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Marános/Canto 4

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IV


MARÁNOS E A PAISAGEM




E Marános, emquanto aquela imagem
De novo, se perdia, dirigindo-se
Pelo rastro de luz que na passagem
Seus pés de nevoa alada iam deixando,
Disse, com voz saudosa:
 «Ó tu que ouviste
Esta elegia íntima que fórma
A essência do meu sêr, e descobriste,
Pela aridez ardente dos meus labios,
A natureza, sim, de minha sêde!
Tu, que és meu corpo frágil e vivente,
Prolongando-se em mystica ternura
Além do Espaço, e milagrosamente,
Já sentindo e vivendo uma outra vida,
Seguirei teu caminho que nos leva
Á Montanha sonhada e prometida
Que se ergue altiva e triste no horizonte;
E que, vista d'aqui, d'este êrmo outeiro,
Com seus êrmos planaltos, na amplidão,
Tocados de infinito e nevoeiro,
É a Montanha da lua e do silencio...»


E já tomára o Sol a primitiva
Claridade; a Paisagem regressára
Ao seu antigo aspecto; e a côr mais viva
Baixou á face extatica das cousas...
E vendo-se a Pastôra abandonada,
Afastou-se d'ali, sem um adeus.
E de seu corpo a linha maguada
Vergava, sob o pêso da Saudade...
Em pouco tempo, as arvores esconderam
Seu vulto, como escondem pelo abril
Os ninhos, onde as aves que os fizeram,
Criam a nova aza e o novo canto.
E Marános seguiu-a com os olhos,
Mudo, sem ter coragem de falar,
Como se, ao mesmo tempo, ele quizesse
Continuar seu caminho e ali ficar!
Sim! Partir e ficar na mesma hora!
Seguir a Voz etérea que o chamava,
E aquele Vulto airoso que a distancia,
Em sua rôxa névoa, amortalhava!
E Marános, vencido pela força
Da indecisão, chorava e maldizia
O mundo, o seu destino e a luz do sol
Que, dentro em suas lagrimas, sorria
Na mesma indiferença luminosa
Em que sorri no orvalho da manhã...
Porque a Dôr é uma noite mysteriosa
Só feita para os olhos da Creatura!


Mas ele, que ainda via no ar infindo,
Miraculosamente desenhar-se
A doce curva em flôr do gesto lindo
Que a longinqua Montanha lhe mostrou,
Áquele sitio êrmo disse adeus;
Logar de soledade e Aparições,
Onde as almas errantes pelos céus,
Baixam na sombra lactea da Lua.
E foi descendo a religiosa encosta
Vestida de pinheiros e ajoelhada
Sobre um vale, onde a côr, em verdes ondas,
Murmura ... e é luz caida e condensada...
E ali, n'aquele vale, a dôr christã
Dos êrmos, tristes pinheiraes sombrios,
Se casa, sob a ardente luz pagã,
Com a alegria fértil da campina...
E unidas e casadas, n'um abraço,
Sobem depois ás mysticas alturas
Dos pincaros da Serra que, no espaço,
Erguem seu vôo extático e inefavel,
Já libertos da dôr e da alegria...
Fórmas espirituaes de rocha e neve,
Na insensibilidade eterna e fria
Do Sêr perfeito e livre, isento e virgem!


Ó vale da Harmonia florescente,
Onde o sagrado Tamega, sonhando,
Bate as azas que turvam as estrelas
E sobre as arvores tristes vae passando...
E a humida caricia do seu vôo
As desmaia de amor; e desmaiadas,
Nos braços envolventes da neblina,
Lembram vagas mulheres desgrenhadas...


Ó vale do Crepusculo, onde o Sol
Beija a mystica sombra dos outeiros!
E onde em noites de Lua, o rouxinol
Ergue seu canto em límpido crystal,
Faiscante de harmonia, na penumbra
Silenciosa e palida, que veste
De comoção as arvores e o Rio,
Já tão cheio de estrelas, que é celeste!


Ó vale das Saudades, onde a terra
Idylica do Minho se transforma
No ascetismo granítico da Serra,
No elegiaco drama transmontano!
Terra natal e santa da Saudade,
Que o Tamega fecunda, abraça e beija!
E, em murmúrios de nevoa e claridade,
Lhe diz o seu amor, como em segredo...


Pureza de agua e de alma, ó claro Rio!
Espelho das florestas e das nuvens,
E das aves cantando ao desafio,
E dos astros brilhando em guerra acêsa!
Rio das brancas nevoas que a manhã
Trespassa de oiro, e a noite de mysterio!
Agua de nossas lagrimas irmã,
E, quem sabe? talvez da mesma fonte...
Fundo Rio da noite! Agua baixinha
Da madrugada! Ó Rio fabuloso,
Quando a Lua da Terra se avisinha
E se reflete, triste, no teu seio!
Rio da comoção que em ti fluctua
E que teu corpo arrasta para o mar!
Rio de Apparições, á luz da Lua!
Rio dos verdes salgueiraes, ao Sol!
Rio divino do sagrado Vale!


Ó terra da Alegria e da Tristeza!
Terra Santa! Judeia occidental
Dos Profetas da nova Profecia!
Em vós a curva cósmica do mundo
Se fecha; em vós começa e, em vós, acaba
A paisagem azul do céu profundo,
Com florestas e píncaros de nuvens...


E na margem do Rio se sentou
Marános, descançando ... E viu seu rosto
Retratado nas aguas, onde um vôo
Deixára um rasto efémero de sombra.
E, subito, ficou maravilhado
Ao vêr a sua própria Aparição!
E seus olhos fitaram os seus olhos,
Seu perfil e, talvez, seu coração...
E deante de si mesmo surprehendido,
Não sabia onde estava em mais verdade:
Se no crystal das ondas reflectido,
Se na fecunda terra marginal.
E viu assim que toda a limpidez,
Ou seja de agua clara ou de alma pura,
Em si conserva o rosto que, uma vez,
Sobre ela, com amor, se debruçou...


E Marános, sonhando, contemplava
Nas doces aguas lúcidas que passam,
A imagem dos salgueiros, que ficava...
Pois só morre quem ama e quem é amado
Vive sempre em espirito e em amor!
E o Rio deslisava, n'um murmurio
De prece: era um suspiro, era um rumor
De sonho: era um desejo que se espraia...


E seus olhos olhavam a Paisagem
De mysticos declives de pinhaes;
E campinas de verde e alegre imagem
E o sol caindo em bátegas de côr!
E os pássaros voando, como sonhos
Das arvores ... sonhos belos e felizes
Que lhes pousam, cantando, sobre os ramos
Que são celestes, íntimas raizes!
E as cousas que seus olhos contemplavam,
Tambem as ia vendo intimamente.
A cada sêr externo corresponde
Intimo sêr chimerico e vivente...
É a Natureza, sim, no seu perpetuo
Desdobramento animico e profundo,
Criando um novo Céu, além do céu,
Criando um novo Mundo, além do mundo!


Marános era a selva comovida
Do dramatico Idylio universal,
Onde as trevas e a luz, a morte e a vida,
Celebram seus amores de eternidade!
Ele era a Egreja humana e caminhante,
Onde a imagem de Christo e as suas dôres
Eram feitas de nuvens e arvoredos,
De avesinhas, de estrelas e de flôres!
Sua cruz era uma arvore em abril;
Suas chagas sangrentas eram rosas;
De seus olhos, voando, se elevavam
Casaes de borboletas amorosas...
E em tão fundo e chimerico alvoroço,
Olhava o mundo e o céu, que dir-se-hia
Que pela vez primeira, deante d'ele,
Surgira a terra, o céu, a luz do dia!


E continuando a andar extasiado,
Em voz alta, sósinho, como quem
Vae doido ou a rezar ou preocupado,
Assim falava á sombra do seu corpo:


«Eu sou filho do Céu e da Paisagem;
Venho da dôr sem fim que os astros choram...
Minha carne, meu sangue e minha imagem
São a terra que eu proprio vou calcando!
São as aguas que eu bebo; são este ar
Onde deito a voar minhas palavras,
E onde elas ficam todas a pairar,
Como nuvem de som beijando a terra!
E é por isso que a amavel solidão
E o silencio dos montes, com amor,
Matam-me a fome de alma e coração
E a sêde que me torna n'um deserto!
Sou o amante dos Ermos; sou aquele
Espirito sósinho que povôa
De mysteriosos Vultos a paisagem...
E de lagrimas tristes enevôa
As estrelas, as arvores e tudo
Onde puzer os olhos taciturnos...
E o que parece tôsco, inerte e mudo,
Ao sentir o seu halito vital,
Anima-se, estremece, e, olhando, fala!
Sou Feiticeiro e a Noite me contempla...
E trago ao peito a flôr d'onde se exhala
O sombrio perfume do Crepusculo!
Por isso, o meu espirito alevanta
Seu cantico de sombra á luz do dia!...
E matei o Silencio, e vi meu corpo
Tinto do sangue eterno da Harmonia!
E, n'um grande delirio, sem parar,
Eu ando; e me persegue o seu Phantasma,
—Essa Voz, tão chimerica, a falar,
Esse corporeo Som que me domina!...


«Bemdita sejas tu, ó sempiterna
E sagrada Paisagem Portuguesa,
Que o mundo concebeu todo encantado
No seu primeiro sonho de beleza!
Bemdita sejas tu, por todo o sempre,
E o teu ventre que um novo Deus encerra,
Ó unica Paisagem onde o Céu
Se casa intimamente com a Terra!


«Pinheiraes da tristeza! Ó poentes de oiro!
E a voz do Mar além dos horizontes,
D'onde a nevoa caminha, em si trazendo
Fogo vivo do céu, agua das fontes!
Ó longes indecisos, nevoentos,
Que a magica penumbra da tardinha
Povôa de phantasmas agoirentos,
De murmurios e vozes misteriosas...
Ó fumo dos casaes que aos céus eleva
Esperanças, Saudades e Alegrias
Que nas noites de inverno, quando neva,
Junto ao fogo sagrado se reunem!
Ó volupia do ar que nos abraça!
Embriaguez do sol! Ó verde flôr
Das aguas que o bater d'um coração
Agita em ondas rythmicas de amôr!
Alegria da vida que se vive
Em doce comunhão com as estrelas,
Mais pura e sã do que essa que já tive
No comercio dos homens e do mundo!
Alegria bebida em clara fonte,
Comida em loiro pão de honestidade!
Em tudo vêr a Deus! e em alto monte
Ajoelhar e rezar, quando o sol nasce!
Ó silencio da noite quando vélo
E n'um scismar profundo me concentro...
E quando o luar, a sombra, o sete-estrêlo,
Transmigram para mim ocultamente!
Vago rumor confuso dos Espiritos
Que, á luz da Lua, pairam na penumbra...
Divindades noturnas que aparecem,
N'um mago encantamento que deslumbra!
Paz que desce do Azul; silencio enorme
Que sobe d'este mundo, e no ar, se casam,
Quando na fertil árvore que dorme,
Sonhando, cantam alto os passarinhos!


«Ó extase divino! Embriaguez
Sagrada! Ó Vida etérea! Ah, como eu sinto
A virgindade, o amor, a esplendidez
Que este corpo de crime em si contém!
Ó miseria sem fim de que sou feito!
Fragilidade humana, só tu sabes
Criar em tua dôr o que é perfeito!
Como géras a Vida, se és a Morte?


«E este meu coração que tanta pena
Me faz, sofrendo e amando noite e dia!
E nem dorme um instante nem descança,
Por um instante apenas de alegria,
Na escuridão, a sós, ele trabalha,
Tão afastado e perto d'este mundo,
Que uma lagrima, caindo, logo o orvalha,
E o alumia a estrela mais longinqua!
Bem o sinto bater em alvoroço,
Todo embebido em intimas ternuras!
E tentar o seu vôo, erguer as azas,
Subir, subir ás mysticas Alturas!...»


E o palido silencio lhe fechou
Os labios, com seus dedos de penumbra.
E, mais curvado, a andar continuou,
Como sentindo o pêso da emoção,
Quando uma voz lhe disse:


 «Ao pé de ti,
Eis-me outra vez; andei, e vim parar
A este formoso vale, onde te vi
Do alto d'aquele outeiro que desceste.
Por ti, deixei, nos montes, meu rebanho;
E lá deixei tambem o meu socego,
Pois não me sáe dos olhos teu estranho
Aspecto que me encanta e me domina!
Não te posso esquecer; tua figura,
Tuas palavras doidas me atralram...
Aqui me tens em corpo e formosura;
Este abraço, este beijo te perseguem!»


E Marános, surprezo, rosto a rosto,
Viu a Menina eleita dos pinhaes...
(Era a hora sombria do sol-pôsto,
Quando os vales parecem mais profundos)
E respondeu:
 «Bemdita seja a hora
Crepuscular e santa d'este encontro,
Em que essa fronte clara se descóra
E ternuras de sombra n'ela pairam...


«Amo-te (e bem o sabes!) apezar
D'esse oculto momento em que meu sêr
Fugiu de ao pé de ti, qual triste olhar
Foge dos êrmos olhos que o criaram!
Sim! de ti me afastei, como se afasta
O calor da fogueira que o produz;
E a voz dos nossos labios; e da estrela
Seu proprio coração que é sua luz!


«Amo-te! Nem tu sabes! Nem sei eu
Com que tristeza olhava o pinheiral
Onde teu lindo vulto se escondeu!
Tu não viste esse olhar, porque se o visses
Não ficarias só e abandonada!
Eu fui com ele, em alma e carne viva,
E pisei tua sombra bem amada,
Embora, n'outro corpo e coração,
N'outra fórma real e transitória,
De ao pé de ti, partisse para a Serra
Longinqua que me chama!
 Mas eu amo-te,
Assim como quem ama a sua terra!
É tão forte este amor em que me abraso;
És tão viva em meus olhos, que nem sei
Se te avisto ao meu lado, ou se és acaso
Um phantasma irreal do meu Amor!»


«Aqui me tens em corpo e pensamento»,
Lhe tornou a Donzela.


 E então Marános,
Qual sensivel arbusto, á voz do vento,
Inclinou-se e tomou-a nos seus braços...