Mana Maria/VII

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Joaquim Pereira tirou o chapéu, estendeu o jornal para mana Maria:

- Tem uma notícia aí que interessa você.

E mostrou com o dedo. Mana Maria leu e fincando o olhar no pai:

- Interessa por quê?

Joaquim desconcertado por aquele olhar tão duro balbuciou:

- Por nada, ora! Por se tratar de seu médico moderno!

Mana Maria pôs o jornal na mesa, olhou de novo para o pai. Não. Não havia segunda intenção nenhuma nas palavras dele. E o olhar perdeu a dureza tranqüilizando o chefe de seção do Serviço Sanitário que começou logo a alinhar as vantagens de uma viagem de estudos aos Estados Unidos por conta da Missão Rockefeller. Dr. Samuel Pinto fora escolhido entre muitos candidatos e isso demonstrava o valor dele. Ia estudar a organização de hospitais de crianças. Estava feito na vida. Naturalmente o governo, assim que ele voltasse o incumbiria da fundação de hospitais, ou nomearia diretor-geral, o que o Dr. Samuel quisesse. Quanto à clientela, nem era bom falar.

Mana Maria ouviu e comentou:

- Política.

E apesar dos protestos do pai não disse mais nada. Um momento ela pensou na possibilidade de qualquer relação entre os propósitos casamenteiros do médico e aquela viagem. Viagem de núpcias à custa da Missão Rockefeller? Despeito por causa dela? O espírito crítico em mana Maria era bem mais forte do que qualquer sentimento de vaidade. Sem nenhuma emoção pendeu para a primeira hipótese. Ficava o desejo dele de se casar com ela. E isso era coisa resolvida, morta, não a preocupava mais. Não perdia tempo com coisas inúteis. A pretensão do Dr. Samuel era coisa inútil.

Todos os santos dias o Dr. Samuel telefonava para ouvir da criada que Dona Maria não estava em casa e nem dissera a que horas voltava. Até que uma tarde Joaquim Pereira chegou em casa com a notícia de que o Dr. Samuel estivera no Serviço Sanitário. Vinha encantado com o Dr. Samuel. Que moço mais amável. E inteligente. Conversa bonita. Dentro de três meses partia para os Estados Unidos. Estava aprendendo inglês. Falara muito em Ana Teresa, em mana Maria. É verdade. Ele não sabia que o Dr. Samuel tinha estado há pouco tempo com mana Maria. Houve um equívoco e ele pensou que o tinham chamado. Joaquim falou:

- Você não me contou nada. Ele me disse até que lhe emprestou um livro, um romance ou não sei quê, em francês?

Mana Maria confirmou percorrendo o jornal da tarde que o pai trouxera. Dr. Samuel fazia questão fechada de apresentar suas despedidas pessoalmente para mana Maria. E Joaquim lembrou:

- Se a gente oferecesse um jantar para ele hem? Que tal?

Mana Maria detrás do jornal respondeu:

- Não.

Que diabo. Mana Maria parece que já estava implicando com o moço que tratara tão bem de Ana Teresa e cobrara tão pouco. Não custava nada dar um jantar.

Mana Maria pôs o jornal no colo:

- Não, papai.

Pela primeira vez diante da filha, Joaquim Pereira tentou uma resistência. Pensasse bem. Ele se falava em jantar é porque o Dr. Samuel dera a entender, quer dizer, ele era muito delicado, moço educado, não falou claramente mas deixou perceber que teria grande prazer nisso e tal. Mana Maria examinava as unhas. E ele - que é que havia de fazer? - ele por sua vez prometera, quer dizer, não fizera um convite franco, mas insinuara também que possivelmente jantariam juntos e tal. Logo. Logo, porque o Dr. Samuel antes de embarcar para os Estados Unidos precisava passar uns tempos no Rio e quem sabe mesmo dar um pulo até Sergipe. Que diabo. Não custava nada fazer uma gentileza para o moço.

Mana Maria sem erguer o rosto virou os olhos na direção do pai:

- Pois ofereça o senhor o jantar num restaurante.

Joaquim se queixou:

- Você me põe numa situação!

Durante algum tempo jantaram em silêncio. Houve um momento porém em que Joaquim Pereira fez um gesto bem mal fingido de quem se lembra de repente:

- Que cabeça! Ele quer saber se você gostou do tal livro!

Mana Maria veio com outra pergunta:

- Ele, quem?

Joaquim se impacientou:

- Ora, quem! O Dr. Samuel!

Então mana Maria destacou as sílabas:

- De-tes-tei!

E a queixa voltou:

- Você me põe numa situação!

- Bem menos difícil do que o senhor pensa.

- Isso você diz. Agora eu tenho que dar uma resposta amanhã para o moço! Imagine a minha cara! Eu não sei ser malcriado, é uma coisa que não está em mim, que é que você quer que eu faça?

- Nada.

- Como, nada?

- Mas, papai, o senhor está dando importância a uma coisa que não tem nenhuma!

- Tem! Como é que não tem? Então o moço se desfaz em gentilezas e eu vou ser grosseiro para ele?

- Mas o senhor não vai ser grosseiro. Depois, não vejo onde estão as gentilezas do moço.

- Ah! bom! Você não vê as gentilezas! Ah! bom Então não discuto mais!

- Mas quem é que está discutindo, papai? Que nervosismo é esse? Homem!

- Sabe de uma coisa? Ele me pediu sua mão em casamento! Pronto! Acha pouco?

- Acho idiota.

Pela primeira vez o pai chegara a enganá-la por uns instantes. Nem ela podia imaginar que o Dr. Samuel Pinto ousasse tanto. Mesmo quando, com o nervosismo do pai, percebeu claramente que sob aquela insistência inacostumada havia uma intenção oculta não pensou num pedido formal de casamento. Naturalmente o Dr. Samuel, elogiando-a, dissera do seu desejo de constituir família, que nem falou para ela. E Joaquim Pereira pegara logo a coisa no ar.

Agora o silêncio punha entre os dois uma distância imensa. Joaquim acendeu um cigarro. Não compreendia aquela atitude da filha. Nunca pensara na possibilidade de um casamento para mana Maria. Nunca a realizara casada. Mas agora que uma oportunidade se oferecia todos os seus instintos casamenteiros de pai acordavam. E se irritava diante da oposição da filha.

Mana Maria aproximou o cinzeiro:

- Não derrube a cinza na toalha, papai.

Joaquim se levantou, deu alguns passos, parou ao lado da filha, teve um ímpeto carinhoso de levantar a cabeça de mana Maria pelo queixo, reprimiu-o, disse baixinho o que pensava:

- Mas eu não compreendo...

Mana Maria fingiu ajudar:

- O quê?

Essas interrupções (ela sabia) o desconcertavam sempre. Por isso engoliu o resto:

- Nada. Uma coisa aqui que eu... Nada.

Mana Maria dobrou os guardanapos, pós as xícaras de café na bandeja, saiu.

O pai pensou: - Vai escovar os dentes.

De fato: entrou no banheiro.

Aquela calma incrível o punha fora de si. Era pedida em casamento e ia escovar os dentes. Como todos os dias, como se aquele dia fosse igual aos outros. Uma calma irritante. Sua filha era um monstro. Pensou e se arrependeu envergonhado. Que maçada. Que maçada. Puxou o relógio: oito horas. Tinha um encontro na cidade às nove.

A copeira veio arranjar a sala, deu com ele, voltou. Mana Maria surgiu logo:

- Vamos para a saleta, papai, que a Ernestina; precisa acabar de tirar a mesa.

Mana Maria sentou no sofá, Joaquim hesitou um pouco e sentou ao lado. Pôs as mãos nos joelhos tomou coragem.

- Você pensou bem?

- Papai, é melhor dar por encerrado esse assunto. O senhor se irrita e não adianta nada.

- Mas que é que eu vou dizer pro moço?

- Que o pedido não foi aceito.

- Mas não foi aceito por quê?

- Porque eu não pretendo me casar.

- Mas não pretende por quê?

- Porque não.

Joaquim teve um gesto de desanimo. Depois lhe veio uma idéia:

- Mana Maria, você ama alguém!

- Ora, papai, deixe disso.

O tom era tal que ele mudou de tática:

- Você já refletiu sobre sua vida? Você já pensou na possibilidade de ficar só no mundo com Ana Teresa?

Mana Maria se contentou em sorrir. E ó pai (atentando no ridículo do argumento aos olhos de quem sempre soube se governar por si) procurou corrigir:

- Eu sei que você não precisa dos conselhos da ajuda de ninguém nesta vida. Mas um homem em casa sempre representa alguma coisa, que diabo!

Mana Maria com a boca semi-aberta sacudiu a cabeça primeiro, depois fincou o olhar nas pupilas do pai:

- O senhor está falando sério?

Joaquim perdeu o jeito de uma vez. Só teve uma saída:

- Você é sua mãe escarrada, nunca vi!

E acendeu outro cigarro. Ficou com o fósforo apagado na mão, quis guarda-lo na caixa, mana Maria apontou com o dedo:

- Olhe ali o cinzeiro.

Estava infeliz. Era inútil. Não podia com a filha. Mas lhe custava se declarar vencido. Tudo nele se revoltava contra a decisão de mana Maria. E por mais que se esforçasse não conseguia esconder o que lhe ia por dentro. Arquitetava e destruía planos. E se amesquinhava com a certeza humilhante de sua fraqueza. De repente lhe veio uma idéia. Não deu a si mesmo tempo para arrepender e disse:

- Muito que bem. Não digo mais nada Mas também lavo as mãos e não me meto mais nisso. Você que responda pro moço como entender. E boa noite que preciso sair.

Deu dois passos na direção do guarda-chapéus. Mana Maria falou devagarinho:

- Mas, papai, o senhor mesmo não sustentou há pouco a utilidade de um homem em casa? E me incumbe de uma coisa que cabe ao senhor? Ao senhor e mais ninguém?

Qual o quê. O melhor era se confessar mesmo vencido. Mana Maria reconheceu imediatamente o Joaquim Pereira de sempre:

- Amanhã no almoço a gente continua isso.

E sem esperança nenhuma:

- Até lá, você pense melhor.

E com a mão no trinco:

- O travesseiro é bom conselheiro. Até amanhã.

Mana Maria falou:

- Até logo.

Já no terraço, antes de fechar a porta, Joaquim balbuciou:

- Quero dizer: até logo.