Mana Maria/XI

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Adelaide, portuguesa peituda, cantava lavando o terraço. A cometa do tripeiro soou na esquina, insistiu inutilmente diante do 52 (Adelaide não deu importância), foi soar em outra freguesia.

- Estado! Fanfulla! Fôôôlha!

O caminhão da Antártica passou sacudindo as casas. Cozinheiras iam e voltavam da feira carregando cestas, os chinelos estalavam nas calçadas.

- É a sorte de hoje! É o cavalo com 43!

Adelaide largou escova, balde e pano, correu para dentro de casa.

- Garrafeiro! Garrafa vazia! Garrafeiro!

A viúva de quimono curto veio mostrar as pernas gordas na calçada. A carroça com a mudança pobre rodava devagarzinho. No meio da rua. O italiano de preto tapou o sol com o maço de bilhetes para ver o aeroplano. A sereia da Assistência uivou numa rua próxima.

- É a Paulista com 100 contos! Último inteiro para hoje!

Adelaide desceu depressa a escada de mármore, entregou para o italiano dos bilhetes duzentos réis embrulhados num papelzinho. De sandálias sem meia, acompanhados pela criada vesga, passaram os quatro filhos menores impúberes, uma escadinha, do Doutor Laurindo de Sá. Um mulato de palheta com uma carta na mão, olhava o número das casas. Escorregou na casca de banana, se equilibrou, riu de seu quase tombo, entregou para Adelaide espiando no portão o envelope cor do céu.

- Tem resposta?

- Ele não me disse para esperar é porque não tem. Até logo.

Mana Maria lia no Estado o crime passional que agitara o bairro da Moóca enlutando dois lares húngaros, quando Adelaide lhe entregou a carta. Conheceu logo sem nenhuma surpresa a letra esparramada do Dr. Samuel, a letra das receitas: tome de duas em duas horas diluído em um cálice de água. E de novo a indecisão como acontecera com o livro: lia não lia, lia não lia. Mana Maria disse para si mesma que não era assim. Essa maldita história, é que a estava deixando hesitante. Pensar isso foi o suficiente para deliberar logo abrir o envelope. Sabia o que estava dentro. Mas também podia ser que não fosse o que pensava. Quando menina tinha absoluta certeza da soma que o cofre continha. Contava todos os dias, escondia a chave debaixo do colchão. E todos os dias o abria, contava os níqueis com uma esperançazinha louca de que tivesse mais.

Enchia quatro páginas e dizia assim:

"Senhorinha!

O vosso orgulho ou a vossa mórbida indiferença recusaram a proposta honesta que eu fiz, menos por mim, que sou homem e sei vencer na vida, do que por vós, que sois mulher e tendes necessidade de um amparo outro que não o paterno ou o fraterno. Recusastes e eu, nas vésperas de uma viagem, que tenho a certeza será mais um triunfo na minha carreira, não quero insistir, embora certo de que não refletistes bem sobre a excelsitude do destino que, ao meu lado, como senhora do meu lar cristão, vos esperava! Não vos dirijo esta, pois, para vos desvendar um coração alanceado e pedir-vos misericórdia. Não! Almejo precisamente desiludir-vos sobre o mal que porventura pensais haver-me feito e tirar-vos assim qualquer possibilidade de remorso. Sou moço, sinto-me forte e pertenço a uma raça de bravos que a adversidade não abate e atemoriza. A vossa atitude nenhum golpe representou para mim, que na luta retempero minhas energias de brasileiro digno e profissional honrado. Se vos disserem que sofro, não acrediteis. Posso vos assegurar até, sob palavra de honra, com o pensamento voltado para Aquele que julga todos os nossos atos e intenções mais recônditas, que se pressuroso me mostrei às vezes, foi por instigação de vosso pai, tomado do nobre desejo de vos dar companheiro dedicado e fiel, capaz de vos tornar menos cruel e monótona a existência e concretizar dignamente os vossos sonhos de mulher. Assim não quisestes talvez para felicidade minha!... Não vos preocupeis comigo. E onde quer que me conduzam o meu trabalho, o meu talento, a minha capacidade e a minha estrela, contai, sempre, por maior que seja a vossa precisão, com os meus sentimentos cristãos de solidariedade humana. Vosso respeitoso servo,

Samuel Pinto."

Ficou com a carta na mão avaliando o despeito enorme dele. Sujeitinho besta. Ferido no seu orgulho quis humilhá-la. Coitado. Não sabia com quem se metera. Ela podia ainda guardar uma lembrança de certo modo simpática do desgraçado. Mas depois dessa carta só tinha nojo. Aquilo era uma cusparada de vencido. Ela vira uma vez na calçada de sua casa uma briga de meninos. O que apanhou, deitando sangue pelo nariz, estendido no cimento, quando o outro se afastava, cuspiu-lhe nas costas. Mana Maria fazia questão de guardar aquela cusparada idiota. Foi para o quarto, abriu a secretária, guardou ao lado de outros papéis, contas do colégio de Ana Teresa, recibos de impostos. Depois se debruçou na janela. Seu Manuel jardineiro (um dia por semana ela o tratava para arranjar o jardim) podava devagar uma roseira. Conversando com o entregador mulato da Confeitaria Esmeralda, cesta vazia debaixo do braço.

- Seu Manuel, o senhor não entende nada de mulher!

- Pois sim.

Tinha um ar canalha e chupava um cigarro.

- Não entende não. Acredite no que estou lhe dizendo, Seu Manuel. Não há como mulher do interior!

Seu Manuel sacudia a cabeça. Mana Maria achou que devia sair da janela mas ficou escutando.

- Mulher da capital é besta, quer dinheiro, chama a polícia, Deus me livre!

- Pois aqui onde me vê já tenho papado muitas e nunca tive motivo de queixa.

Envergonhada, uma quentura no rosto, incomodada, ela deixou a janela.

- E porque o senhor não sabe o que é coisa boa. Olhe, seu Manuel: mulher do interior a gente derruba ela, ela cai sempre de jeito, prontinha!

- Explica isso melhor, rapaz. Conta cá como é essa caída assim tão jeitosa.

Então aquele domínio sobre si mesma, mais forte que a sua vontade, que a fazia sempre retroceder na hora de dar o último passo, que a retinha no momento exato da condescendência, da derrota, da fraqueza, o que fosse, arrancou mana Maria da janela, abruptamente. Voltou para o escritório, pegou o jornal, sentou-se. Porém a tragédia passional do bairro da Moóca não a interessava mais. Resolveu ver quem havia morrido. Falecimentos. Correu os nomes, não conhecia nenhum. Deu nela vontade de voltar para o crime dos húngaros, mas foi um instante só. Jogou o jornal no sofá, levantou-se decidida a ir visitar o túmulo da mãe. Numa das reviravoltas comuns de seu espírito. Passar do preto para o branco, limpar-se neste das impurezas daquele. A conversa do jardim a perturbava, a revoltava, talvez prosseguisse entre detalhes canalhas, ia acabar com ela.

Chamou a copeira:

- Diga pra Seu Manuel cortar umas dálias, um molho grande. Mas sem demora, imediatamente!

No quarto, vestindo-se depressa, ouviu a Maria gritar a ordem ao jardineiro, depois os passos do mulato do armazém na direção do portão. E gozou malvadamente a interrupção da conversa indecorosa. Não, não podia admitir essas coisas na sua casa. Essas coisas. Ora que estupidez, mulher do interior, mulato imundo. Não podia precisar a sensação de proibido, de vergonhoso que aquilo lhe dava. Era lixo, isso tinha a certeza de que era, não adiantava esclarecer que espécie de lixo. Era e acabou-se.

Pediu um táxi fechado. Seu Manuel cortava periquitos perto do portão, ela sem olhar mal respondeu ao cumprimento respeitoso dele, fingiu pressa, ainda fora do automóvel deu o endereço para o chofer:

- Consolação.

- Cemitério?

- É.

Dentro do vasto quadrilátero de muros altos, nenhum ar triste e sim frio de limpeza e ordem. Ali cada um se despede do atropelo e da confusão da vida, tem seu lugar na morte. Sobrepostos, lado a lado, apodrecendo jazem. Como a areia das ruas retas, a pedra dos túmulos alveja sob o sol que murcha as flores. Os ciprestes montam guarda, o verde-escuro deles acaba oscilando em ponta, ao vento. Troncos partidos, anjos em prece, cruzes, as sepulturas ricas, as sepulturas bonitas, as sepulturas pobres, as sepulturas feias, bem tratadas, maltratadas, não há igualdade. Os ruídos da rua atravessam o silêncio de arquivo, biblioteca, depósito, silêncio de morte. Os que passam lá fora tiram o chapéu, os que entram pisam de leve, a atitude não é propriamente de respeito mas de cerimônia. Também acanhamento.

Mana Maria ia notando os túmulos novos. Aquele de esfinge deve ser de sírio. Não disse? Família Yasi. A italiana de papoula no chapéu preto parou também, admirou, perguntou:

- É um leão?

Informou de má vontade:

- Não: esfinge.

- Ah sei! Finge de leão. É belo!

Não teve vontade de rir. Nem de sorrir. Prosseguiu de rosto fechado. Quebrou à direita, quebrou à esquerda, estacou. Pôs as flores nos dois vasos de mármore, ajoelhou-se, apoiou os cotovelos na lápide, juntou as mãos, nelas encostou a testa, ficou pensando. Padre Raimundo dizia: A melhor oração é a que o coração improvisa. Ajudada pela enfermeira, ela vestira o corpo magro da mãe ouvindo as marteladas dos homens da empresa funerária na sala de visitas. Não chorara. Não. Quando todos se puseram de joelhos no quarto mal-alumiado e só ela de pé, debruçada sobre o leito, sustinha entre os dedos da que morria a vela acesa da agonia lhe veio a decisão de não chorar. E não chorou. Nem quando o caixão florido se fechou, nem quando ele saiu pela porta do terraço, nem quando o pai voltou (ele sim, chorando) e lhe deu a chave presa numa fita roxa para guardar:

- Minha filha!

- Coragem, papai, vá descansar.

Ela tinha coragem e não precisava de descanso. Ela era a forte, a dominadora, a incorruptível. A que resistia contra tudo, contra todos, contra ela mesma. A serviço do quê? De sua memória, mamãe.

Levantou-se. Era falso. Não: era verdadeiro. Ela substituía a mãe naquela casa, naquela família que Dona Purezínha dirigia sem oposição. Por isso não podia casar. Por isso tinha de ser dura, só pensar na missão a cumprir. Grandes palavras. Sentiu-se ridícula. Ajoelhou-se. "Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo. Amém. Ave Maria, cheia de graça..."

Alguém parou junto dela.

- Ia justamente procurar o senhor. Tem água no regador? Ponha nos vasos.

O homem levou a mão no chapéu, fez o que ela mandou. ".... e na hora da nossa morte, Amém. Em nome do Padre, do Filho, do Espírito Santo. Amém."

- Está satisfeita com o meu serviço? É um túmulo de que não descuido.

- Estou. Eu lhe devo um mês?

- Ia amanhã à sua casa buscar o dinheiro.

- Eu pago já.

O homem agradeceu (quem pagaria para tratarem o túmulo quando ela morresse?), mana Maria foi andando devagar. Olhou o relógio: 11 horas. Na área principal deu com um enterro que chegava. Atrás do caixão um velho caminhava, o lenço nos olhos, amparado por dois moços também chorosos. O padre com o livro de orações protegia a vista contra o sol forte. Pouca gente. O sino da capela tocou. Mana Maria deu 400 réis para a negra velha. Não costumava dar esmolas não. Mas sentiu que ali devia dar. Estava um pouquinho comovida. No enterro dela não viria ninguém. Era capaz até de faltar gente para carregar o caixão. Morreria num hospital. Para não dar trabalho para ninguém. Foi descendo a Rua da Consolação ao longo do muro do cemitério. Na frente dela duas meninas de sandália carregavam uma cesta de lavadeira. Como um caixão. Uma de cada lado segurando na alça. Apressou o passo, na esquina tomou um táxi. Do automóvel ainda viu as meninas que haviam pousado a cesta na calçada, descansavam alegres.


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