Marános/Canto 3

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III


MARÁNOS, ELEONOR E A PASTORA




Logo que estas palavras fôram ditas,
Uma nuvem o sol escureceu.
E de novo, Eleonor surgiu da sombra
E mysteriosamente apareceu...
Um crepusculo terno diluia
A nitidez cortante das arestas;
E no cinzento azul quasi se ouvia
Uma canção de sombra, um som brumoso...
Era a hora sem fim da meia luz;
Uma visão diurna do sol-pôr,
Quando as fórmas mais finas se destacam
E toma vida e corpo o nosso amôr.
Era esta luz baixinha e milagrosa,
Que sabe dirigir os nossos olhos
Para a essencia das cousas, mysteriosa,
Para a Beleza imaterial e pura.
Era a sagrada luz n'aquele instante
Em que se torna sombra, e, sem deixar
De alumiar o mundo, já permite
O nascer das estrelas e o cantar
Dos passaros sedentos de penumbra.
Era o sol comovido, extasiado
Ante uma nevoa apenas, emanando
Espirito profundo e concentrado...
E Eleonor, tão alta e inacessivel
Em seu divino amor e formosura,
Emquanto a sombra viva do seu corpo
Era um desdobramento de ternura,
Contemplava Marános, em silencio...
Tão confuso ficára e surprehendido,
Que em seus olhos a luz se enevoou;
E por um sexto e íntimo sentido,
Em desvario, olhava aquela estranha
Aparição! Sonho encarnado! Amôr!
Alma tão evidente, que era corpo,
Perfume tão intenso, que era flôr!


O Zephyro passava e as tenras folhas
Vergavam sob o peso de seus pés...
E na calma penumbra alumiante,
E no grande silencio que se fez,
Como estrela que nasce ou flôr ou chamma,
A voz de Eleonor falou assim:


«Sou aquela que é amada e que não ama,
Porque o meu Sêr é eterno e virginal.
Eu vivo além do amôr e da tristeza,
Só porque existo e vivo além da morte.
E que és tu para mim, ó Natureza?
Um incendio chimerico e longinquo,
D'onde se exhala a branda claridade
Espiritual que eu sinto percorrer,
Como sangue, este corpo sem edade,
Na alegre e na perpetua Primavera...


«Manhãs em flôr, o sol, os altos montes,
A verde terra, o mar; tudo o que abrange
A curva material dos horizontes,
Para meus olhos que é? Phantasma, sombra...
Sombra materna; vaga, diluida
Figura de Avoengo já remoto;
Morte de que descende a minha vida,
Como da noite morta a luz dos astros!


«E que és tu para mim? O que a semente
Na escuridão da terra sepultada,
É para a flôr que nasce em alto ramo,
E que ao pé das estrelas foi creada!
És o trigo da minha comunhão;
És a Sombra, o Passado que eu vivi...
Tu és a minha terra; és a paisagem
Que me trouxe, e és o berço onde nasci.
Tu és o meu Passado; assim as arvores
São talvez teu Passado ... mysterioso
Tempo em que a Vida apenas ensaiava
Seu animico vôo esplendoroso...


«E depois tu nasceste, ó Creatura!
E, de ti mesmo triste e descontente,
Começaste a voar na noite escura...
E no vôo infinito em que te perdes,
Já não és tu que existes ... mas sou eu;
O Ser espiritual que de ti vem;
Assim vieste da planta; assim a planta
Do seio virginal da terra mãe!


«Vivo em teu coração; mas em ti proprio
Ha tão grandes distancias como aquelas
Que inundam de penumbra e de silencio
O espaço que medeia entre as estrelas!


«E que importa a distancia que sepára
Teus labios dos meus labios? E que importa
Que eu seja Luz eterna e sempre clara
E tu Sombra mortal e transitoria?
Que tu vivas n'um mundo e eu n'outro mundo,
Se nos prende e nos liga o fio astral
Que prende o olhar á estrela, e o mar profundo
Á sêde que o sol tem de nossas lagrimas?...


«Meu Creador e Amante, põe os olhos
N'esta tua divina Creatura
Que, insensível, eterea, te persegue...
Se teu vulto derrama a noite escura,
Outra sombra derrama a tua alma.
E esta sombra sou eu que, noite e dia,
Deante de ti, bem longe, vae andando...


«Meu corpo é teu espirito e harmonia.


«Sou Aquela que é amada e que não ama,
Porque o Amôr odeia o que é eterno,
E apenas se alimenta a sua chamma
Do que é mudança, dôr, fragilidade!


«Sou Aquela que é amada e que não ama!»


E Marános ouvira o marulhar
Da voz que lhe falava, como quem
Ouve, de noite, ao longe, a voz do mar...
E a Pastôra, já mais acostumada
Á estranha maravilha, a si voltou.
E d'esta fórma, olhae, um tal milagre
N'uma cousa vulgar se transformou;
Porque todo o milagre ou maravilha
Deixa de o ser, apenas se demora
Deante da nossa vista, como as arvores,
O mar, a nevoa, a flôr, a luz da aurora.
E por isso, mais calma, erguendo os olhos
De mortal e vivente para aquela
Imagem imortal, assim lhe disse:
(Pois tão heroica é a Virgem e a Donzela!)


«Sim; tu és o Demonio que persegue
E vae pisando a sombra caminhante
D'este homem que delira e tem na fronte
O destino que o faz andar errante!


«N'este sitio sósinho, onde apascento
Meu rebanho, meus olhos ... e onde. á tarde,
Vem conversar comigo a voz do vento
E onde esta clara fonte me sorri;
Encontrei-o, de joelhos, sobre a terra,
Dizendo cousas vagas, sem sentido.
Logo vi que d'um genio ou mau espirito
Ele andava, no mundo, perseguido!
Mas ao pousar os olhos no meu rosto,
O juizo lhe tornou; e então me disse
Palavras que serão o eterno gôsto
D'esta alma de mulher que Deus me deu!
E tu, Phantasma, vens tirar-lhe a paz,
Perturbá-lo e perdê-lo! Para que
Roubá-lo ao meu amôr, se és incapaz
De amar? e se tu mesma não pertences
Á vida a que nós ambos pertencemos?
Ignoras a alegria de quem ama
E se sente mortal em seu amôr!
Ah! nunca ardeu em ti aquela chamma
Que nos transforma em cinza e poeira vã!
Jámais sofreste, sim! Nunca em teus dias
A luz victoriosa da manhã,
De repente, caiu vencida e morta!
Nunca ergueste nas mãos, saudando alguem,
O calice divino da amargura!
Nunca sentiste a dôr que só á Mãe
A Vida, de joelhos, entregou.
—És bela! mas não tens aquele encanto
Que uma lagrima deixa em nosso rosto,
E nunca a triste voz de etéreo canto
Derramou seu crepusculo em teus labios.
Essa tua chimerica beleza,
Mais divina que humana, desconhece
A sagrada volupia da Tristeza
E o ante-gosto abysmatico da Morte!
Tu não sofres nem amas! Este mundo
É para ti um vago nevoeiro
Que na alucinação dos teus sentidos,
Passa como um phantasma caminheiro...


«Inimiga da Vida e Sombra vã,
Eu te arrenego! Sóme-te! E jámais
Tu venhas perturbar esta manhã
Em sua harmoniosa claridade...»


E Eleonor, sorrindo: «Eu te perdôo
Essas loucas palavras que disseste!
Tu viste-me, e não sabes quem eu sou!
Assim tenho vivido incomprehendida...


«Nunca mandaste, em ancias, um olhar
Para além do teu sêr? E nunca viste
Uma Figura etérea acompanhar
Teus passos, e dormir ao pé de ti?


«Tambem o sol ignora a sua luz...


E a Donzela, mais palida, escutava
A voz de Eleonor, que se tornou
Tão séria! e os êrmos ventos imitava:


«Dirigiste-te a mim, como se eu fosse
Um pesadêlo apenas, sonho vão,
Ou alma do Outro Mundo ou sombra morta,
Quando eu pertenço á mesma Creação
A que pertences tu, á mesma Terra!
Sou da Vida e do Mundo como as flôres!
E o longínquo perfil d'aquela serra
Não é mais verdadeiro que os meus olhos
Contemplando-te, alegres, da distancia
Que separa dois Reinos, como tu
Contemplas uma rosa, n'essa infancia
Do abril que no teu corpo se insinua...


«Quando olhas para uma arvore, talvez ela
Julgue que és um phantasma e tenha medo!
E quem sabe se as arvores são phantasmas
Para o noturno e tragico rochedo?
E eu que sou para ti? O mesmo que és
Para as arvores da terra; um novo sêr
D'um novo Reino; a Alma, a Esplendidez
Em que a Vida, por fim, se converteu...»


Marános de confuso, era uma sombra...
E Eleonor, que falava distraida,
Fitando os claros olhos na Donzela,
Continuou mais ardente e comovida:


«Quando vaes para casa, ao cair da noite,
E ouves, na Egreja, o toque das Trindades;
E páras no caminho a meditar,
Toda embebida em mysticas saudades,
Não vês saudoso espectro que te fala
De longe ... e te aparece na emoção
Do crepusculo de oiro, em fórmas vagas,
E em teu peito estremece o coração?...
Esse Alguem não é sombra mentirosa,
Mas natural e viva creatura;
E assim como tu és da verde terra,
Ele é da tua íntima ternura...
Pertence ao mesmo Reino a que eu pertenço;
Novo Reino da Vida, onde termina
E principia a linha circular
Da Natureza trágica e divina.


«Tu és o Amor amante, eu sou o Amor
Amado; eu sou a Vida, e tu sómente
És aquilo que vive: eu sou a Dôr,
E a dôr não sofre, não, mas é sofrida.


«Ó pálida Donzela que eu avisto
Nos tenebrosos longes do Universo,
Tu não vês o logar onde eu existo
Nem a essencia divina do meu Corpo.
Nunca a alegria plena tu sentiste,
Nem o prazer sem fim! E a doce luz
Dos teus olhos, ás vezes, é tão triste
Que dá melancolia ás proprias cousas...
Pois tu és a Mulher, Fragilidade
Transição dolorosa! E a tua branca
Formosura é egual á tempestade
Que derruba e destróe para ser bela!
És a Beleza, sim, que a pura sorte
Em transitorio barro quiz moldar.
E nos teus beijos mesmo existe a morte,
E no teu coração e nos teus olhos!»


E depois, dirigindo-se a Marános:


«E tu que também és do mesmo Reino,
Sujeito á lei do espaço e á lei dos anos:
Tu que és da mesma dôr, miseria negra,
Só em mim a Ventura encontrarás,
O espiritual Prazer eterno e vivo!
Funde em meu Corpo alegre a tua dôr,
O que tens de remoto e primitivo!
Embriága-te em mim, e te extasia!
Exhalta-te em meu sêr que te pertence!
Foge comigo, envolto na harmonia
Que fórma a onda astral do meu cabelo!
Vamos os dois, fugindo ... Eu te prometo
A sublime e final Revelação...
Para o grande Silencio vem comigo,
E tambem para a grande Solidão!»


E Eleonor, estendendo a mão direita,
Apontou-lhe o oriente luminoso,
Onde se erguia o vulto da Montanha,
Em cósmico relevo fragaroso...