Macunaíma/1928/XV
XV
MUIRAQUITÃ
No outro dia de manhã nem bem Macunaíma abriu a janela, enxergou um passarinho verde. O heroi ficou satisfeitissimo e inda estava ficando satisfeito quando Maanape entrou no quarto contando que as máquinas jornais anunciavam a volta de Venceslau Pietro Pietra. Então Macunaíma resolveu não ter mais contemplação com o gigante e mata-lo. Saiu da cidade e foi no mato Fulano experimentar fôrça. Campeou legua e meia e afinal topou com uma peroba com a sapopemba do tamanho dum bonde. “Esta serve” êle fez. Enfiou o braço na sapopemba, deu arranco e o pau saiu da terra não deixando nem sinal. “Agora sim que tenho fôrça!” Macunaíma exclamou. Tornou a ficar satisfeito e voltou prá cidade. Porêm não podia nem andar porquê estava cheio de carrapatos. Macunaíma com muita pachorra falou pra êles:
— Ara, carrapatos! vão embora, pessoal! Não devo nada pra vocês não!
Então a carrapatada caiu no chão por encanto e foi-se embora. Carrapato já foi gente que nem nós... Uma feita botou uma vendinha na beira da estrada e fazia muitos negocios porquê não se incomodava de vender fiado. Tanto fiou tanto fiou, tanto brasileiro não pagou que afinal carrapato quebrou e foi posto pra fora da vendinha. Ele agarra tanto na gente porquê está cobrando as contas.
Quando Macunaíma chegou da cidade já era noite fechada e êle foi logo tocaiar a casa do gigante. Tinha neblina sobre o mundo e a casa estava sem ninguem de tanta que era a escureza. Macunaíma se lembrou de procurar uma criada pra brincar porêm tinha estacionamento das máquinas taxis na esquina e as cunhãs já estavam brincando por aí. Macunaíma se lembrou de armar arapuca pros curiós mas faltava isca. Não havia que fazer e sentiu sono. Porêm dormir não queria não porquê estava esperando Venceslau Pietro Pietra. Imaginou: “Agora vou vigiar e quando Sono vier enforco êle”. Não demorou muito viu um vulto chegando. Era Emoron-Pódole, o Pai do Sono. Macunaíma ficou muito parado entre os ninhos de cupim pra não espantar o Pai do Sono e poder mata-lo. Emoron-Pódole veio vindo veio vindo e quando já estava pertinho, o herói cochilou, bateu com o queixo no peito, mordeu a lingua e gritou:
— Que susto!
O Sono fugiu logo. Macunaíma seguiu andando muito desapontado. “Ora veja só! Não peguei mas quasi... Vou esperar outra vez e macacos me lambam si agora não pego o Pai do Sono e enforco êle!” Assim que o heroi refletiu. Tinha um corgo perto com um pau caido por cima servindo de pinguela. Mais pra longe uma lagoa branquejava de luar porquê a neblina já tinha ido-se embora. A vista era quieta e muito suave por causa da agùinha cantando o acalanto dos pobres. O Pai do Sono devia de estar amoitado por ali. Macunaíma cruzou os braços e com o ôlho esquerdo dormindo ficou imovel entre os ninhos de cupim. Não demorou muito enxergou Emoron-Pódole chegando. O Pai do Sono veio vindo veio vindo e de repente parou. Macunaíma ouviu que êle falava:
— Aquele sujeito não tá morto não. Morto que não arrota onde se viu!
Então o heroi arrotou “juque!”
— Onde se viu morto arrotar, gentes! O Sono caçoou e fugiu logo.
Por isso que o Pai do Sono inda existe e os homens por castigo não podem dormir em pé.
Macunaíma ia ficar desapontado com o sucedido quando escutou uma bulha e enxergou do outro lado do corgo um chofêr gesticulando feito chamado. Ficou muito sarapantado e gritou tiririca:
— Isso é comigo, colega! Sou francesa não!
— Sai azar! o rapaz fez.
Então Macunaíma pôs reparo numa criadinha com um vestido de linho amarelo pintado com extrato de tatajuba. Ela já ia atravessando o corgo pelo pau. Depois dela passar o heroi gritou prá pinguela:
— Viu alguma coisa, pau?
— Vi a graça dela!
— Quá! quá! quá quaquá!...
Macunaíma deu uma grande gargalhada. Então seguiu atrás do par. Eles já tinham brincado e descansavam na beira da lagoa. A moça estava sentada na borda duma igarité encalhada na praia. Toda nua inda do banho comia tambiús vivos, se rindo pro rapaz. Ele deitara de bruços na água rente dos pés da moça e tirava os lambarizinhos da lagoa pra ela comer. A crilada das ondas amontava nas costas dele porêm escorregando no corpo nú molhado caia de novo na lagoa com risadinhas de pingos. A moça batia com os pés nagua e era feito um repuxo roubado da Luna espirrando geitoso, cegando o rapaz. Então êle enfiava a cabeça na lagoa e trazia a boca cheia de agua. A moça apertava com os pés as bochechas dele e recebia o jacto em cheio na barriga. Assim. A brisa fiava a cabeleira da moça esticando de um em um os fios lisos na cara dela. O moço pôs reparo nisso. Firmando o queixo no joelho da companheira ergueu o busto da agua, estirou o braço pro alto e principiou tirando os cabelos da cara da moça pra que ela pudesse comer sossegada os tambiús rabejando no ar a prata do engaste. Então pra agradecer ela enfiou tres lambarizinhos na boca dele e rindo muito fastou o joelho depressa. O busto do rapaz não teve apoio mais e êle no sufragante focinhou nagua até o fundo, a moça inda forçando o pescoço dele com os pés. Ele ia escorregando sem perceber de tanta graça que achava na vida. Ia escorregando e afinal a canoa virou. Pois deixai ela virar! A moça levou um tombo engraçado por cima do rapaz e êle enrolou-se nela talqualmente um apuiseiro carinhoso. Todos os tambiús fugiram enquanto os dois brincavam nagua outra vez.
Macunaíma chegava. Sentou no fundo da igarité virada, esperando. Quando viu que êles tinham acabado de brincar, falou pro chofêr:
— Faz três dias que não como,
Semana que não escarro,
Adão foi feito de barro,
Sobrinho, me dá um cigarro.
O chofêr secundou:
— Me desculpe, meu parente,
Si cigarro não lhe dou;
A palha o fosfre e o goiano
Caiu nagua, se molhou.
— Não se incomode que eu tenho, respondeu Macunaíma. Tirou uma cigarreira de tartaruga feita por Antonio do Rosario no Pará, ofereceu cigarros de palha de tauarí pro moço e prá criadinha, acendeu um fosforo pros dois e outro pra êle. Depois afastou os mosquitos e principiou contando um caso. Assim a noite passava depressa e a gente não se amolava com o canto da sururina marcando as horas da escuridão. E era assim:
— No tempo de dantes, moços, o automovel não era uma máquina que nem hoje não, era a onça parda. Se chamava Palauá e parava no grande mato Fulano. Vai, Palauá falou pros olhos dela:
— Vão na praia do mar, meus verdes olhos, depressa depressa depressa!
Os olhos foram e a onça parda ficou cega. Porêm levantou o focinho, fez êle cheirar o vento e percebeu que Aimalá-Pódole, o Pai da Traíra estava nadando lá no longe do mar e gritou:
— Venham da praia do mar, meus verdes olhos, depressa depressa depressa!
Os olhos vieram e Palauá ficou enxergando outra vez. Passava por ali a tigre preta que era muito feroz e falou pra Palauá:
— O que você está fazendo, comadre!
— Estou mandando meus olhos olharem o mar.
— É bom?
— Pros cachorros!
— Então manda os meus também, comadre!
— Mando não porquê Aimalá-Pódole está na praia do mar.
— Manda que sinão te engulo, comadre!
Então Palauá falou assim:
— Vão na praia do mar, amarelos olhos de minha comadre tigre, depressa depressa depressa!
Os olhos foram e a tigre preta ficou cega. Aimalá-Pódole estava lá e juque! enguliu os olhos da tigre. Palauá maliciou tudo porquê o Pai da Traíra estava cheirando mui forte. Foi tratando de se raspar. Porêm a tigre preta que era mui feroz presenciou a fugida e falou prá onça parda:
— Espera um pouco, comadre!
— Não vê que careço de buscar janta pra meus filhos, comadre. Então até outro dia.
— Primeiro manda meus olhos voltarem, comadre, que já tomei um fartão de escureza.
Palauá gritou:
— Venham da praia do mar, amarelos olhos de minha comadre tigre, depressa depressa depressa!
Porêm os olhos não voltaram não e a tigre preta ficou feito fúria.
— Agora que te engulo, comadre!
E correu atrás da onça parda. Foi uma chispada mãi por esses matos que chii! os passarinhos se tornaram pequetitinhos pequetitinhos de medo e a noite levou um susto tamanho que ficou paralitica. Por isso que quando faz dia em riba das árvores, dentro do mato é sempre noite. A coitada não pode mais andar...
Quando Palauá correu legua e meia olhou pra trás fatigada. Porêm a tigre preta vinha perto. Vai, Palauá chegou num morro chamado Ibiraçoiaba e topou com uma bigorna gigante, aquela uma que pertencia á fundição de Afonso Sardinha no princípio da vida brasileira. Junto da bigorna estavam quatro rodas esquecidas. Então Palauá amarrou elas nos pés pra poder deslizar sem muito esfôrço e, como se diz: desatou o punho da rede outra feita. Uma chispada mãi! A onça enguliu num atimo legua e meia de terreno porêm isso vinha que vinha acochada pela tigre. Faziam um barulhão tamanho que os passarinhos estavam pequetitinhos pequetitinhos de medo e a noite mais sombria por causa que não podia andar. E a bulha inda era assombrada pelos gemidos do noitibó... Noitibó é Pai da Noite, moços, e chorava a miséria da filha.
Bateu fome em Palauá. A tigre na cola dela. Mas Palauá nem não podia mais correr assim com o estomago nas costas, vai, em de mais longe quando passou pela barra do Boipeba onde o cuizarrúim morou, viu um motor perto e enguliu o tal. Nem bem motor caiu na barriga da onça que a pobre criou fôrça nova e chispou. Fez legua e meia e olhou pra trás. Isso a tigre preta vinha feita pra cima dela. Estava uma escureza que só vendo por causa da malinconia da noite e bem na frente dum feixo a onça deu uma trombada temivel no derrame dum morrete, que por um triz, era uma vez Palauá! Vai, ela abocanhou dois vagalumões e seguiu com êles nos dentes pra alumiar caminho. Nem bem fez outra legua e meia olhou pra trás. A tigre junto. Era por causa que a onça-parda cheirava muito e a peste da cega tinha faro de perdigueiro. Vai, Palauá ingeriu um purgante de olio de mamona, pegou numa lata da essência chamada gazolina, despejou no x e lá foi fuomfuom! fuom! que nem burro peidorreiro por aí. A bulha foi tamanha que nem se escutou o tinido assombrado dos pratos partidos do morro do Assobio ali. A tigre preta ficou toda atrapalhada por causa que era cega e não cheirava mais a catinga da comadre. Palauá correu mais muito e olhou pra trás. Não enxergou a tigre. Tambem nem não podia mais correr com as fuças fumegando de quentura. Tinha ali perto um bananal macota com um pauê na faixa porquê Palauá já tinha chegado no porto de Santos. Vai, a bicha derramou agua cansada no focinho e desesquentou. Depois cortou uma folha assú de banana-figo e se escondeu botando ela por riba feito capote. Dormiu assim. A tigre preta que era muito feroz até passou por ali. Onça nem pio. E a outra passou não presenciando a comadre. Então de medo a onça nunca mais que largou de tudo o que tinha ajudado ela a fugir. Anda sempre com roda nos pés, motor na barriga, purgante de olio na garganta, agua nas fuças, gazolina no osso-de-Pai-João, os dois vagalumões na boca e o capote de folha de banana-figo cobrindo, ai ai! prontinha pra chispar. Principalmente si pisa nalguma correição da formiga chamada taxi e alguma trepando no pelame luzido morde a orelha dela, qual! chispa que nem Deus!... E inda tomou nome estranho pra disfarçar mais. É a máquina automovel.
Mas por causa que bebeu agua cansada Palauá teve estupor. Possuir automovel de seu é ter estupor em casa, moços.
Dizem que mais tarde a onça pariu uma ninhada enorme. Teve filhos e filhas. Uns machos outros fêmeas. Por isso que a gente fala “um forde” e fala “uma chevrolé”...
Tem mais não.”
Macunaíma parou. Chorava comoção pela boca dos moços. Sobre as águas a fresca boiava de barriga pro ar. O rapaz mergulhou a cabeça pra disfarçar a lagrima e trouxe um tambiú nos dentes rabejando danadinho. Repartiu a comida com a moça. Então lá na porta da casa uma onça fíate abriu a goela e urrou prá Lua:
— Baúa! Baúa!
Se escutou uma bulha formidavel e tomou conta do ar um pitium sufocando. Era Venceslau Pietro Pietra que chegava. O motorista se ergueu logo e a criada tambem. Estenderam a mão pra Macunaíma, convidando:
— Seu gigante chegou de viagem, vamos todos saber como está?
Fizeram. Encontraram Venceslau Pietro Pietra na porta-da-rua conversando com reporter. O gigante riu pros tres e falou pro motorista:
— Vamos lá dentro?
— Pois não!
Piaimã possuia orelhas furadas por causa dos brincos. Enfiou uma perna do rapaz na orelha direita, a outra na esquerda e foi carregando o moço nas costas. Atravessaram o parque e entraram na casa. Bem no meio do hol de acapú mobiliado com sofás de cipó-titica feitos por um judeu alemão de Manaus, se via um buraco enorme tendo por cima um cipó de japecanga feito balanço. Piaimã sentou o moço no cipó e perguntou pra êle si queria balançar um bocado. O moço fez que sim. Piaimã balançou balançou, de repente deu um arranco. Japecanga tem espinho... Os espinhos entraram na carne do chofêr e principiou escorrendo sangue no buraco.
— Chega! já estou satisfeito! que o chofêr gritava.
— Balança que vos digo! secundava Piaimã.
Sangue escorrendo. A caapora companheira do gigante estava lá embaixo do buraco e o sangue pingava numa tachada de macarrão que ela preparava pro companheiro. O rapaz gemia no balanço:
— Ah, si eu possuisse meu pai e minha mãi a meu lado não estava padecendo nas mãos dêste malvado!...
Então Piaimã deu um arranco muito forte no cipó e o rapaz caiu no molho da macarronada.
Venceslau Pietro Pietra foi buscar Macunaíma . O heroi já estava se rindo com a criadinha. O gigante falou pra ele:
— Vamos lá dentro?
Macunaíma estendeu os braços sussurrando:
— Ah!... que preguiça!...
— Ora vamos!... Vamos?
— Pois sim...
Então Piaimã fez pra ele como fizera pro chofêr, carregou o heroi nas costas de cabeça pra baixo prendidos os pés nos buracos das orelhas. Macunaíma aprumou a sarabatana e assim de cabeça pra baixo era ver um atirador malabarista de circo, acertando nos ovinhos do alvo. O gigante ficou muito incomodado virou e percebeu tudo.
— Faz isso não, patricio!
Tomou a sarabatana e jogou longe. Macunaíma agarrava quanto ramo caia na mão dele.
— Que você está fazendo? perguntou o gigante ressabiado.
— Não vê que os ramos estão batendo na minha cara!
Piaimã virou o heroi de cabeça pra cima. Então Macunaíma fez cocegas com os ramos nas orelhas do gigante. Piaimã dava grandes gargalhadas e pulava de gôso.
— Não amola mais, patricio! êle fez.
Chegaram no hol. Por debaixo da escada tinha uma gaiola de ouro com passarinhos cantadores. E os passarinhos do gigante eram cobras e lagartos. Macunaíma pulou na gaiola e principiou muito disfarçado comendo cobra. Piaimã convidava-o pra vir no balanço porêm Macunaíma engolia cobras contando:
— Falta cinco...
E engulia mais outra bicha. Afinal as cobras se acabaram e o heroi cheio de raiva desceu da gaiola com o pé direito. Olhou cheio de raiva pro gatuno da muiraquitã e rosnou:
— Hhhm... que preguiça!
Mas Piaimã insistia pro heroi balangar.
— Eu até que nem não sei balançar... Milhor você vai primeiro, que Macunaíma rosnou.
— Que eu nada, heroi! É fácil que nem beber agua! Assuba na japecanga, pronto: eu balanço!
— Então aceito porêm você vai primeiro, gigante.
Piaimã insistiu mas êle sempre falando pro gigante balançar primeiro. Então Venceslau Pietro Pietra amontou no cipó e Macunaíma foi balançando cada vez mais forte. Cantava:
“Bão-ba-lão
Senhor capitão,
Espada na cinta
Ginete na mão!”
Deu um arranco. Os espinhos ferraram na carne do gigante e o sangue espirrou. A caapora lá embaixo não sabia que aquela sangueira era do gigante dela e aparava a chuva na macarronada. Molho engrossando.
— Para! Para! Piaimã gritava.
— Balança que vos digo! secundava Macunaíma.
Balançou até o gigante ficar bem tonto e então deu um arranco fortissimo na japecanga. Era porquê tinha comido cobra e estava furibundo. Venceslau Pietro Pietra caiu no buraco berrando cantado:
— Lem lem lem... si desta escapar, nunca mais como ninguem!
Enxergava a macarronada fumegando lá em baixo e berrou pra ela:
— Afasta que vos engulo!
Porêm jacaré fastou? nem tacho! O gigante caiu na macarronada fervendo e subiu no ar um cheiro tão forte de couro cozido que matou todos os ticoticos da cidade e o heroi teve uma sapituca. Piaimã se debateu muito e já estava morre-não-morre. Num esfôrço gigantesco inda se ergueu no fundo do tacho. Afastou os macarrões que corriam na cara dele, revirou os olhos pro alto, lambeu a bigodeira:
— FALTA QUEIJO! exclamou...
E faleceu.
Este foi o fim de Venceslau Pietro Pietra que era o gigante Piaimã comedor de gente.
Macunaíma quando voltou da sapituca foi buscar a muiraquitã e partiu na máquina bonde pra pensão. E chorava gemendo assim:
— Muiraquitã, muiraquitã de minha bela, vejo você mas não vejo ela!...