Mana Maria/III
Por isso Joaquim Pereira não se atreveu a insistir na compra do Ford. Paciência. Maria não aprovava, ele se conformava. Entretanto era coisa que lhe apetecia bem, um Fordinho fechado. Satisfazia bem aquela ânsia de gozo que se apoderara dele viúvo. Gozo da vida, das coisas materialmente boas da vida. Daí a poucos anos se aposentaria. E já tinha um plano de vida feito. Como o Ciancullo barbeiro que com mais cinqüenta contos fechava o salão e ia fazer il signore. É isso mesmo. Bancar o milionário. Inclusive e sobretudo no capítulo das mulheres. Foi fiel, foi um cão de tão fiel, para Purezinha. Mas ela morta, ele era moço ainda, ficava neste mundo miserável, era disfarçar a miséria do mundo. Às vezes se lembrava do pai e como que se revia (em lugar do juiz de paz) no quarto da Rua das Flores com uma gorda de cabelo vermelho no colo que mandava dona Filomena fechar a porta. Então sentia uma vergonha inexprimível de ser homem, homem como o pai, seu herdeiro na contingência de semelhantes fraquezas. Paciência. Não era o único. Como é que havia de fazer? Casar? Ele já pensara nessa solução mas esbarrava na oposição da filha mais velha, que ele sabia fatal, e não tinha ânimo para enfrentar. Que esperança. Atentava no jeito frio e agressivo da filha e desistia logo de qualquer idéia a respeito de novo casamento. Nada disso. O melhor era fazer como todos os homens, até casados, até recém-casados. O melhor era fazer como, como, como o pai. Aí está. Joaquim por mais que expulsasse a lembrança amarga daquela noite da Rua das Flores era constantemente perseguido por ela. Daí a timidez de suas primeiras aventuras, nome com que ele dourava a sentida sordidez dos coitos pagos à vista. Uma aventura, uma conquista. Parecia um criminoso. Escolhia horas adiantadas da noite, se exasperava quando custavam para abrir a porta e ele ficava sujeito às olhadas dos transeuntes, exigia um quarto bem trancado, tapava o buraco da fechadura. Inutilmente procurava se confortar com a idéia de que não tinha filhos. Inutilmente. A lembrança da Rua das Flores não o largava. Teve um sonho horrível em que o pai o espiava como ele o vira.
Um dia se surpreendeu chamando a filha de mana Maria, tal e qual Ana Teresa. E se arrependeu, quis corrigir logo em seguida, não teve jeito, deu uma risadinha (a filha calma, olhando para ele), repetiu: mana Maria. A filha disse:
- Eu o envelheço tanto assim?
Custou a compreender, compreendeu, falou:
- Não é isso!
Não era e a filha sabia que não era. Mas mesmo quando lhe agradavam (e o pai chamando-a assim lhe agradara) ela dava um jeito pra responder com uma bicada certeira.
O pai bandoleiro não parava mais em casa. Mana Maria só o via durante as refeições. Tinha o estômago delicado, comia sempre em casa, discutia negócios com ele. Por ocasião da partilha no inventário de Purezinha, mana Maria fez questão de ficar com a casa onde moravam. O pai objetou generosamente que não dava renda pois era residência deles, era melhor que ficasse na sua meação, a menos que a filha não concordasse em receber o aluguel. Mana Maria respondeu:
- Eu quero morar na minha casa.
Repetiu, acentuando bem:
- Minha casa. E isso de aluguel é bobagem.
Joaquim acedeu:
- Como você quiser.
E acrescentou:
- Você é de fato a dona da casa, fica também dona do prédio.
O olhar de mana Maria exprimiu a satisfação de quem se sente bem compreendido. Discutia as questões do inventário com tanta segurança que o pai um dia se espantou. Ela explicou:
- Conheço as leis de meu país.
Foi no quarto, voltou com um exemplar encadernado do Código Civil Brasileiro. O pai estourava de admiração:
- Você é sua mãe escarradinha.
Porque Purezinha é que comprara o Código. Ele nem se lembrava mais de que o tinha em casa. Pois mana Maria descobrira o Código, lia o Código. Incrível. Definitivamente sumiu diante da filha. Ela é que conversou com o advogado, estabeleceu os quinhões dela e de Ana Teresa (favorecendo esta) e concluído o inventário passou a tomar conta de todos os negócios. Do pai inclusive.