Mana Maria/V
Fechou a porta. E esta agora? Virou-se. Olhou o livro. Francamente. Deu uns passos, pôs a mão no livro, pôs o olhar na Paisagem de Outono da parede, tamborilou os dedos na capa amarela do romance. Mordeu o lábio superior, o inferior, de novo o superior. Foi cerrando os olhos, cerrando, cerrou. Então viu claro o que tinha a fazer. Pegou no livro, pediu papel e barbante para a copeira (qualquer um serve!) embrulhou, amarrou nervosamente. Escreveu: Ao Senhor Doutor Samuel Pinto. Procurou o endereço na lista telefônica. Residência ou escritório? Mandava para a residência. Teria telefone? Tinha. Apartamento. A palavra deflagrou a imaginação de mana Maria. Apartamento, champanha e mulheres. Um tango dizia assim. Todos os santos dias ouvia no rádio. Quero um apartamento com champanha e mulheres. Champanha e mulheres. Mulheres. Escreveu o endereço. Mandava levar amanhã cedo. Sem uma linha que fosse de agradecimento? Agora ela não ia abrir o embrulho. Colocaria o cartão por fora, entre o barbante e o papel. Não. Não colocaria nada. O livro só. Para o atrevido compreender. Atrevido? Mana Maria pesou a palavra, pesou-a bem, arrependeu-se. Afinal que atitude era aquela? Para que ferir o moço com tamanha grosseria?
Mana Maria sentou-se diante da secretariazinha, tirou da gaveta um cartão de luto, molhou a pena no tinteiro, escreveu por cima do nome: Com os melhores agradecimentos de... Rasgou o cartão. Pegou outro. Escreveu: Com os agradecimentos de... Leu uma porção de vezes: Com os agradecimentos de Maria H. Pereira. Começou a pôr a data por baixo do nome. Escreveu São Paulo e parou. Rasgou o cartão. Levantou-se, foi até a janela, da janela até a porta que dava para o corredor, deu duas voltas na chave, veio até o meio do quarto, parou, olhou para o espelho. E deu um jeito no penteado. Foi para a escrivaninha de novo. Precisava agradecer o livro, falar no livro. Senão um estranho que visse o cartão não saberia que agradecimentos eram aqueles.
Agradecer o livro e dar o nome do livro. Assim afastaria todas as suspeitas ruins. Levantou-se. Não. Ia ler o livro. Desfez o embrulho. Assim em duas linhas daria sua impressão, ele não precisava aparecer para perguntar. Mas também se desse ele seria capaz de aparecer para discutir. Nunca hesitara assim. Nunca. Por que não ficava na primeira idéia? Como sempre? Levantou-se. Diante do espelho passou os dedos pelas sobrancelhas. O embrulho já estava desfeito, lia o livro. E amanhã cedo mandava. Pronto. Estava resolvido o assunto.
Abriu a porta. O carrilhão da sala de jantar deu dez horas. Ela correu a casa inteira para ver se a criada fechara todas as portas e janelas. Foi para o banheiro. Furiosamente escovou os dentes. Como de costume: furiosamente. Bochecho e gargarejo com água oxigenada.
Tinha a mania da higiene. Vivia lavando as mãos, escovando as unhas. E nas coisas da casa exigia asseio e ordem. Queria tudo limpo e no seu lugar. Andava sempre com um lenço na mão e não sentava numa cadeira sem antes passar o lenço nela. Agora, no banheiro, continuava a toalete rigorosa. E acabou deixando tudo como encontrara: cada coisa no seu lugar.
Fechou-se no quarto. Deitou-se, abriu o livro. Dez e pouco. Antes da meia-noite estava lido. Principiou pulando a descrição do parque porque detestava descrições. Um parque: já se sabe o que é. Ela e ele voltam de seu passeio a cavalo. São noivos. Conheceram-se num baile. O pai dela estava na iminência de uma ruína. O pai dele, em vez, era riquíssimo. Casamento de conveniência? O autor dizia que sim e que não. Que sim na intenção do pai. Que não porque ela gostava do feitio esportivo do noivo. Muito que bem. Estão voltando do seu passeio matinal. De repente (na pagina 27) Bismarck, o cão pastor alemão, pula diante dos cavalos. E o dela se espanta, pula também, ela cai na areia branca da alameda. É carregada sem sentidos para o castelo. Na página 43 o jovem médico abana a cabeça e diz para o visconde:
- Fratura dupla no terço superior do fêmur.
O pai desesperado pergunta:
- Ficará defeituosa?
O jovem médico mais uma vez abana a cabeça:
- A ciência tudo fará para evitar tamanha desgraça.
Mas na página 98 a ciência depois de mil esforços inúteis se declara vencida: aquela flor de uma estirpe milenar ficará com uma perna mais curta que a outra. O visconde trata de apressar o casamento. E há uma cena horrível em que a aleijadinha ignorante de seu defeito faz um esforço supremo (quer receber o noivo levantada) deixa a cama, o pé falseia, ela dá um grito e tomba sem sentidos. Agora, o noivo mal disfarça sua repugnância. Enquanto que o médico redobra sua dedicação. O choque moral é tremendo, bem mais perigoso que o físico. A ciência vela. A ciência só? O autor insinua que o amor, o amor também vela.
A página 167 é toda ela a transcrição da carta em que o esportista rompe o noivado, triste documento de um invertebrado moral. E como o visconde julga enojado. Mais nojo ainda lhe causa a insistência dos credores cuja sanha o projetado casamento amenizara um pouco. Precipita-se a catástrofe: a filha aleijada, o visconde arruinado, castelo, parque, terras, tudo vendido em hasta pública. De que modo resistir a tamanha dor e tamanha vergonha? Na sala dos retratos, onde lado a lado figuravam os antepassados (quatro com o bastão de Marechal de França) o visconde estoura os miolos no momento exato em que pisavam as escadarias do castelo as autoridades judiciárias que iam proceder ao inventário dos bens.
Mas o amor vela. E na página 233 um moço de ciência e uma moça coxa (casados horas antes) pelo portão dos fundos deixam o castelo (já propriedade de um fabricante de conhaque) para uma vida modesta de trabalho e rica de afeição.
Meia-noite e um quarto. Joaquim Pereira entra em casa, bate na porta da filha.
- Ainda está acordada, mana Maria? Está sentindo alguma coisa?
- Nada disso. Estava lendo.
- Boa noite.
- Boa noite.
Apagou a luz. Virou do lado direito. Romance bobo. Um médico se casava com uma aleijada. E agora um médico queria casar com uma, uma, uma feia. Mas feia que sabia que era feia, não escondia sua fealdade, até aumentava, aumentava de propósito. Por que motivo?
Mana Maria se revia indo para a Escola Normal com Dejanira e Alice. Ela saia de casa, Dejanira já estava esperando na porta do n.0 53, se juntavam. dobravam a esquerda, Alice estava esperando no n.0 17, tocavam para a Escola. Com passagem forçada pelo Ginásio Piratininga. Onde as gracinhas choviam. Tetéias, diziam. Tetéias. Dejanira e Alice fingiam que não gostavam. Mana Maria gostava sem fingir que não. Aos poucos porém foi percebendo que as tetéias eram duas com exclusão sua. Dois ginasianos mais ousados passaram a se dirigir diretamente a Dejanira e Alice. Mana Maria propôs:
- Vamos passar agora pela outra calçada.
Mas as amigas não concordaram. Mana Maria não insistiu. E se remoeu de despeito.
Um dia não encontrou Dejanira na porta do 53. Tocou a campainha, a mãe de Dejanira informou que ela já tinha saído. Dobrou a esquina. não viu Alice no número 17. E a irmãzinha informou que Alice já tinha saído. Na calçada do Ginásio Piratininga os estudantes formavam grupinhos. Mana Maria passou por eles completamente despercebida.
Junto de uma árvore, a um quarteirão da Escola, havia dois casais parados. Mana Maria reconheceu logo os namorados. Sentiu um peso nas pernas. Passava fingindo não ver? Passava. Com o rosto em fogo passou. Dejanira chamou:
- Maria!
Nem se virou. E a explicação na Escola foi um sofrimento para ela. Não tem importância, dizia. Na saída viu os dois estudantes no mesmo ponto em que de manhã os descobrira com as amigas. Disse para elas:
- Até logo!
E sem querer ouvir o que elas falavam passou pelos moços já de chapéu na mão (era de ironia o olhar que lhe dirigiram, cachorros), apressou cada vez mais o passo, chegou ofegante em casa. Daí por diante ia sozinha para a Escola e sozinha voltava para casa. Pensou mil vinganças, cartas anônimas avisando os pais por exemplo. Mas atentou na mesquinhez delas e desistiu. Entretanto sua amizade com Dejanira e Alice esfriou. Mal se cumprimentavam passados poucos dias. Deu então de reparar na atitude indiferente dos homens para com ela. Indiferente - ou respeitosa? Dava no mesmo. Quantas vezes ela andava, um, dois, três, quarteirões atrás de uma saia qualquer, uma, italianinha suja, uma mulatinha até, ouvindo os gracejos que dirigiam para a italianinha, para a vagabunda. Ela não ouvia nenhum. E o mais esquisito é que quando mana Maria se aproximava muitas vezes os gracejos dirigidos à italianinha ou à mulatinha cessavam. Por respeito dela, mana Maria. Isso lhe dava um amargor e ao mesmo tempo um orgulho indefiníveis. Era respeitada. Não era desejada.
Foi ai que se tornou a primeira de sua classe. O que perdia por um lado, queria ganhar por outro. E ganhava. Também se tornou severa para as mulheres, no juízo e no trato. Umas levianas e umas idiotas. E se maltratava. Até em frivolidades. Era Filha de Maria. Um pequeno sacrifício por dia, aconselhava o vigário. Vontade de se olhar no espelho e não se olhar, por exemplo. Mana Maria levava a coisa ao extremo: passava o dia inteiro sem por os olhos num espelho, sem beber água, sem comer carne. Veio nela o desejo de ser a primeira em tudo, um espírito de emulação que a levava a passar na frente de todas as mulheres que encontrava na rua. Apostava consigo mesma: Chego na esquina antes daquela gorda. E chegava. Aparentemente se masculinizou: sapatos de salto baixo, abolição do decote, supressão de jóias, mangas compridas.
Por ocasião das festas de formatura de normalista recebeu um golpe doído com a sua escolha para fazer de pai da ingênua na comédia Quem com Ferro Fere... a ser representada no Teatro Municipal. O Professor Tadeu, autor da peça, a indicara como a única aluna capaz de fazer bem o papel. Ela recusou.
O Professor Tadeu, burríssimo, insistiu pensando ser amável mas magoando-a ainda mais:
- Não vejo outra. Dona Maria. Até o físico lhe ajuda, tudo enfim.
- Tudo?
Mana Maria respondeu com duas pedras na mão. E a comédia não se representou por falta de quem encarnasse o pai da ingênua.
Quis lecionar. Mas Dona Purezinha não consentiu:
- Não. O diploma é uma espécie de arrimo que você guarda para se um dia precisar.
Grande pena. Porque ela gostava de se imaginar lecionando, aterrorizando a classe com sua energia. Severíssima porém justa. Logo chegaria a diretora de grupo, inspetora, sabe Deus o quê. Acabaria com aquela indecência de alunas sapecas, encontrando-se com os namorados nas vizinhanças das escolas. Alunas só, não. Também professoras que davam maus exemplos. Veio depois a moléstia da mãe, ela feita enfermeira, dia e noite lidando com remédios, sofrendo impertinências, ouvindo descomposturas mas terminando sempre por impor sua vontade à doente. E aquele espírito de educadora se condensou todo na educação de Ana Teresa.
Meia-noite e meia ou uma hora da madrugada já? Acendeu a luz, olhou o relógio de cabeceira: uma e meia da madrugada. E ela sem sono. Apagou a luz. E o Dr. Samuel com aquela visita inesperada. Mana Maria sorriu dentro dela: chegou tarde. Mas uma revolta tomou-a toda e fez esta pergunta: por que tarde? Então a primeira vez em que um homem dela se aproximava com um sentimento que não era de indiferença, ela ia e o maltratava? Aos poucos lhe veio uma doçura de pensar que um homem, em nada inferior aos outros homens que conhecia, a desejava para mulher. Seu pensamento se fixava aí: ela era desejada para mulher. E se deliciava. Por uma manobra sutil desviava a questão que mais importava: a do casamento. Aceitava o Dr. Samuel para marido? Que é que lhe fazia deixar em suspenso esta pergunta como se fosse absurda? De repente lhe veio a idéia de vingança. Recusando o casamento que lhe ofereciam ela se vingava da indiferença com que os homens sempre a trataram. Uma bela vingança. Uma estúpida vingança. Uma estupidez pura e simples, devia dizer. Recusando o casamento, não se vingaria de ninguém. Pior: se maltratava. Não há dúvida, mas era essa a sua volúpia. O abandono de toda e qualquer vaidade feminina, aquela maneira deselegante de se vestir, aquela mania de contrariar a moda, aquela dureza diante dos homens, tudo isso não era natural. Ela sabia perfeitamente. Tudo isso era querido. E de tudo isso ela tirava orgulho. Um orgulho besta (ela sabia). Mais: uma volúpia (ela sentia). Havia momentos em que hesitava, quase se arrependia. Porém dizia: eu quis assim. Tinha traçado uma linha de vida e dela nada a afastaria. Nem o Dr. Samuel. Nem cem Drs. Samuéis. E lhe ficava (como sempre) a volúpia de pensar: Eu poderia fazer assim, entretanto fiz assado que era o mais difícil. Não me traí. E se me sacrifiquei foi a mim mesma.