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Marános/Canto 6

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VI


MARÁNOS E A SOMBRA DO MARÃO




E a Sombra que tapára, de repente,
A vista de Eleonor e que púzera
Marános em delirio, vagamente,
Se retirou de ali; mas na distancia,
Tornára-se mais alta, mais extensa
E confusa, adquirindo a forma estranha,
Com seus ermos planaltos e ermos píncaros,
Do perfil solitario da Montanha...
Dir-se-hia a propria Serra assemelhando
Rio que sobe em nevoa e no ar deslisa;
Terra vaporisada, mas guardando
A sinuosa linha do seu corpo.
E assim aquela Sombra, á luz do dia,
Era uma projeção espiritual,
Phantastica da Serra que envolvia
Marános e o seu vulto anoitecido...


E ele ia novamente interrogá-la,
Quando a cósmica Sombra assim falou,
N'uma voz que lembrava o mar longinquo
E o sussurro do vento no seu vôo:


«Eu sou aquela Sombra do Marão
Que dentro de ti mesmo se alevanta,
Com toda a sua terra e solidão
E o divino silencio das Alturas!
Sou a rude Montanha austéra e calma;
Cordilheira de nevoas e de espectros,
Esfumada nos longes da tua alma
E por ti mesmo erguida á luz do sol!
Sou a Serra ideal que te acompanha,
E que teus olhos intimos avistam,
Sob o luar translucido que banha
A paisagem—phantasma do Outro Mundo.
E cavo, dentro em ti, despenhadeiros,
D'onde os lobos se afastam, quando é noite...
Ouço, em ti, as canções dos pegureiros
E os sussurros dormentes do crepusculo...
Em gelida cascata, em ti, murmuro;
Em ti, me afundo em vales solitarios...
E tornando-me altiva e penhascosa,
Ergo, em tua alma, os tragicos calvarios!
E em serenos planaltos eu me espraio
Dentro em teu coração! E á luz da Lua,
Toda abafada em nuvens, eu desmaio
E sinto que me fogem os sentidos!
No espaço interior dos olhos teus
O meu corpo se eleva em terra e fraga,
Sob o beijo chimerico dos céus,
Que é a suprema razão d'esta existencia!
Desde os longes de bruma em que me perco
A esta terra que vês tão pedregosa,
Dentro em teu coração, toda me sinto
Espirito e anciedade religiosa...»


E a grande voz da Serra se espraiou
Pelas margens do céu ... a voz da Serra
Que Jupiter, outrora, baptisou
Com um brumoso nome trovejante...
Marão! onde entra o mar espadanando!
Onde os ventos echôam, e as estrelas
Sentem sua luz, já frouxa, vacilando
Na aparição phantastica das nuvens!


De milagre em milagre, caminhava
Marános desde a imagem da Montanha
Ao vulto de Eleonor que o deslumbrava...
Tudo é milagre e sombra, ó Natureza!


E ao ver que Eleonor vinha descendo
Pela sombra da Serra, em vez de pôr
Os pés como ele punha sobre o chão,
Toda espirito, graça, etereo amôr,
Marános exclamou:


 «Ó tu que vens
De longe, caminhando ... Alta Figura
Que n'um sitio sósinho, em êrma noite,
Quando a terra é emoção e o luar ternura,
Surgiste ante os meus olhos, por encanto!
Do meu somno de morte despertei,
Ouvindo a tua voz, divino canto,
Beijo de som pousando em meus ouvidos!...


Mas logo Eleonor se confundiu,
N'um secreto desejo feminino,
Com a Sombra da Serra que se abriu,
Envolvendo-a em seu manto de crepusculo.
E então aquele Espectro, novamente,
Em voz nocturna e múrmura, falou:


«No Principio era a Sombra; não a sombra
Passiva e projectada, mas um vôo
De sombra que a si mesmo se projecta...
Um fumo que era chama adormecida;
Aparencia de morte e de silencio,
Realidade harmonica de vida.


«E eis que a Sombra depois se concentrára;
E d'essa grande, ideal concentração
Nascêra o corpo-estrela, o corpo-mundo,
Mais o corpo do Amor e o da Emoção!


«Este Universo que hoje contemplamos
E sentimos viver e sobre o qual
A admiração amante derramamos,
É um Sêr resuscitado que partiu
Como Lazaro, a tampa do sepulchro.
Nascer o que é, senão resuscitar?
Toda a morte é regresso e toda a vida
Um adeus, um partir para voltar!
A materia que fórma estes outeiros
E o meu sêrro mais alto e comovido,
Foi coração, foi aza e luz dos olhos,
Em mundo anterior desaparecido...
Foi amor e chimerica esperança!
Repara no meu corpo e avistarás
Uma profunda e oculta semelhança
Com a fórma emotiva da tua alma!
Repara n'estes vales, onde a terra
De verde se vestiu, só de lembrar-se
Da alegria de quando foi donzela
E na agua viu seu rosto retratar-se!
Olha: repára tu n'este rochedo;
Não vês signaes de dôr? Não vês n'aquele
Outeiro uma saudade que é um segredo
Da propria terra e pedra que o formaram?
Bem antes d'este mundo houve outro mundo
Que foi sombra, phantasma, espectro errante...
E esse espectro, esse fumo condensado
Sob os teus pés, é o mundo caminhante!
E as estrelas e os astros denegridos
São duros pontos densos do Infinito,
Grandes blócos de céu empedernidos,
No mesmo céu boiando e gravitando...
São principios e fins de Encarnações
Do imenso Verbo azul, almas viventes!
Agua arrastada pela propria agua,
Como os blócos de gêlo nas correntes...


«Surgira o mundo; isto é, um grande espaço
De céu em pura estrela se abrasou...
E a Estrela viu a Noite; e n'um abraço,
Começaram a andar pelo Infinito...
Deixou de alumiar e de aquecer,
Presa d'aquele doido amor soturno,
Para ser aquecida e para vêr;
Deixou de fecundar, fez-se fecunda.
E o Frio disse então ao Fogo:—apága-te!
E o mesmo disse á Luz a Noite escura.
E ao coração do mundo desce o fogo,
E a luz subiu aos olhos da Creatura.
E o claro Som, beijando o Sêr, lhe disse:
—Em ti, eu quero ouvir-mè!—E por encanto,
Os primeiros ouvidos se inundaram
De som que é luz ouvida, etéreo canto...
E foi assim que todos os Sentidos
Na superficie extatica do Sêr,
Afloráram, deitando essas raizes
Que penetram a terra e o sol a arder,
Tirando á terra, ao sol, á névoa, á flor
A essencia espiritual da Natureza,
E integrando-a depois no corpo humano,
Para que fosse amor, sonho e beleza...


«E d'este modo a Alma foi creada...
E desde esse momento extraordinario,
Apareceu á luz um Novo Mundo,
E n'ele vive o Sêr Imaginario;
Mas real, pertencente á vida eterna.
E é n'esse novo mundo que os Sentidos,
Tendo presa a raiz á luz dos astros,
Erguem os altos ramos florescidos,
Ávidos de outra luz e de outros ares...
Com a raiz devoram céu e terra
E vão beber nas nuvens e nos mares,
E comungam as sombras que derivam
De tudo o que é mortal e transitorio...
E aspiram sonho e amor pelas folhagens;
E descobrem assim, no mesmo instante,
Duas Terras, dois Céus, duas Paisagens!


«Pelos Cinco Sentidos, d'esta forma,
O teu Reino dramatico e animal
D'um lado, avista os Reinos inferiores
E do outro lado, o Reino Espiritual...


Sim: isso que se chama idealisar
É crear cousas falsas, irriaes,
É (com verdade o digo) ouvir e olhar
Não áquem do animal, mas para além...
É olhar o Além-Homem, o perfeito
Reino Espiritual, como se vê
O Reino Vegetal ainda imperfeito,
Mas já formosa flôr, perfume etéreo...


«E o Homem, creatura e creadôr,
Ouviu a voz de Deus que lhe falou:
—Na tua consciencia, em puro amor,
Existirei!—Mas logo, divergindo,
Alguns homens julgaram que essa Voz
Vinha de fóra; e bichos e arvoredos,
Adoraram, os rios e as estrelas
E os phantasmas da noite que são Mêdos.


«E outros homens, ouvindo mais atentos,
Aquela Voz divina, imaginaram
Que apenas do seu intimo ela vinha;
E a Deus, em seu espirito, adoraram.


«E assim Jesus e Pan foram creados.


«Mas, ai no grande dia em que nasceram
A Terra verde e o Céu azul, com furia,
Em dura, crúas guerras se bateram!
E os homens que tomaram o partido
Da terra, proclamavam:—Deus está
Nas cousas que tocamos, escondido—
E os outros:—Em nós próprios ele existe!—
Tão grande era a cegueira, que não viam,
Em seu odio e rancor que nada acalma,
Que tudo o que se avista com os olhos
É o mesmo que se sente com a alma!
Não sabiam que o Céu, longinquo e vago,
É a mesma pura Essencia indefinida
Que anima o fogo e as pedras ... e que o Amor
É irmão da Dôr, e a Morte irmã da Vida!
Não sabiam que o Reino Espiritual
Pertence á mesma ignota natureza
Das Cousas, só mais belo e mais perfeito,
Na alegria, no amor e na tristeza,
Porque as Creaturas vivas que o povôam
Já não são de materia organisada;
São a Carne liberta e redimida,
Espiritualisada e consagrada
Pela chama vital que o Corpo humano
Devora, dia a dia, irradiando
Crua ferocidade e amor fraterno:
Este subindo, aquela rastejando...


«Na sua pobre e misera loucura,
Julgavam sêr o terminus da Vida;
Quando é certo que a humana creatura
Não é um fim, mas antes, novo meio,
Onde nasceu a etérea e transcendente,
Divina Florescencia Espiritual;
Assim como da terra, á luz do sol,
Nasce em rumor e côr um pinheiral...


«Ah, repára tu bem na intimidade
Que entre as cousas existe! E então verás
Que, na essencia, um amor, uma saudade
É o mesmo que uma pedra ou uma flôr.
O que é a Natureza? É qualquer cousa
Que não sendo matéria nem espirito,
Na sua evolução mysteriosa,
Se torna material e espiritual.
Olha; contempla a Escada de harmonia
Por onde a Vida sobe em alma pura
E desce em pobre corpo de agonia
Da terra á luz do céu, do céu á terra.


«O Reino Espiritual, que para os homens
Era uma sombra morta, uma ilusão,
Existe em realidade e na verdade
Integrado na propria Creação.
E saberás, portanto, qual é o teu
Destino sobre o mundo; e saberás
Que tudo o que ha debaixo deste céu,
Tem um sentido claro e natural!»


E Marános, no susto e no arripio
De tão grande milagre, pois de certo,
Ninguem como ele ouvira assim falar
A Sombra da Montanha e do Deserto,
Com a fronte inclinada para o mundo,
Ouvira aquela Voz, e meditava...
E distante e esquecido de si mesmo,
Em seu pensar profundo se abysmava...
E sentia-se agora tão estranho,
E tão outro julgava o seu viver,
Como se acaso, houvesse novamente
Nascido, não do ventre da Mulher,
Mas sim d'aquela Fonte mysteriosa
D'onde nascem as lucidas estrelas,
A terra, a agua, a vaga Nubelosa
Que é um Beijo já quasi Creatura...


E ele via Eleonor, e o grande Reino
Onde ela, em vivo espirito, reinava.
Já não era phantasma ou sombra vã,
Ou chimerica voz que lhe falava;
Mas animada voz enternecida
De creatura real e verdadeira,
Pertencendo como ele á eterna Vida,
Ou, quem sabe? talvez á eterna Morte!
E via o escuro Reinado Mineral
N'um alvorar de sonho e sensação,
Tornar-se, emfim, o Reino Espiritual;
Metamorphose imensa e luminosa!...
E viu que o ultimo Reino transcendente,
Pela sua estructura e natureza,
Se casava profunda, intimamente
Com a sombra phantastica da Origem!
E a luz do seu olhar extasiada
Abrangeu, n'um momento, a Vida Eterna!
Sim, ás vezes, n'uma hora consagrada,
Para nós, se contém a Eternidade.
Da mesma fórma, o sol, por um instante,
N'uma gôta de orvalho se resume,
E n'ela, é viva imagem radiante
De viva luz acêsa em sete-côres!


E Marános sonhava em dôce encanto,
Sob os olhos da Sombra que o beijavam;
E assim como, no ar, se perde um canto,
Seu espirito vago se perdia...


Da Serra começava a levantar-se
Um crepusculo, um fumo, um nevoeiro...
E um oiro em pó suspenso ia juntar-se
Ás primeiras estrelas: era a Noite.