Mana Maria/IV

Wikisource, a biblioteca livre

Nas férias de fim de ano Ana Teresa caiu doente de escarlatina. Joaquim queria chamar o velho Dr. Tibúrcio que receitava calomelanos a três por dois e já tratara da menina por ocasião de uma coqueluche. Mas mana Maria telefonou para o Dr. Samuel Pinto, recém-chegado da Europa, com prática dos hospitais de crianças de Berlim, Viena e Paris.

Dr. Samuel chegou, mandou abrir as janelas do quarto. Ar, ar. Tratamento moderno. A escarlatina cedeu. Ana Teresa se levantou.

Nada de excesso, recomendou o Dr. Samuel. Escarlatina é moléstia traiçoeira, costuma deixar marca. Alimentação sadia, ginástica, muita ventilação durante a noite.

Ana Teresa já estava perfeitamente boa e o médico prosseguia nas visitas. Mana Maria estranhou.

- Médico moderno, você quis médico moderno, é agüentar com a exploração - falou o pai.

Então mana Maria escreveu um cartãozinho para o Dr. Samuel Pinto pedindo a conta. E ele a mandou bem módica. Joaquim comentou:

- Esquisito. Só se é para garantir o cliente. Deve ser isso.

Ana Teresa voltou para o colégio nem alegre, nem triste. Estava habituada a obedecer. Recebia as coisas boas e más com a mesma mansidão. Mana Maria resolvia por ela e ela aceitava a resolução. Nunca lhe passou pela idéia discutir isto ou aquilo. exprimir suas preferências, mostrar um tiquinho que fosse de vontade. Até nas coisas mínimas. Aceitava sempre o que lhe ofereciam e quando lhe concediam o direito de escolha se decidia sempre pela última oferecida. Mana Maria perguntava na mesa:

- Você quer banana ou laranja?

Ana Teresa respondia:

- Laranja.

Se a pergunta fosse laranja ou banana ela diria banana. Ainda quando houvesse também pêra e esta lhe apetecesse mais.

Uma noite, já fazia quinze dias que Ana Teresa tinha ido para o colégio, a criada anunciou o Dr. Samuel Pinto para mana Maria. Mana Maria tirou os óculos, levantou o olhar do livro, fixou-o na criada. Pensou: - O que será? Mas disse:

- Faça entrar.

Ficou um momento imaginando o que seria, passou diante do espelho sem nenhuma olhadela e foi receber o médico. O Dr. Samuel falou logo:

- Desculpe não ter vindo mais cedo. Hoje foi um dia cheio de serviço.

E mana Maria muito calma:

- Mas deve haver engano. Daqui de casa não se fez nenhum chamado.

Dr. Samuel, sentado no sofá, com um livro na mão arregalou os olhos num bruto espanto:

- Oh! mil desculpas, foi o recado que me deram.

Mana Maria imóvel, o olhar parado, as mãos paradas no colo, considerava aquele moreno meio careca, subitamente ruborizado, que lastimava o engano de sua enfermeira, uma alemã ainda não muito familiarizada com a língua portuguesa. Estava mentindo. Era visível. Que é que o teria levado ali? Impossível, mana Maria (Dr. Samuel agora se estendia sobre os criados em geral, sua negligência, sua insolência diante dos patrões) se decidia diante do menor gesto do intruso a dar um grito que faria vir dos fundos da casa a copeira, a arrumadeira, a cozinheira. Não. Ele não ousaria tanto. E se ousasse ela não apelaria para ninguém. Sozinha, sem elevar a voz, talvez com um simples olhar, poria o atrevido imediatamente no olho da rua.

Dr. Samuel perdia aos poucos o desembaraço dos primeiros instantes. Já gaguejava, dizia o já dito procurava palavras. Mana Maria reparou (como já fizera durante as visitas a Ana Teresa) na voz cantada que abria as vogais, arrastava os erres, prolongava as tonais. Na terra dele é que a gente ainda encontrava empregados como os de outrora, humildes e fiéis. Mana Maria perguntou:

- Que terra?

- Sergipe.

Ela bem que estava percebendo. Dr. Samuel tinha saudades daquela terra. Estava radicado em São Paulo. Mas pretendia (talvez em breve) voltar para lá, rever o seu berço. Que é que deu em mana Maria? Ela não sabia ou não queria saber. O fato e que disse:

- Com certeza deixou uma noiva lá?

Qualquer coisa iluminou os olhos miúdos do Dr. Samuel e ele readquiriu a desenvoltura do princípio. As frases tornaram a sair fáceis, redondas, descansadas. Que penetração psicológica a de Dona Maria. Que extraordinário espírito observador. Como é que adivinhara que ele era solteiro? Porque não usava anel? Não, porque hoje em dia poucos maridos o usam. Não havia dúvida: admirável espírito de observação. E esse dom aliado à cultura, a uma educação perfeita, era a maior riqueza a que o homem pode aspirar.

Dr. Samuel (como se percebesse o nojo nascente de mana Maria) cortou os elogios e confessou que não tinha noiva. Mas pensava seriamente em casar, está visto. Sentia até que precisava casar. O casamento era um ideal que todos, todos, homens e mulheres, sem nenhuma exceção, deviam acalentar. Pois não é exato? Mana Maria não disse nem sim nem não.

Dr. Samuel esboçou um sorrisozinho. Naquele livro que ele tinha ali, por exemplo, um romance francês, havia uma frase sobre o casamento, que lhe parecia admirável. Ele ia traduzir. Não: traduzir é trair, como dizem com acerto os italianos. Seria mesmo em francês. Mas Dona Maria havia de prometer primeiro que não caçoaria do francês dele. Mana Maria (tomada de uma idéia que ela pensava perversa) em vez de prometer falou:

- Eu mesma leio. Com licença um segundo. Vou buscar meus óculos.

Foi. Veio com os óculos postos. Num átimo procurou ler no rosto do Dr. Samuel a impressão produzida. Leu. Disse:

- Acho banal.

E devolveu o livro.

Dr. Samuel concordou em que não era coisa original mas não é só o original que é admirável. Ou Dona Maria por acaso seria adepta das idéias modernas, do futurismo?

Mana Maria, conservando os óculos, fez um gesto vago. E a copeira (com quem ela trocara duas palavras rápidas quando foi buscar os óculos) apareceu pra dizer que a pessoa que Dona Maria mandara chamar estava na cozinha esperando. Mana Maria falou:

- Vou já.

E se levantou olhando o Dr. Samuel. Dr. Samuel tornou a perder o jeito. Levantou-se também. sentia-se que ele levava consigo uma porção de coisas que desejava falar, desculpou-se pelo incômodo que dera, lastimou mais uma vez o equívoco da enfermeira e tomando coragem (falando, ele tomava coragem) fez questão que Dona Maria ficasse com o romance. Ele já tinha lido. Ou por outra: estava relendo.

Dona Maria veria que livro admirável era. Mana Maria recusou. Ele, fazendo muitos gestos, com a voz meio alterada, pôs o livro na mesa. Não, positivamente não levaria o livro. Ficava ali em ótimas mãos. E Dona Maria que não se preocupasse em ler depressa. Lesse com todo o vagar. Depois telefonasse que ele mandaria buscar. Já com o chapéu na mão, hesitou um instante, acrescentou:

- Ou então, se a senhora me quiser dar a honra de trocar impressões sobre ele, eu mesmo virei buscar. Sem incômodo nenhum. Só prazer, imenso prazer.

Mana Maria lhe estendeu a mão.