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Mana Maria/IX

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Joaquim Pereira ainda não eram sete horas e já atropelava a filha:

- Você não vai se vestir?

- É cedo. Em cinco minutos eu me apronto.

- Está bem.

Mas positivamente não estava. Ia para o quarto, perfumava o lenço, dava uma escovada no cabelo, voltava para a saleta onde a filha lia um jornal da tarde.

- Olhe que já são sete horas!

Mana Maria pousou o jornal no colo:

- Mas, papai, que pressa é essa?

- Você sabe que eu gosto de comparecer na hora marcada. Acho uma falta de educação a gente chegar tarde.

- Fique sossegado que nós chegaremos a tempo.

E chegaram. Joaquim se demorou pagando o táxi. Depois, como a filha não se movesse da calçada, falou:

- Vá entrando, que eu tenho ainda de comprar cigarros na esquina.

Mana Maria entrou. E logo no hall, sentado entre tio Laerte e um irmão deste, Major Nicolau, membro do Instituto Histórico e Geográfico, deu com o Dr. Samuel Pinto. Instintivamente teve um movimento de recuo. Mas foi um segundo. Tio Laerte veio ao seu encontro. Visivelmente contrafeito.

- O Joaquim?

- Vem já.

Mana Maria apertou a mão do major. O Dr. Samuel Pinto estendeu a sua.

- Já se conhecem, não é verdade? falou tio Laerte.

- Já. Boa noite, doutor.

E quando o médico afogueado e sorridente observava que há muito não tinha o prazer de a ver, etc.:

- Com licença.

Tia Carlota estava na sala de jantar às voltas com um vaso de flores. A mulher do Major Nicolau contava as graças do neto. Tia Carlota se enrubesceu um instante. Mana Maria viu o rubor, falou entregando o presente:

- Para você perfumar seu aniversario.

- Ora, para que você foi se incomodar? Muito obrigada.

Esperava uma palavra de protesto, uma censura indignada. Mas a calma da sobrinha, seu ar de indiferença, a fez pensar que vinha avisada pelo pai ou ao menos com o espírito preparado. Antes assim. A presença do Dr. Samuel lhe fora anunciada horas antes. Ela protestara a princípio. Falou mesmo em indecência. Mas o marido, para sua grande surpresa, fincou o pé. E ela cedeu certa de que a sobrinha se indignaria, faria um escândalo, qualquer coisa assim. A responsabilidade não era dela. E isso mesmo pretendia explicar para mana Maria.

- Venha tirar o chapéu.

Foram para o toucador.

- Olhe, Maria, eu lhe dou minha palavra de honra que o convite ao Dr. Samuel...

- Eu estou lhe perguntando alguma coisa?

- Não. Mas eu faço questão que você saiba...

- Eu não quero saber nada.

Tia Carlota ficou sem jeito.

- Ao menos você não está zangada com comigo?

- Zangada propriamente, não. Surpresa. Nem isso. Está tudo certo.

E sorriu. O sorriso doeu em tia Carlota. Humilhou-a.

- Olhe, Maria, eu não sei o que você está pensando. Mas eu juro para você que seu pai e Laerte é que arranjaram essa embrulhada. Laerte só me avisou faz umas duas horas, se tanto. E me proibiu que prevenisse você.

Era verdade. Mana Maria sentiu. Nunca a tia lhe falara naquele tom de sinceridade.

- Acredito. Fique descansada que isso não tem importância nenhuma.

Voltaram para a sala de jantar. Uma porta envidraçada separava-a do hall. Tia Carlota falou:

- Façam o favor...

Joaquim foi o último a entrar. Parecia um menino chamado para receber o castigo da travessura. Seu olhar se encontrou com o da filha. Um segundo. Mas bastou para que ele percebesse o desastre. De forma que um mal-estar horrível tomou conta dele. Sem saber bem o que fazia olhou o relógio. O Major Nicolau caçoou:

- Que é isso? Está com pressa, homem? Quis dizer qualquer coisa, não soube, sorriu desenxabido. Tia Carlota colocou o Dr. Samuel à sua direita e para junto deste mana Maria se deixou empurrar por tio Laerte. Do outro lado da mesa redonda bem em frente ficou o pai. Dona Ester, mulher do Major Nicolau, perguntou para mana Maria:

- Ana Teresa como vai?

- Vai bem, obrigada.

- Já deve estar mocinha.

Dr. Samuel entrou na conversa:

- Guardo uma excelente impressão dela. Uma menina muito dócil, muito bem-educada. Deve lhe dar muita satisfação, pois não?

Mana Maria não respondeu.

- Imagine! É como se fosse filha dela! - falou tia Carlota.

- Esta sopa é de milho verde?

- É. Você não gosta? perguntou tio Laerte. O major falou:

- Gosto muito. Parece espargo.

- É espargo que se diz? Sempre ouvi dizer aspargo.

O major deu duro na mulher:

- Espargo, sim senhora! Aspargo falam as cozinheiras. Delas é que você ouviu dizer aspargo!

- Você está enganado! Ouvi dizer de muita gente boa.

- Ignorância.

- Mas que discussão! exclamou tia Carlota. Deixa isto para o Instituto Histórico, Nicolau.

- Se o senhor gosta de História, Dr. Samuel, tem aqui um entendido.

- A História é mestra da vida, minha senhora. Quem sabe História sabe o futuro.

- Bravos! aplaudiu o major.

- Para que saber o futuro, agora? Depois cartomante também sabe sem estudar História. Estou brincando, Nicolau, não vá se zangar.

O major arranjou um ar galante:

- Com você eu não me zango nunca.

O que amargou profundamente a mulher:

- Guarda toda a zanga para mim.

E começaram então a discutir, Dona Ester e tia Carlota atacando os maridos que fora de casa vendem alegria e no lar implicam com tudo, num mau humor constante. Dr. Samuel achou azado o momento para conversar em voz baixa com mana Maria:

- Se não fosse esse jantar eu não teria com certeza o prazer de cumprimentá-la antes de minha partida?

Mana Maria não abaixou a dela para responder:

- Com certeza não teria mesmo esse aborrecimento inútil.

- Aborrecimento? A senhora sabe perfeitamente que não seria.

Mana Maria com o olhar posto no pai, que desviara o seu, foi logo às do cabo:

- Mas eu creio que lhe dei uma resposta bem clara ao seu pedido de há dias. Só se não lhe transmitiram.

Insensivelmente abaixou a voz que tremeu um pouco. O Dr. Samuel sorriu amarelo:

- Transmitiram sem me tirar de todo a esperança. Depois, nós do Norte somos tenazes. Não cedemos diante do primeiro obstáculo não.

Mana Maria sentiu o rosto afogueado. Em torno dela era visível o mal-estar. A discussão sobre os maridos mal-humorados havia cessado. A razão daquela presença cerimoniosa, até então disfarçada, se patenteava grosseiramente mesmo aos olhos desprevenidos do major e sua mulher. Havia em todos um ar de condescendência contrafeita, de cumplicidade acanhada.

Tia Carlota querendo salvar a situação, piorou-a dirigindo-se ao cunhado:

- Que tristeza é essa, Joaquim? Não disse uma palavra até agora.

A resposta saiu tímida, arrastada:

- Eu? Eu estou... ouvindo... Não tenho... motivo nenhum para tristeza.

- Muito ao contrário - pensou sublinhar com malícia o major.

Mana Maria foi ganhando um nojo enorme daquela comédia toda. E com o nojo tinha pena do pai, do papel triste que ele fazia ali. Estava arrependido. Era visível. E temia as conseqüências, o pedido de explicação da filha, a censura fatal que o humilharia. Só o sentimento de sua superioridade dava a mana Maria a calma necessária para não estourar, acabar de uma vez com a farsa. Ela era a mais forte. E a consciência disso tornava sem importância o resto. e jantar podia durar a noite inteira, a vida inteira. Inutilmente. Ela era a mais forte.

Tia Carlota não tinha vontade nenhuma de conhecer os Estados Unidos.

- Aposto que o senhor vai se aborrecer, Dr. Samuel. É verdade que o senhor vai estudar, não vai se divertir.

- A senhora prefere a Europa?

- Tenho uma vontade louca de conhecer a Europa. Mas Laerte não se decide.

O olhar de tia Carlota era um olhar de subentendidos. Punha reticências, segunda intenção, na frase mais banal. Olhar que encorajava. Doutor Samuel aos poucos foi se entregando à sedução. Como um derivativo. Mana Maria discutia educação infantil com o major. Dona Ester contava graças do neto para o cunhado, tia Carlota e o médico pegaram a conversar entre sorrisos. Joaquim, sem dizer palavra, fingia prestar atenção a Dona Ester. Inteiramente voltada para o major, seu vizinho da direita, mana Maria defendia a educação religiosa. Até que uma risada mais alta e demorada de tia Carlota desviou para ela a atenção de todos.

- Sabem o que o doutor acaba de me confessar?

Doutor Samuel ficou uma pinóia.

- Acredita ainda no teu amor e uma cabana!

Ninguém achou graça. E o mal-estar voltou. O médico passou a odiar tia Carlota. Uma leviana. Uma mulher perigosa. Naturalmente tinha amantes. Ou então era dessas que de repente cortam a ponte que elas mesmas lançam. O major falou:

- Mas o Dr. Samuel tem toda razão, Carlota. O amor se contenta com pouco.

- Só que o doutor se esqueceu dos filhos - disse Dona Ester. - Os filhos completam a felicidade.

Tia Carlota estava de veneta:

- Que é que você entende por felicidade? Felicidade para mim é não pôr desgraçados no mundo Aí está!

- Ah! Bom ! você pensa assim...

Dr. Samuel achou oportuno se dirigir a mana Maria:

- As crianças são o encanto do mundo, a senhora não acha, Dona Maria?

Mas foi tia Carlota que respondeu:

- Para os médicos de crianças principalmente!

Então o Dr. Samuel, a princípio irritado, depois visivelmente deliciado com as próprias palavras, fez o elogio da criança. Para o Dr. Samuel, acreditassem, curar uma criança ele não poderia dizer que era um prazer. Sim. Podia. Era um prazer. Isto é: não era dos que curavam por obrigação, com mero fito de lucro. Não. Ele punha na salvação do corpo o mesmo ardor que um sacerdote poria na salvação da alma.

- Belas palavras, sim senhor ! - exclamou o major.

E partidas do coração, acreditassem. Do leito de uma criança doente ele nunca se aproximou sem piedade e nunca se afastou sem proveito. A infância e a velhice são as coisas mais sagradas deste mundo porque são as que se encontram mais perto de Deus. Sobretudo a primeira. Porque o velho vai para Deus purificar-se das misérias do mundo. E a criança vem pura de Deus, livre ainda das misérias terrenas.

- Bravos, doutor ! Eu sempre pensei assim! - falou Dona Ester.

E com razão. Os povos de civilização superior têm o culto da criança. Por quê? Porque a criança é o futuro, é o que conforta e sustenta os homens, aquilo que os anima ainda na hora da morte: a esperança.

- É isso mesmo! "Lasciate ogni speranza..." - aparteou tio Laerte.

Sim. Na porta do inferno. Ele poderia citar mil casos de sua clínica para provar a superioridade da criança. Mas seria repetir o que está na consciência de todos. Contaria um fato só, bastante eloqüente. Tratava ele uma menina, vítima de pertinaz moléstia infecciosa. Era órfã. Mas tinha ao seu lado quem lhe fizesse as vezes de mãe e de mãe extremosa. Um dia, examinando o termômetro, verificou que a doentinha ainda estava com febre.

E ele ia comunicar isso àquela que dia e noite na cabeceira da criança se desdobrava em desvelos verdadeiramente maternais, e que naquele momento se achava de costas para o leito, quando seu olhar se encontrou com o da doentinha. E naqueles olhos infantis de expressão puríssima, que a febre tornara ardentes, ele leu claramente um pedido a que não pôde deixar de se submeter: o pedido de não dizer nada, de não afligir a enfermeira dedicada, com a notícia de que a febre ainda não cedera. Só depois de se retirar do quarto, pondo seu dever de médico acima de tudo, é que ele fizera a comunicação com tanta grandeza de alma proibida pela criança.

- Lembra-se, Dona Maria?

Era a chave de ouro. Dona Ester emocionada quis falar:

- Meu netinho também...

Mas não pôde concluir. Porque o marido cobria sua voz:

- É o que eu sempre sustentei! Desses gestos só uma criança é capaz! Admirável! Admirável! E sem saber bem o que dizia:

- Meus cumprimentos, Joaquim! Também para você, Maria!

A admiração que sempre lhe causava a facilidade oratória do Doutor Samuel quebrara o embaraço mudo do chefe de seção do Serviço Sanitário:

- Sempre foi de fato uma menina de muitos sentimentos, Ana Teresa! Felizmente.

Mana Maria procurou uma saída para aquela cena ridícula. Falou no ouvido do major:

- Creio que é hora da saúde.

- É? Você acha? Não terá champanhe? Eu não vejo taça!

- É nesse copo comprido que servem.

O major observou:

- Futurismo.

E alto para o irmão:

- Como é, Seu Laerte, não tem champanhe para a saúde?

- Tem, como não!

De forma que depois de um ligeiro protesto de tia Carlota (para quem era bobagem essa história de saúde) se fez um silêncio de expectativa. A criada encheu os copos. Feito o quê, o major tomou a palavra de copo erguido:

- Carlota, queira receber os nossos votos de muita felicidade! Ad multos annos!

- Muito obrigada pela felicidade e pelo latim! É latim, não é?

- Do bom! Daquele que se ensinava no meu tempo, não desse de hoje.

Mana Maria perguntou sorrindo:

- Tem diferença?

Mas não obteve resposta porque tio Laerte bebia à saúde de Dona Ester, marido, filhos e netinhos. Pousados os copos, houve nova saúde levantada pelo major que desejou muita prosperidade para o caro Joaquim e suas gentilíssimas filhas. A criada surgiu com uma bandeja de sorvetes. Tio Laerte falou:

- Espere um pouco. Tem ainda uma saúde. À felicidade do Doutor Samuel e ao bom êxito de sua próxima viagem!

Dr. Samuel se declarou comovido no seu agradecimento. E reparou que mana Maria mal ergueu o copo sem levá-lo aos lábios. O major achou o sorvete ótimo. Joaquim e a filha concordaram. Dr. Samuel adiantou que nunca tomara tão bom. Dona Ester em vez do esperado elogio perguntou:

- Sua cozinheira que fez?

Tia Carlota falou:

- Quem mais?

- Podia ser de confeitaria.

O major se zangou:

- Êta mulher, meu Deus! Quando é que confeitaria já fez sorvete assim?

Dona Ester ostensivamente deixou o sorvete pela metade.

- Café aqui ou no hall?

- No hall - preferiu tio Laerte.

Tia Carlota se levantou. Sentada na cadeira de vime depois que o Dr. Samuel lhe acendeu o cigarro compôs seu olhar mais perigoso e disse baixo:

- Perdoe a minha brincadeira de há pouco.

- Ora, minha senhora! Eu é que lhe peço perdão de contrariar suas teorias amorosas. Naturalmente fruto de uma experiência que me falta..

Era a vingança. Acadêmico na Bahia, o Dr. Samuel ganhara fama de terrível ironista.

- Você acha?

Estranhou o você. Não. Com ironia não ia. Melhor ser cínico. Tinha sempre na lembrança o que lhe dissera sua mãe sobre as donas da alta sociedade: são as piores.

- Meu olho de clínico, minha senhora. Não falha.

Tia Carlota desviou o rosto, franziu as sobrancelhas, demorou o olhar na sobrinha que conversava com Dona Ester, encarou o doutor, disse num sorrisozinho:

- Então é certo o que dizem? Os médicos só acertam no diagnóstico e conseguem curar quando se trata de doença alheia? Quando eles mesmos ficam doentes não sabem se tratar?

Com mulher daquele tipo ele não sabia lidar. Não era a primeira vez que verificava isso.

- Que é que a senhora quer insinuar com isso?

Ela fingiu impaciência:

- Ora! Morda aqui! E a minha experiência amorosa onde é que está? Se quiser eu lhe servirei de médico-assistente.

- Não se brinca assim com os sentimentos alheios, minha senhora!

- Mas eu não estou brincando. E francamente acho seu caso desesperador, sem remédio...

Dr. Samuel ia ser malcriado. Positivamente. Com certeza tia Carlota percebeu isso no jeito nervoso dele. A criada entrava com o café, ela disse:

- Em todo o caso experimente uma xícara de café. Quem sabe fará bem...

Levantou-se, foi para junto da sobrinha. Então o major e Joaquim se aproximaram do médico. O major desenvolvia um de seus temas históricos prediletos: a vantagem que resultaria para o Brasil se tivesse vingado a colonização holandesa. E era uma de suas manias: não dizia Holanda, dizia Batávia. De forma que Joaquim concordava sem entender direito.

- Hein, doutor? Não é verdade? O Brasil colônia da Batávia! Que colosso.

O Dr. Samuel não estava disposto a discutir o que quer que fosse naquele momento. Sentia-se humilhado. Era homem que se humilhava com facilidade mas não inutilmente. Então o seu orgulho doía.

- Sob o ponto de vista da eugenia, por exemplo. Que é que o senhor acha?

O Dr. Samuel não quis achar nada:

- Não sei não. Seria um caso interessante a estudar.

- É um ignorante, pensou o major. E com redobrada segurança prosseguiu em suas considerações. Enquanto o médico procurava tomar uma resolução. Retirava-se. Despedia-se secamente e retirava-se. Logo. Mas isso era abandonar a luta e não era de seu feitio abandonar uma luta. Nem até então fora vencido em nenhuma. Quando Joaquim timidamente, por meias palavras, lhe comunicou a resposta da filha ao pedido de casamento, ele perguntara: O casamento é de seu gosto, pois não? Joaquim pela milésima vez disse que sim. E Dr. Samuel, dominando â vontade aquele homem sem nenhuma, obteve dele que arranjasse um encontro com a filha: - Eu a convencerei, tenho certeza. Mas de que forma? - Joaquim não descobria um jeito bom. Andava à procura dele quando lhe apareceu o concunhado para pedir depois de uma conversa muito longa cinco contos de réis por quinze dias. Cinco Joaquim não tinha. O que confessou sumamente envergonhado. Tinha (ia dizer três) mas insensivelmente saiu um. Disse, um, sentiu remorso, acrescentou: um e quinhentos. E ficou em paz com sua consciência. Tio Laerte guardou o cheque e ouviu as queixas de Joaquim.

- Então não quer casar mesmo?

- Veja você. Recusar um partido dessa ordem!

- E ele continua firme? Firmíssimo.

- Ah! Então fique tranqüilo. A Maria acaba cedendo. Você não conhece nortista.

A questão é que conhecia a filha. Contou o embaraço em que estava. E foi então que tio Laerte sugeriu convidar o pretendente para o jantar de aniversário da mulher. Esta ficaria por conta dele. Joaquim (como sempre) relutou em aceitar a idéia. Mas o cunhado avocou para si toda a responsabilidade:

- Se ela ficar zangada, você manda falar comigo.

Joaquim cedeu:

- Assim, sim.

Apertou agradecido a mão do concunhado (podia ter dito dois contos), recusou os agradecimentos dele, comunicou logo o plano ao Dr. Samuel.

- Olhe que é a última tentativa que eu faço. Dr. Samuel garantiu que nem era necessária outra. E entregava os pontos? Não entregava.

- Já disse para os confrades do Instituto Histórico e estou pronto a repetir onde e quando queiram: se o Brasil tivesse passado para o domínio da Batávia seria hoje o primeiro país do mundo!

Joaquim arriscou uma pergunta tímida!

- Maior que a Inglaterra?

- Maior que a Inglaterra!

Tio Laerte perguntou:

- Que é que é maior que a Inglaterra, Nicolau?

E informado do que se tratava deixou o grupo das mulheres para discutir com o irmão. O que ele fazia sempre para pôr em destaque os conhecimentos históricos do major, sua grande admiração. Fazia umas objeçõezinhas que ele mesmo sabia idiotas para o major responder com vantagem. O Dr. Samuel se decidiu e entrou na conversa das mulheres. Dona Ester falava do netinho. Não tinha outro assunto.

- Que idade tem ele, minha senhora?

- Vai fazer quatro anos em agosto.

- É forte?

- Oh! uma criança linda! Só queria que o senhor visse!

Por enquanto ele não tirava os olhos de mana Maria. Mas como dizer o que queria na presença das outras? Se não o deixavam a sós com ela por que aquele jantar? Tia Carlota falou:

- Sente-se, doutor.

Sentou-se no canapé de vime ao lado de mana Maria. O olhar malicioso de tia Carlota irritava-o. Aquela mulherzinha estava se divertindo à custa dele.

Tinha umas pernas bonitas a sem-vergonha. Dona Ester traçava um plano de educação para o netinho:

- Eu já disse para Nini. Nada de botar o menino desde cedo num colégio. A melhor educação é a que se dá em casa. Dizem que os comunistas na Rússia separam as crianças das mães. Comigo, eles veriam! Preferia matar meu filho a entregar para os bandidos! O senhor não é comunista?

- Sou adversário decidido do comunismo, minha senhora! A sociedade não prescinde dessa célula que é a família e o comunismo destroi a família! Ainda há pouco li um estudo...

Tia Carlota interrompeu:

- Comunista aqui só existe a Maria.

Dona Ester se sacudiu toda na cadeira:

- Que horror, minha filha! É verdade?

- Brincadeira de tia Carlota.

- Não é não. Você é comunista.

Doutor Samuel interveio:

- Dona Maria naturalmente é uma inteligência aberta às reformas sociais. Percebe, como todos nós, os erros do regime capitalista e quer...

- Não! Eu não posso acreditar que Maria seja comunista! Que horror, meu Deus!

Mana Maria sossegou Dona Ester:

- Não acredite. Tia Carlota gosta de brincar. Eu tenho um instinto de propriedade tremendo. O que é meu é meu. E em geral só gosto do que me pertence. Não poderia morar numa casa que não fosse minha.

Levantou-se.

- E vou para ela, papai, minha casa que já são horas. Papai, vamos indo?

Disse num tom tão brusco que assustou tia Carlota, incomodou Dona Ester, empalideceu o Dr. Samuel. Joaquim perguntou de mansinho:

- Você falou comigo?

Tia Carlota não deixou a sobrinha responder:

- Não é nada, Joaquim! Pode continuar sua conversa!

Mana Maria se arrependia mas não cedia. A idéia lhe veio de repente, ela falou, se levantou, não se sentava mais.

- Não, papai. São horas. Vamos?

Tia Carlota teimou:

- Não admito! Que horas, coisa nenhuma! Sente-se, Maria, deixe de ser boba!

- Não. Se papai quiser ficar, eu vou sozinha. Mais uma vez (tinha consciência disso) decidia o seu destino.

E abandonando o caminho que para outras seria o mais agradável ou o menos desagradável (para ela também, quem sabe, não queria saber) escolhia o outro, o dela, onde seria sozinha. Joaquim não dizia palavra, ar de tonto, hesitando. A filha decidiu por ele:

- Fique papai. Naturalmente tio Laerte quer jogar. Eu tomo um táxi. Não tem importância. Com licença.

Foi pôr o chapéu. Dona Ester falou baixinho para o Doutor Samuel:

- Ela teria ficado aborrecida com o negócio do comunismo?

- Como, minha senhora?

- A conversa sobre o comunismo parece que contrariou a moça.

O Doutor Samuel pôs um profundo sarcasmo na voz:

- Não foi isso não, minha senhora! A razão é outra. Eu conheço bem esses temperamentos. Freud explica isso.

- Quem?

- Freud. A senhora nunca ouviu falar em Freud?

- Não. Quer dizer...

- Pois Freud explica o caso perfeitamente, esses nervosismos subitâneos, essas explosões.

Tia Carlota seguira a sobrinha.

- Eu compreendo sua vontade de ir embora. mas faça um esforço e fique mais um pouco.

Mana Maria disse que não, que estava de fato cansada, se levantara muito cedo, passara a tarde inteira na cidade fazendo compras, queria dormir.

- Está bem. Mas não guarde nenhuma raiva de mim.

- Raiva por quê?

Enquanto a sobrinha punha o chapéu (foi um segundo), calçava as luvas (nem arranjara o rosto). Tia Carlota aprovava a resolução da sobrinha:

- Você quer saber de uma coisa? Você tem toda a razão. É um bocó de mola. Quer dizer: todo metido a sebo, falando difícil, teimoso (eu gosto de homem teimoso), mas um bocó. Depois, feio! Parece um sapo. Papapá, papapá, papapá, minha senhora pra cá, minha senhora pra lá, medicina é sacerdócio. família é não sei quê, não vai não.

Mana Maria (estava nervosa) falou:

- Pois eu pensei o contrário. Pensei que ele tinha agradado você.

- Por quê? Porque brinquei com ele?

- É...

- Xii, Maria, você não me conhece!

Sorriu, acrescentou com um brilho nos olhos:

- Quando eu quero de verdade ninguém resiste...

Outra qualquer dizendo isso irritaria mana Maria. Tia Carlota era diferente. Era uma menina louca. Mana Maria falou e abriu a porta:

- Eu imagino.

- Como os homens são idiotas, meu Deus!

Mana Maria quis chamar um táxi.

- Não. Eu mando levar você. O chofer está aí para isso.

Mana Maria não aceitava nada de ninguém:

- Para quê? Eu vou bem de táxi.

- Não, senhora. Um marido eu compreendo que se recuse. Mas um automóvel não admito. É o cúmulo.

Agora era o momento difícil da despedida. Ninguém se sentia à vontade. Mana Maria apertou a mão do major:

- Boa noite, major.

- Então, já vai?

- Já.

- Boa noite.

Apertou a mão mole (mana Maria desconfiava de quem não punha energia no aperto de mão) de tio Laerte:

- Até qualquer dia.

- Quer deixar mesmo a gente tão cedo?

- Preciso.

- Vá com Deus.

Apertou a mão de Dona Ester (mana Maria detestava beijos):

- Lembranças para Nini. E para o netinho também.

- Você precisa marcar um dia para conhecer ele.

- Qualquer dia telefono.

- Não deixe mesmo de telefonar.

Apertou a mão do Doutor Samuel sem dizer palavra. Só uma ligeira inclinação de cabeça. Foi comoção, foi qualquer coisa. ele reteve a mão enluvada murmurando:

- Muito prazer...

Com um ligeiro puxão, ela se desembaraçou, disse para o pai:

- Então, até logo.

- Até logo. Eu não demoro muito.

Tia Carlota acompanhou-a até o terraço:

- Desse você está livre.