali e Macunaíma já pulara no cáis da fonte pra subir a escadinha do piróscafo Conte Verde. Todos os tripulantes na frente da música acenavam chamando Macunaíma e eram marujos forçudos, eram argentinos finissimos e eram tantas donas lindissimas prá gente brincar até enjoar com os balangos das ondas.

— Desce a escadinha, capitão! que o heroi exclamou.

Então o capitão tirou o cocar e executou uma letra no ar. E todos, os marujos os argentinos finissimos e as cunhãs lindissimas pra Macunaíma brincar, todos êsses tripulantes soltaram váias macotas caçoando do heroi enquanto o navio manobrando sem parar dava a popa prá terra e flexava de novo pro fundo da gruta. E todos aqueles tripulantes viraram doentes com erisipa sempre caçoando do heroi. E quando o piróscafo atravessou o estreito entre a parede da gruta e o bagual de bombordo a chaminèzona guspiu uma fumaçada de pernilongos, de borrachudos mosquitos-polvora mutucas maribondos cabas potós moscas-de-ura, todos êsses mosquitos afugentando os motoristas.

O heroi sentado no rebordo da fonte penava todo mordido e com mais erisipa, mais, todo erisipelado. Sentiu frio e veio a febre. Então espantou com um gesto os mosquitos e caminhou prá pensão.

No outro dia Jiguê entrou em casa com uma cunhã, fez ela engolir tres bagos de chumbo pra não ter filho e os dois dormiram na rede. Jiguê tinha se amulherado. Ele era muito valente. Passava o dia limpando a espingarda e afiando a lamparina. A companheira de Jiguê todas as manhãs ia comprar macacheira pros quatro comerem e se chamava Suzí. Porêm Macunaíma que era o namorado da companheira de Jiguê, todos os dias comprava uma lagosta pra ela, punha no fundo do jamachi e por cima esparramava a macacheira pra ninguem não maliciar. Suzí era bem feiticeira. Quando chegava em casa deixava a cesta na saleta e ia dormir pra sonhar. Sonhando ela falava pra Jiguê:

— Jiguê, meu companheiro Jiguê, estou sonhando que tem lagosta por debaixo da macacheira.

Jiguê ia ver e tinha. Todos os dias era assim e Jiguê tendo amanhecido com dor-de-cotovelo desconfiou. Macunaíma percebeu a dor do mano e fez uma mandinga pra ver si passava. Pegou numa cuia e de-noite deixou-a no terraço, rezando manso:

“Agua do céu
Vem nesta cuia,
Paticl vem nesta agua,
Moposêru vem nesta agua,
Sivuoímo vem nesta agua,
Omaispopo vem nesta agua,
Os donos da Agua enxotem a dor-de-corno!
Aracú, Mecumecuri, Paí, que venham nesta agua,
E enxotem a dor-de-corno si o doente beber esta agua.
Em que estão encantados os Donos da Agua!”

Deu pra Jiguê beber no outro dia porêm não surtiu efeito não e o mano andava muito desconfiado.

Quando Suzí se vestia pra ir na feira, assobiava o foxtrote da moda pro namorado ir tambem. O namorado era Macunaíma, ia. A companheira de Jiguê saía e Macunaíma saía atrás. Andavam brincando por aí e quando chegava a hora da volta já não tinha macacheira mais na feira. Pois então Suzí disfarçando ia atrás da casa, sentava no jamachí e puxava uma porção de macacheira de dentro do maissó. Todos comiam muito bem, só Maanape resmungava:

— Caboclo de Taubaté, cavalo pangaré, mulher que mija em pé, libera nós Dominé! e empurrava a comida.

Maanape era feiticeiro. Não queria saber daquela macacheira não e como andava curtindo fome passava o tempo mastigando ipadú pra enganar. De-noite quando Jiguê queria pular na rede a companheira dele principiava gemendo, falando que estava empanzinada de tanto engolir caroço de pitomba. Era só pra Jiguê não brincar com ela. Jiguê teve raiva.

No outro dia ela foi na feira e assobiou o foxtrote da moda. Macunaíma saiu atrás. Jiguê era muito valente. Pegou numa mirassanga enorme e foi devagarinho atrás deles. Procurou procurou e encontrou Suzí com Macunaíma de mãos dadas no jardim da Luz. Já estavam se rindo um pro outro. Jiguê desceu a mirassanga nos dois, levou a companheira prá pensão e deixou o mano fatigado na beira da lagoa entre cisnes.

Do outro dia em diante Jiguê é que fazia as compras deixando a companheira prêsa no quarto. Suzí sem quefazer passava o tempo contrariando a moralidade mas uma feita o santo Anchieta vindo ao mundo passou pela casa dela e por piedade ensinou-a a catar piolhos. Suzí possuia uns cabelos ruivos á la garçonne e sustentava muitos piolhos, muitos! Agora não sonhava mais não que tinha lagosta por debaixo da macaxeira nem não fazia imoralidades. Quando Jiguê partia ela tirava os cabelos e espetando-os no porrete do companheiro, catava piolhos. Mas tinha muitos piolhos, muitos! Então com medo que o companheiro apanhasse ela no trabalho, falou assim:

— Jiguê, meu companheiro Jiguê, quando você volta do mercado bate primeiro na porta, bate todos os dias uma porção de tempo pra mim ficar contente e ir cozinhar a macacheira.

Jiguê falou que sim. Todos os dias ia no mercado comprar macacheira e quando voltava batia demorado na porta. Então a cunhã botava os cabelos na cabeça e ficava esperando Jiguê.

— Suzí, minha companheira Suzí, bati uma porção de vezes na porta, será que você alegrou?

— Muito! ela fez. E foi cozinhar a macacheira.

E todos os dias era assim. Mas tinha muitos piolhos, muitos! É que ela contava os catados um por um e por isso os piolhos aumentavam. Uma feita Jiguê matutou no que ficava fazendo a companheira quando êle ia no mercado e teve vontade de assusta-la, fez. Virou de pernas pro ar e veio andando nas pontas das mãos. Abriu a porta e assustou Suzí. Isso ela gritou botando afobada a cabeleira na cabeça. E os cabelos da testa ficaram no cangote e os cabelos do cangote ficaram na testa escorrendo. Jiguê xingou Suzí de porca e deu nela até escutar alguém subindo a escada. Era Chico vindo de baixo. Então Jiguê parou e foi afiar a bicuda.

No outro dia Macunaíma estava outra vez com vontade de brincar com a companheira de Jiguê. Falou pros manos que ia numa caçada longe porêm não foi não. Comprou duas garrafas de licor de butiá catarinense uma dúzia de sanduíches dois abacaxis de Pernambuco e se amoitou no quartinho. Passado tempo saiu de lá e falou pra Jiguê, mostrando o embrulho:

— Mano Jiguê, no fim de muitas ruas, você indo, tem uma fruteira trilhada. Vi um poder de caça, vá ver!

O mano espiou desconfiado pra êle porêm Macunaíma disfarçou bem:

— Olhe, tem paca tatú cotia… Minto, cotia não enxerguei nenhuma. Paca tatú, cotia não.

Jiguê emprenhava pelas oiças mesmo, foi logo pegando na espingarda e falou:

— Então vou porêm mano jura primeiro que não brinca com minha obrigação.

Macunaíma jurou pela memória da mãi que nem olhava pra Suzí. Então Jiguê tornou a pegar na espingarda-pá e na faca de ponta-tá tatatá e partiu. Macunaíma nem bem Jiguê virou a esquina ajudou Suzí abrindo os embrulhos e botando uma toalha de renda famosa chamada “Ninho de Abelha” cujo papelão fôra roubado em Muriú de Ceará-Mirim pela danada Geracina da Ponta do Mangue. Quando tudo ficou pronto os dois pularam na rede e brincaram. Agora estão se rindo um pro outro. Depois de rirem bastante, Macunaíma falou:

— Desarrolha uma garrafa prá gente beber.

— Sim, ela fez. E beberam a primeira garrafa de licor de butiá que era muito gostoso. Os dois estalaram a lingua e pularam na rede outra feita. Brincaram quanto quiseram. Agora estão se rindo um pro outro.

Jiguê andou legua e meia, foi até no fim das ruas, campeou a fruteira uns pares de vezes, muito tempo, jacaré achou? nem êle! Não tinha fruteira nenhuma e Jiguê voltou campeando sempre por todos os fins das ruas. Afinal chegou subiu no quarto e encontrou mano Macunaíma com a Suzí já rindo. Jiguê teve raiva e deu uma coça na companheira. Agora ela está chorando. Jiguê agarrou o heroi e chegou o porrete com vontade nele. Deu que mais deu até Manuel chegar. Manuel era o criado da pensão, um ilheu. Agora o heroi está fatigado. E Jiguê que vinha padecendo de fome, então comeu as sanduíches os abacaxis e bebeu o licor de butiá.

Os dois sovados passaram a noite se lastimando. No outro dia Jiguê enfarado pegou na sarabatana e saiu pra ver si encontrava a tal de fruteira. Jiguê era muito bobo. Suzí viu êle sair, enxugou os olhos e falou pro namorado:

— Choremos não.

Então Macunaíma desamarrou a cara e se arranjou pra ir falar com mano Maanape. Jiguê de volta na pensão perguntou pra Suzí:

— Onde anda o heroi?

Porêm ela estava zangadissima e principiou assobiando. Então Jiguê agarrou no porrete, se chegou prá companheira e disse muito triste:

— Vai embora, perdição!

D'aí ela sorriu feliz. Catou sem contar todos os piolhos que restavam e eram muitos piolhos, atrelou-os a uma cadeira-de-balanço, sentou nela, os piolhos pularam e Suzí foi pro céu virada na estrêla que pula. É uma zelação.

O heroi nem bem viu Maanape de longe pegou se lastimando. Se atirou nos braços do mano e contou uma historiada bem triste provando que Jiguê não tinha razão nenhuma pra sova-lo tanto. Maanape ficou zangado e foi falar com Jiguê. Mas Jiguê também já vinha pra falar com Maanape. Se encontraram no corredor. Maanape contou pra Jiguê e Jiguê contou pra Maanape. Então êles verificaram que Macunaíma era muito safado e sem caracter. Voltaram pro quarto de Maanape e toparam com o heroi se lastimando. Pra consolar levaram êle passear na máquina automovel.