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Mana Maria/X

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Felizmente para Joaquim o Doutor Samuel logo depois da saída de mana Maria retirou-se também. Não se justificava mais a presença dele, não havia mais conversa que pegasse, tio Laerte propôs que se jogasse bridge, Doutor Samuel não jogava, tio Laerte por delicadeza retirou a proposta, ele compreendeu:

- Eu peço licença para me retirar.

Foi uma despedida fria, remate rápido de um aborrecimento. Joaquim se sentiu aliviado, readquiriu a fala, pediu para a cunhada tocar, desafiou os campeões presentes para um bridge bravo. Estava por ora livre do que ele mais detestava no mundo: uma explicação. E no caso eram duas. Mas a filha estaria dormindo quando ele chegasse em casa e o Dr. Samuel ficaria para o dia seguinte. Com certeza ele o procuraria no Serviço Sanitário. E seria uma conversa desagradável. Paciência. Até lá o homem se acalmaria, se convenceria de que malhava em ferro frio. E quanto à filha, ele a conhecia. Só falaria se provocada. O pai não tocando no assunto, ela também não tocaria.

O licor aumentou o seu bem-estar. Já meia-noite passada tomou o caminho de casa. A pé para fazer um pouco de exercício. Se fosse ver a Zoraide? Não. Sem telefonar primeiro era arriscado.

- Táxi, doutor?

- Não.

Dobrou a esquina. Ninguém. É bom surpreender assim as ruas desertas no silêncio noturno. De dia a atenção se perde no bonde que passa, na casca de banana, no pregão dos vendedores ambulantes, nuns olhos, num palavrão, num anúncio. A gente vê perto e vê baixo. Das casas só tem importância a vitrina das de comércio, o número das de moradia. De noite, tudo muda. Não há perigo de esbarros, de atropelamentos. A vista se alonga desembaraçada. É possível parar, erguer a cabeça, embasbacar, cismar, examinar, não há respeito humano. E a rua: postes, árvores, jardins. fachadas. Os homens dormem: a rua vela. Ele não saberia exprimir (não era literato, graças a Deus) a sensação gostosa que lhe davam essas voltas a pé para casa noite alta. Mas era evidente que se sentia mais forte, mais homem, o único homem. De dia se anulava na multidão, era ninguém. De noite ganhava outro relevo na sua solidão, uma certeza mais grata de sua realidade. Ouvia os próprios passos, via a própria sombra.

Dobrou a esquina. Ninguém. Era como se a rua dissesse: - Pode passar, trânsito livre. Depois na noite vazia, silenciosa, o cheiro dos jardins é mais forte, a feitura das casas mais branda, as calçadas mais largas, as esquinas mais misteriosas. A imaginação tem campo livre. Os homens são prisioneiros das casas, tranca na porta, cadeado no portão. Está reintegrada a rua na posse de si mesma, no gozo de sua liberdade. Tal como é e não como a fazem e sujam os homens, a desfiguram os homens de dia. Deserta a cena, vive o cenário. Através das venezianas no terceiro andar da casa de apartamento se escoa uma luz vermelha. Se ele fosse ver a Zoraide? Quase uma hora. Tarde demais.

Dobrou a esquina. Alguém. Ainda distante, na mesma calçada, cambaleando. Embriagado. Melhor atravessar a rua. Detestava bêbados, tinha pavor de bêbados. O vulto colou-se à árvore. Depois se equilibrou na guia do passeio, pesadamente desceu ao leito da rua. Joaquim resolveu não mudar de calçada. Agora o bêbado olhava o céu. Lua cheia. Tirou a palheta. Era o Platão de Castro. Joaquim apressou o passo.

- Ó Pereirinha!

- Como vai, Platão?

Não parou.

- Espere aí um pouco!

- Não posso. Estou com pressa!

Platão berrou:

- Es-pe-re, seu canalha!

Quis correr, estatelou-se nos paralelepípedos. Joaquim se voltou, teve pena, foi erguer o bêbado.

- Não precisa me ajudar! Eu me levanto sozinho.

Mas Joaquim ajudou. Depois ergueu a palheta.

- Vá dormir, Platão!

- Não. Quero propor uma coisa para você.

- Agora não tenho tempo.

- Fique ai, seu! Está vendo a lua? Responda. Está vendo a lua?

- Estou.

- Não tem pena dela, não? Responda. Segurou o braço de Joaquim.

- Tenho.

- Então vamos latir para ela pensar que é cachorro.

Joaquim puxou o braço, empurrou o bêbado, quase o derrubou, saiu na disparada. Platão gritava:

- Pereirinha, você não é poeta, Peireirinha! Seu animal! Seu bandido! Seu bêbado!

Dobrou a esquina. Três varredeiras da Prefeitura. A poeira subia em caracol, se esborrachava nas arvores, nos postes, nas fachadas. Joaquim tapou com o lenço nariz e boca, furou a nuvem de olhos fechados. A moreninha do 79 suicidou-se três dias antes com lisol. O que ela tinha de mais bonito era o andar. Coisa mais provocante. Imaginem aquela perfeição debaixo da terra apodrecendo. Que horror. De Purezinha então só podiam restar ossos. Para que pensar nessas coisas? Mas pensava sempre, era um sofrimento.

Dobrou a esquina. Ninguém. A magnólia plantada por Purezinha estendia um ramo sobre a calçada. Pensando bem, não há nada como ter uma casa: a casa da gente. Pátria, podem falar o que quiserem, pátria, bobagem. Ele não pegaria em armas para defender a pátria. Mas atacassem a casa dele para ver. Nunca imaginou que pudesse haver porão fedido como o da viúva do médico italiano. Um cheiro de gato, impossível. Empestava a calçada. Atravessou a rua pensando que a noite não estava assim tão quente. E sentiu em toda a sua plenitude essa delícia que é chegar.