Marános/Canto 2

Wikisource, a biblioteca livre
II


MARÁNOS E A PASTORA




Já da serra fronteira a bela Aurora
Nascia toda luz; e já nas fontes
Os seus cabelos de oiro derramava
E nas encostas ingremes dos montes,
Quando a brisa pousando a sua mão
No rôsto de Marános, o acordou;
E sentiu novamente o coração
Bater ... e extasiado olhára o mundo!
Que divina alegria mysteriosa
Parecia descer na luz do sol
E inundar a Paisagem radiosa,
Cravejada de lumes e de côres.
E Marános sorria n'um desejo
De cantar, de voar! E no seu corpo
Um vago, esparso, indefinido beijo
Acendia-lhe o sangue alvoroçado.
E como as aves cantam, de manhã,
Alegre, ele cantava unicamente
Por se sentir viver!
 E n'um delirio
De pura exaltação e amor ardente
Que toca as proprias cousas insensíveis,
Voltado para o céu, que era uma flôr
Desprendida da Terra, assim dizia:


«Hora do eterno e do fecundo amor!
Hora em que acima do horizonte escuro
Se encontram, rosto a rosto, o Sol e a Lua!
Hora estranha e sagrada do Futuro,
Hora da nova prece, hora bemdita!
Hora em que o Sol e a Lua se contemplam
Em casto amor e doce claridade;
Hora do Idylio cosmico e profundo,
—Beijo que é o Tempo; amor que é a Eternidade!
Hora em que a Vida e a Morte, n'um abraço
Se casam e fecundam! Hora estranha!
Hora de sombra e luz! Hora das minhas
Trindades! Hora santa em que a Montanha
É alma e corpo; é rocha e nevoeiro...
De joelhos, orando, eu te saúdo,
Como a sombra sósinha d'um pinheiro,
Com suas mãos phantasticas erguidas,
Saúda o Corpo e a Luz que a procrearam.»


Depois beijou a terra, onde seus olhos
A aparição da Noite contemplaram
E a divina surpreza da Manhã...
Era um logar alegre que nos fala
Á alma, por ter alma como nós...
Alma antiga e profunda que se exhala
Das cousas; e, subindo no ar parado,
Enevôa de sonho e de emoção
As ramagens extaticas das arvores
Que vivem mais de luar e solidão
Do que da propria terra onde nasceram.
Era um amavel sitio, onde os pinheiros
Viviam mais alegres e libertos
Dos tôrvos e noturnos nevoeiros,
No céu vibrante de azas e de luz.
E ali perto, uma fonte seu murmurio
De gloria ao Sol bemdito murmurava:
Era a onda de agua clara que a ternura
Em onda de harmonia transformava...
E Marános ouviu subitamente,
Pela primeira vez, a clara fonte,
Como se ela mais viva, de repente,
Se puzesse a cantar em alta voz.
E ancioso, voltou-se para aquela
Doce canção das aguas, quando viu,
A pequena distancia, uma Donzela
Sósinha, apascentando o seu rebanho.
E ao ver-se contemplada, se tornou
Mais timida e inquieta... e um roseo alvor,
Acêso em sua fronte, se casou
Com o sol já mais alto dos seus olhos.


E Marános olhava surprehendido
A Pastorinha mystica e selvatica...
E em torno dela, assim como esquecido,
O rebanho pastava nas encostas.


Era formosa e linda em sua graça
Tangível e corporea; o sangue vivo
Punha um signal de vida e realidade
Em seu rosto perfeito; e um primitivo
Ar inocente e agréste lhe pairava
Na limpidez da fronte; e nos seus olhos,
D'um negro sério e mystico, brilhava
A luz da Edade de Oiro; e sua clara,
Diaphana atitude harmoniosa
Subia para o sol da terra escura,
N'um impeto tão firme e embrandecido,
Que era uma estatua em marmore e ternura.


E Marános julgou que regressára,
Com a luz da manhã, a bela Imagem
Que a Noite, para longe, lhe levara;
Mas logo viu que tinha ao pé de si
Corpo vivo e sensivel, e que um ventre
O concebêra em ancias de pecado
E de prazer divino, e o déra á luz
Do mundo ... E então lhe disse deslumbrado:


«Ó linda Flôr dramatica e animal!
Eva, filha do Amôr, em ti saúdo
O divino pecado original
E a Dôr que multiplica as creaturas!
És a Mulher, a Sombra primitiva
Que deu á luz gritando a luz do sol!
O beijo da Creação, a Estrela viva,
A alegria dos Homens e dos Deuses.
O sangue espiritual da Natureza
Percorre as tuas veias, florescendo
Em sympathia e candida beleza
Á superficie virgem do teu rosto;
E depois, tua fronte emoldurando,
Tornou-se negro, esparso ... e é teu cabelo.
E seus fios remotos vão prender-se
Á estrela d'alva, ao sol, ao sete-estrêlo!
Porque a tua beleza esclarecida
Não termina em teu rosto, e se prolonga,
E vôa, e sobe, e abrange toda a Vida
E todo o céu, o inferno e toda a Morte!
Onde termina a côr que tens na face?
Onde começa a luz do teu olhar?
O céu beija-te os lábios; e esse beijo
Através d'ele vôa sem parar,
Dando ás nuvens o fogo que as devora,
E dando á estrela a luz que ela derrama;
E põe nas aureas mãos da Deusa Aurora
O eterno Facho ardente e fecundante».


E Marános olhava para aquele
Encanto, n'um desejo! como quem
No seu olhar se integra e vae com ele
Até á cousa vista e desejada!
E sentia a Donzela em pleno rosto
Aquele olhar ardente que lembrava
Lume de braza viva; e nem sequer
Se atrevia a fitá-lo ou lhe falava...
E a roca em suas mãos estremecendo
Emaranhára a estriga e o loiro fio...
Mas, por fim, n'um esforço, recorrendo
A todo o seu vigor, assim lhe disse:


«Quem és tu? Porque falas com a tua
Propria sombra em voz alta? E te diriges
Ao sol que te não ouve e á luz da Lua
Que é reflectida luz de indifferença?
Vens de longe, talvez ... Na tua fronte
Paira o vago crepusculo infinito
Da distancia...


 Mas tu, quem quer que sejas,
Meus olhos fascinaste; e se medito
N'essas tuas palavras, onde eu toda
Me sinto reviver em formosura,
Meu coração acorda alvoraçado,
Como quem ouve em alta noite escura,
Bater o vento ás portas e ás janelas;
E estremunhado ainda, se levanta,
E vê que já mal brilham as estrelas
E que a noite se afasta e o sol é perto.
Assim a tua voz ouvindo agora,
Despertei d'este somno em que jazia;
E já vivo outra vida; e nova aurora
Contemplo; e tudo, em mim, rejuvenesce...


E Marános, tomado de coragem
Olhando-a com mais alma, n'uma voz
De quem reza, falou á sua Imagem:
(Oh mais á sua Imagem que a ela propria!)


«És a Virgem da terra onde nasceste.
Estas arvores vivem da tua graça;
E as searas dos campos reverdecem,
Quando sobre elas teu sorriso passa!
E as aves d'este ceu vão procurar
Fios do teu cabelo para o ninho,
E a funda inspiração para cantar
Á mensageira luz que tens nos olhos.
És a Senhora do Êrmo, e d'estas fontes
A liquida alegria que as sustenta;
És a Menina Ungida d'estes montes,
És a Virgem Eleita dos pinhaes!
És a sombra das arvores, ao sol;
O Lyrio, a Rosa da divina côr!
És a Senhora da Esperança nova,
A Vénus virginal do novo Amor!»


E os olhos de Marános encontraram
Os labios da Donzela; e de repente,
Suas palavras palidas tomaram
Vermelha, alegre côr voluptuosa:


«Minha segunda e viva Aparição,
Verdadeiro milagre da Beleza;
Não és phantasma, sombra, sonho vão
Que nasce do Desejo insatisfeito,
Se tens na face a côr que só a vida
Ás cousas que ela anima, sabe dar...
E de teus pés se alonga comovida
A tua sombra em flôr...
 Ah, vejo bem
Que és do meu Reino, e filha do Desejo
Consumado! E ainda trazes nos teus labios
Perfumes e vestigios d'esse beijo
Que foi a aurora ardente do teu sêr!
Beijo que me embriaga, como se eu
Fôsse acaso teu pae! e que me aviva
Esta fome carnal do meu espirito,
Que ele tem fome, sim, de carne viva!»


Mas, subito, Marános entristece,
Como o sol quando nuvem passageira
Lhe vela o rosto em brasa ... E eis que arrefece
Sua voz que se torna mais sombria,
Confusa voz noturna, de entre nevoas:


«Quem sabe se tu és, ó Creatura,
Um Espectro mais proximo e visivel?
Uma Sombra mais densa e mais escura?
Quem sabe o que tu és? E nem eu sei
Já distinguir o Espirito do Corpo!
Um phantasma chimerico beijei,
Imaginando-o um vulto de mulher!


Formaturas aéreas, fingimentos,
Serão as tuas formas virginaes?
Quem sabe se o teu rosto florescido
Como um jardim humano, não é mais
Do que uma branda nevoa enganadora
Que o meu desejo funde e crystalisa
N'essa tua aparencia que esta aurora
Veste de oiro e de rosas?...»


 E Marános,
Como absorto e scismatico ficou,
Olhando-a longamente com uns olhos
Onde esta luz de vêr se transtornou,
O que fez á Donzela grande medo!
Pois imaginou logo que a loucura
Dominára Marános, de repente;
E disse-lhe tomada de piedade:


«Acaso algum desgosto intimamente
Te assaltou, de improviso? ou descobriu
Alguma nova dôr teu coração?
Trazes comtigo o espanto de quem viu
Milagre ou maravilha!...
 Que segredo?
Ou que sombra da terra ou luz do céu?
Que sonho, que delirio te persegue?
Que tragico phantasma te empeceu?
Ou do teu proprio espirito possesso,
Andas errante e doido, sem achar
Algum Deus que te arranque das entranhas
Essa Sombra que turva o teu olhar,
Esse intimo Demonio que em ti vive?»


«Estranho é o que me dizes! Quem és tu?
Lhe perguntou Marános. Logo vi
Que eras um puro engano dos meus olhos...
Mas tambem que me importa, se eu vivi
Essa ilusão? ... Se tudo quanto vivo
Se converte em verdade e realidade;
Fica a ser d'este mundo como eu sou...»


E a Pastôra sorrindo (era a Bondade
Em onda luminosa á flôr d'uns labios)
Mais claramente agora interpretava
As palavras confusas de Marános,
Que a loucura, esse espirito, animava...
E assim lhe disse:


 «Ó vaga creatura,
Estranho caminhante da tristeza,
Peregrino que vens da noite escura,
Atráe-me a tua voz enlouquecida!
Tu fallas ... e teu verbo luminoso
Lembra um sol d'entre nuvens, creador
De sombras e visões!
 Ó mysterioso
Caminheiro que vieste á minha terra,
Tua propria loucura me seduz!
Essa altitude animica e nevoenta,
Que toca nas estrelas, onde a Luz,
Para voar, voar! se veste de azas...


«Comprehende-te, já vês, o meu instinto.
Esta noite em que vivo se alevanta
Á altura d'essa luz em que tu vives,
E em que a minh'alma timida se espanta!
Ha nas tuas palavras um abysmo;
Ouvindo-as, logo sinto uma vertigem!
E em sobresalto chora e esconde a face
O que em mim é vedado, occulto e virgem.
A parte mysteriosa do meu sêr
Ama a sombra espectral do teu delírio!
E até me custa, sim, comprehender
Esta força amorosa que me leva
Para a tua loucura...
 Ah! tu não sabes
Se eu existo, se vivo; e confundiste
A carne palpitante que me veste
Os ossos de desejo, com a triste
Irrealidade pálida das sombras!
Já não me avisto a mim! Não sei quem sou!
Como vento de fogo, a tua Duvida
Minha forma corpórea evaporou!...
E já me desconheço! Eis o motivo
Porque te amo ainda mais...
 E quem sou eu?
A deusa que disseste? ou fugitivo
Phantasma de donzela enamorada
Que estes montes saudosos conceberam?
Os teus olhos que vêm? Que vêm teus olhos
Atravez d'essas nuvens que esconderam
O sol latente e vivo em cada corpo?
Que vê tua loucura, quando fala
Ás êrmas cousas mortas que te cercam?
E em mim que verá ela, quando exhala
Esse túrbido fumo de magia
Que imaterialisa as próprias pedras?
Mas não sou eu que falo! Não sou eu!
Que voz, que estranha voz, me sobe aos labios?
Dir-se-hia que estou grávida do teu
Delírio que me beija e que me abraça!
Sinto meus seios túmidos de sonho!
E em meus olhos brumosos se adelgaça
E já se desvanece a minha vista...»


As meigas ovelhinhas, com surprêsa,
Pareciam olhá-la... E a sua trança
Desprendida, fluetua: é luz acêsa
A direcção do Zephyro indicando...


E Marános: «Pastôra d'estes montes,
Estranha é a tua voz que me revela
Que tu não és apenas a mulher
Que veiu ao mundo só para ser bela!
Não és a luz que apenas ilumina,
Mas és também a luz que vê ... Não és
Aquela estatua rigida e divina,
Eternamente amada e sem amar!
Grande e oculto milagre para mim
Achar na luz da tua mocidade
A mesma Sombra ignota que persegue
Meus passos ... Quem és tu? És a Saudade?»


E a Donzela: «Sou eu! Sou eu! Repara
No sangue do meu pulso que lateja!
Não vês o meu olhar beijar teus olhos?
Não vês a minha sombra como beija
A sombra do teu corpo? ... Dizes bem:
Fica longe de nós todo esse idylio ...
É um idylio de sombras, muito além,
Nas distantes florestas...»


 E inclinando
A alva fronte, a Pastôra emudeceu...
E Marános, na tôrva tentação
Da chimera, do espirito, do céu,
Sem vêr, sem comprehender, exclama ainda:


«Ai de ti! Ai de mim! Como é que a Dór
Outra dôr alivia! Qual a chamma
Que outra chamma extermina?...


 Eu quero amar
O que é eterno e vivo e que não ama!»