Mana Maria/II

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Diante da mulher conservou sempre uma atitude de inferioridade. Morta a mulher não teve dificuldade nenhuma em reconhecer na filha mais velha a herdeira de Dona Purezinha, no governo doméstico.

Quando conheceu Dona Purezinha era terceiro-escriturário do Serviço Sanitário. Seu pai, que era agente de seguros e juiz de paz da Consolação, lhe arranjou esse emprego dias antes de morrer.

Joaquim herdou uma casa, uma caderneta da Caixa Econômica, acusando um saldo de sete contos e coisinhas, um seguro de vinte contos e os nove volumes encadernados da Genealogia Paulistana de Luís Gonzaga da Silva Leme.

O pai também enviuvara moço. Era homem austero e tratava o único filho severamente.

Tinha dois orgulhos que manifestava cem vezes por dia, com e sem propósito:

- Você vem dizer isso a mim, descendente de bandeirantes? A mim, que fui amigo do Coronel Mursa? Ora tire seu cavalo da chuva!

Joaquim guardava do pai uma lembrança nada afetuosa. Ela vinha sempre com uma bofetada e uma desilusão. Bofetada, porque certa vez durante o jantar se permitira com a ingenuidade dos dezesseis anos pôr em dúvida a justiça de uma sentença de que o pai se vangloriava. O juiz de paz estourou:

- Como, seu cachorrinho? Eu descendente de bandeirantes, amigo do Coronel Mursa, receber lições de um frangote! Cale essa boca, já, imediatamente!

Joaquim se dispôs a não dar um pio. Mas o pai continuou a falar, a gritar, a invocar a sua progênie bandeirante e a sua amizade com o Coronel Mursa, ele se irritou e disse muito atrevido:

- Ninguém nunca ouviu falar nesse Coronel Mursa que o senhor...

Aí levou a bofetada. Na boca. E foi trancafiado no quarto. Ouviu o pai dar um berro com a criada. Depois as passadas dele pelo corredor indo e vindo. Depois um silêncio. Passos de novo. Parou. Abriu a porta. Estava mais calmo e estendeu ao filho uma folha de jornal amarelecida, com as marcas das dobras bem acentuadas:

- Leia para se instruir. No fundo a culpa não é sua, mas dos professores que não lhe ensinaram a história de sua terra.

O pai saiu sem fechar a porta à chave; Joaquim percorreu a folha encardida. Na primeira página. o título do jornal e a data: São Paulo, 20 de novembro de 1889. O resto era meio alegórico: uma mulher com barrete frígio na cabeça segurava um ramo de café com a mão direita e com a esquerda levantava um facho que iluminava três medalhões com os retratos do Coronel Mursa, Prudente de Morais e Rangel Pestana. Embaixo: Homenagem à Junta Provisória. Em volta: leões deitados, pombas voando, ramalhetes de flores com laços de fita, o Zé-Povinho de chapéu erguido. Na segunda página, então, vinha o elogio do triunvirato, da República, da Democracia e do Brasil. Joaquim leu com toda a atenção: "O Coronel Mursa simboliza a espada gloriosa que fulgurou nas lutas da Independência, combateu nas campanhas do Prata, venceu na Guerra do Paraguai e ajudou a implantar a República." Virou a folha, se demorou na contemplação do Coronel Mursa. Era aquele. Sim senhor. Simpaticão. No dia seguinte quis devolver para o pai mas o pai falou:

- Guarde para você que eu tenho vários exemplares.

Joaquim guardou. Daí por diante cada vez que o pai falava na sua amizade com o Coronel Mursa, o filho abaixava os olhos. No fundo tinha ódio dessa amizade, por causa da bofetada. O que não impediu que num domingo de tarde, queixando-se o pai de certo tenente do Exército que lhe devia cem mil-réis e se recusava a pagar, o filho falasse:

- Se o Coronel Mursa fosse vivo o senhor falava com ele e arranjava tudo!

A coisa foi tão inesperada que o juiz de paz olhou desconfiado para o filho. Mas Joaquim fitava o assoalho humildemente. E o velho exultou:

- Que dúvida! Homem de peso, homem de peso! Não há mais disso hoje em dia!

Depois recapitulou com todos os detalhes a história da famosa amizade. Depois (conversa puxa conversa) falou na sua progênie bandeirante. Disse:

- Eu estou morre não morre, você é menino, é bom que saiba quem foram seus avós para amanhã, quando eu já não estiver no mundo, não deixar ninguém pisar em você!

Foi no quarto, voltou com dois volumes da Genealogia Paulistana.

- Está vendo, Joaquim? Título Cordeiros de Paiva. Olhe aqui: João Duarte Pereira Castro, irmão de um seu tio-avô, não, tio-bisavô, casou com uma Cordeiro de Paiva. Nós somos primos desses Cordeiros de Paiva, gente de tutano, uns leões. Mas tem mais. Olhe aqui neste outro volume. Títulos Aguirre. Olhe: um Aguirre, João Afonso, casou em segundas núpcias com a bisavó paterna de sua mãe, sua tataravó, portanto, minha bisavó por afinidade. Nunca se esqueça que você tem sangue de Aguirres nas veias e é ligado com os Cordeiros de Paiva. Dois títulos. Há pouco paulista hoje que se possa orgulhar de sua nobreza, como você. Veja lá que responsabilidade.

Por fim deu uma nota de vinte mil-réis para o filho, já era noite:

- Vá se divertir.

Joaquim beijou a mão do pai e foi se divertir no Cinema Bijou. Pina Menichelli suicidou-se no sexto ato e ele na saída encontrou o Albertino. O Albertino conhecia uma casa na Rua das Flores. Joaquim o acompanhou até lá. Dona Filomena veio abrir a porta:

- Que é que querem? Ah! Albertino, como vai?

Albertino ficou conversando com Dona Filomena, Joaquim enfiou pelo corredor. Uma voz de mulher falou:

- A senhora deixou a porta aberta! Faz favor de fechar, Dona Filomena!

Joaquim espiou e viu o pai sentado diante de uma garrafa de cerveja, com uma gorda de cabelo vermelho no colo. A gorda gritou:

- Olha essa porta aberta, Dona Filomena!

Joaquim deu meia volta rápida, esbarrou em Dona Filomena que vinha fechar a porta, disse para o Albertino:

- Vou me embora, estou me sentindo mal.

Albertino quis retê-lo pelo braço, ele se desenvencilhou brutalmente, atravessou a rua, dobrou a esquina, passo apressado quase correndo. Sentia uma precisão de chorar. Um homem como papai com uma vagabunda no colo. É impossível. É impossível. Mas então... Meu Deus é impossível, papai, papai num bordel. Mas então... O pensamento dele ficava suspenso. Mas então... Mas então... Não há nada. Não existe nada no mundo. Nada. E se lembrava da mãe.

Tomou o bonde, foi para casa. Fechou-se no quarto, atirou-se na cama. Tinha pena da mãe. Estendeu o braço, pegou o retrato no criado-mudo, falou: Minha mãe! Coitada de minha mãe!

Beijou o retrato. Que coisa, meu Deus, meu Deus do céu! Pôs o retrato no criado-mudo. Um homem que falava tanto na sua seriedade e mais isto e mais aquilo. Descendente de bandeirante, amigo do Coronel Mursa. Levantou-se. Abriu uma gaveta da cômoda. Tirou a folha de jornal. Amigo do Coronel Mursa. Espera um pouco que já te mostro. Picou a folha em pedacinhos. Jogou na latrina. Pôs a mão na chave da porta, se arrependeu: o pai podia chegar, não queria ver o pai. Aí lhe deu uma curiosidade má. A que horas ele voltaria? Passaria a noite no bordel? Abanava a cabeça. Pensou: meu pai na putaria. Não. Não era bem isso. Que coisa besta. Sorriu por dentro. Chorou. Apagou a luz, se jogou de novo na cama. Mas não dormiu. Vinha um pensamento perverso, ele expulsava com outro ainda mais perverso, e sofria. Pouco depois de meia-noite o pai chegou e Joaquim dormiu mais aliviado.

Entretanto o respeito que até então tivera pelo pai não diminuiu pelo menos exteriormente. O mal-estar que passou a sentir na presença dele aumentava até a atitude humilde, cabeça baixa, olhos no chão. Quando o juiz de paz falava nos avós bandeirantes ou na sua histórica amizade com o Coronel Mursa Joaquim no fundo sentia uma espécie de volúpia em apresentar aos seus botões o reverso da medalha. O pai falava:

- Um paulista como eu, de autêntico sangue bandeirante...

E o filho continuava com o pensamento:

... e que freqüenta bordéis baratos...

O pai acrescentava:

... amigo inseparável do Coronel Mursa...

E o filho rematava:

... e bebedor de cerveja com polaca vagabunda no colo...

Até que meses depois, no dia de Finados, vendo o pai chorar diante do túmulo da mulher, quinze anos já passados de sua morte, ele começou a compreender esse dualismo em que ele próprio cairia mais tarde.

O pai morreu com setenta e dois anos num dia de São João. E no primeiro aniversário de sua morte já foi Purezinha que colocou um ramo de cravos no túmulo e providenciou sobre a missa. Como também foi Purezinha que arranjou com o parente deputado a promoção do marido para segundo-escriturário, depois primeiro, depois chefe de seção. E assumiu discricionariamente o governo do lar, cabeça do casal, alugando a casa deixada pelo sogro, aplicando o dinheiro do seguro, economizando, comprando o palacete em que Ana Teresa nasceu, emprestando dinheiro sob hipoteca em pequenas parcelas para render juros mais altos, tudo, tudo. Purezinha, coitada. Morrer daquele jeito. Felizmente deixava uma substituta, sua filha de palavra medida e dura, gesto brusco e decidido, olhar firme, direto, autoritário.