Mana Maria/VI
Levantou-se às mesmas horas do costume. Qualquer hora que dormisse por mais tardia acordava sempre bem cedo. Não eram ainda oito horas e ela já tinha o livro embrulhado. Com um cartão entre a capa e o frontispício: "Maria H. Pereira, agradecida, devolve o romance Le mariage d'Huguette que leu com interesse." Mandou levá-lo logo depois do almoço. E avisou a copeira que não estava em casa para o Dr. Samuel Pinto. Nem que fosse para falar no telefone.
Naquela tarde precisava falar com o advogado por causa de um inquilino atrasado. Eram três horas quando ela perguntou para o empregado:
- O Dr. Tobias está?
Não estava, só voltava às cinco. Saiu. Em frente, o Cine Universal engolia um homem de fraque. Olhou o cartaz: Greta Garbo em Mulher Vendida. Detestava vampiros. Hesitou entre o cinema e uma volta vagabunda pela cidade. Cinema. A indicadora mostrou com uma lâmpada o único lugar vazio. Pescadores barbudos decepavam com um só golpe certeiro a cabeça dos peixes prateados.
E a orquestra tocava a Serenata de Toselli. Luz. O cavalheiro à sua esquerda murmurou: Perdão! E puxou a aba do fraque. Mana Maria se sentara na aba do fraque. O homem do fraque. Usava pencine. No cabaré fumarento Greta Garbo diante de um cálice vazio cismava com o olhar distante. E uma sujeita de boina fazia o possível para desviar a atenção do companheiro daquele olhar distante. Mana Maria percebeu a agitação do homem do fraque se remexendo na poltrona. Justo no momento em que o olhar distante como que por acaso se cruzou com o do seu admirador a mão do homem do fraque se pousou com hesitação na perna de mana Maria. Um pulo, um começo de escândalo e mana Maria precipitadamente demandou a saída. Na rua se perguntou se fizera bem em não esbofetear o imundo. E se respondeu que sim. Fizera bem. O que sentia era um misto de indignação e de nojo. Uma vontade de bater. Mas fora melhor assim. Cachorro. Um táxi passou. Tomou-o e mandou tocar para casa. O advogado ficava para outro dia. Fechou-se no quarto pensando que devia ter esbofeteado o cachorro.
Começou a andar (deu mais uma volta na chave do armário, endireitou uma cadeira, o vaso de flores, as almofadas), sentou-se na cama. E sentiu perfeitamente na perna esquerda um peso, uma pressão. Arrepiou-se, se levantou. Não tinha ninguém. De repente lhe veio essa idéia. Vivia sozinha. Vida estúpida de isolada. Não tinha mãe, o pai na rua o dia inteiro, a irmã no colégio o ano todo, não tinha amigas. Que coisa mais esquisita: não tinha amigas. Ia visitar tia Carlota.
O telefone tocou, depois a criada bateu na porta. Era o advogado. Que quinze dias de prazo, nada. Cinco no máximo. E se não pagasse, executasse. Deixou o telefone mais calma. A criada informou que o Dr. Samuel Pinto já telefonara duas vezes. Aí está. Tinha o Dr. Samuel Pinto. Dando ordens na cozinha, mexendo no jardim, verificando a conta do empório, não tirava o pensamento do Dr. Samuel Pinto.
Já não ia visitar tia Carlota. Já não se sentia tão sozinha. Mas como sempre a hipótese de um casamento era sumariamente afastada. Se contra a vontade atentava nela, todo o bem-estar que lhe produzia (quisesse ou não quisesse) a certeza daquela inclinação do Dr. Samuel desaparecia. Que esperança. Ainda que a mão fosse do marido e o marido fosse o Dr. Samuel. Que esperança. Pensava que não era bem isso. Não queria saber de homem e acabou-se. Nem de homem nem de coisa nenhuma. Pois mais duas telefonadas inúteis deu o Dr. Samuel aquele dia. E mana Maria cada vez mais calma, mais dona de sua vontade, mais senhora de si, mais mana Maria, desviou seu pensamento do Dr. Samuel Pinto, ouviu pacientemente a conversa inútil do pai, jantou bem, concluiu uma blusa de tricô, dormiu sossegada.